ELZA SOARES, PIONEIRA NO CARNAVAL

Elza Soares tinha 13 anos quando foi ao programa de Ary Barroso, na Rádio Tupi, pra cantar e levantar uma grana pra comprar remédio pra seu filho. Ela não tinha mais do que trinta e cinco quilos e pra disfarçar a aparência de desnutrição, fez uns ajustes no vestido da mãe, vestiu umas sandálias estilo “mamãe, tô na merda!” e arrumou o cabelo. Era rádio, sua imagem não aparecia. Mas o apresentador não perdeu a chance de situar seus ouvintes, descrevendo-a e perguntando: “de qual planeta você veio?”.

Elza nunca foi de desaforo e desde cedo mostrou que enfrentar o desconhecido e o rigor dos outros não era problema: “vim do mesmo planeta que o senhor”. “E posso saber de que planeta eu sou?”, perguntou o apresentador, tentando divertir sua audiência. “Do planeta fome”, ela respondeu. Era ao vivo. E ela cantou (“Lama”, de Paulo Marques). E Ary Barroso decretava que ali nascia uma estrela.

Se a cantora nunca teve problemas em peitar o abismo, seja por necessidade por conta da fome, seja por não conhecer os desafios, era também por uma capacidade de perceber o próprio talento.

Nos dez anos seguintes perdeu o primeiro marido, dois filhos, teve uma filha sequestrada, trabalhou como doméstica e foi na insistência conseguindo uma cerreira de cantora. Em 1960, conseguiu seu primeiro grande sucesso, “Se Acaso Você Chegasse” (ouça aqui). Com o sucesso de seu segundo disco, “A Bossa Negra”, de 1961, foi convidada em 1962 pra representar o Brasil na Copa do Mundo do Chile, como a voz do país.

Em entrevista famosa a Tarik de Souza, em 2009, Elza disse que seu pai, Avelino Gomes de Oliveira, “tocador de violão”, a alertava que tinha vocação pra música. Ela vivia cantando, enquanto o pai trabalhava “explodindo pedra”. Avelino era “um cara musical, tocava trombone, violão…”, ela recorda.

Ela nasceu em Padre Miguel, na favela Água Santa: “ali era uma pedreira, onde meu pai trabalhava. Era uma favelinha dos operários. Não era uma favela tão grande… Mas eu considerava uma favela porque tinha que carregar água, não tinha banheiro, aquelas coisas”.

Uma “mulatinha com cinturinha fina, de bumbum grande, tinha que ser sambista”, já que cantava e andava inevitavelmente requebrando, dizia-se. “Mas não era”, ela lembra. “Acho que era muito mais jazzista do que sambista, por causa dos improvisos que eu fazia”. Era tudo intuitivo, claro. Elza não tinha acesso a muita música, a não ser aquela em torno de seu pai e jazz não estava entre os estilos.

Elza gostava de umas novidades, de uns desafios, mesmo sem saber que o eram. Como da vez que resolveu gravar com o baterista Wilson Das Neves: “estava fazendo um show em Buenos Aires, apareceu um diretor da Odeon e pedi pra ele pra fazer um disco com o Wilson Das Neves. ‘Mas nunca vi uma cantora e um baterista juntos’, o cara retrucou. Você vai ver pela primeira vez”. E viu, o mundo viu. Era “Elza Soares Baterista: Wilson Das Neves”, de 1968, que incluía a famosa “Deixa Isso Pra Lá”, de Alberto Paz e Edson Menezes, que ficou famosa na interpretação feita por Jair Rodrigues quatro anos antes (ouça aqui). Uma mulher fazendo rap, décadas antes do rap aparecer como estilo.

A essa altura, Elza já era uma cantora famosa e não necessariamente amada por todos, por conta do seu romance com Garrincha (que era casado quando a conheceu e isso a sociedade da época não perdoou).

Por ter nascido em Padre Miguel, Elza é e sempre foi Mocidade. Mas foi a convite de Noel Rosa de Oliveira que entraria pra história como a primeira mulher a defender um samba na avenida.

Como escreveram Leonardo Bruno e Gustavo Melo pro Jornal Extra, “o carnaval de 1969 não começou bem pro Salgueiro. A escolha de um enredo sobre a Bahia deixou toda a comunidade cismada: afinal, cantar tema baiano no desfile não dava sorte, dizia a lenda. Outro ponto que deixava a turma desconfiada era a falta de dinheiro. A escola enfrentava dificuldades, mas os carnavalescos Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona acharam a saída pra penúria: eles eram os responsáveis pela decoração do baile de carnaval do Copacabana Palace e, não à toa, fizeram as peças em vermelho e branco. O baile era no sábado, e o Salgueiro só desfilaria domingo… Não foi surpresa ver muitos daqueles adereços da festa do Copa na Avenida, ornando o desfile do Salgueiro (…). A escola ainda tinha outro trunfo: organizada por Laíla (que depois seria o papa-títulos da Beija-Flor), era a única das grandes que passava rápido pela Avenida. A estratégia era não cansar o público e deixar um gostinho de ‘quero mais'”.

Mesmo assim, foi um sufoco. O Salgueiro foi a oitava escola a desfilar. Entrou na Rio Branco ao meio-dia, de modo que o público já estava ali há mais de doze horas (o desfile da Beija-Flor durou nada menos do que três horas!). Elza lembra: “em 1969, não tinha horário pros desfiles. Desfilamos ao meio-dia, debaixo de sol forte, e eu estava sozinha. Eu não sabia que cantaria tantas vezes, mas dei conta. Hoje é mole puxar samba na Avenida! É sopa no mel! Até eu queria!”.

Ela foi campeã na sua estreia (o quarto título do Salgueiro na história), mas não gravou o samba em disco. Naquela época, os sambas eram gravados depois do desfile, e quem o fez foi Noel Rosa de Oliveira. Mas seu pioneirismo a ligou de vez à cultura das escolas de samba. Uma sambista-jazzista se infiltrando num mundo (ainda hoje) essencialmente e predominantemente masculino.

Em 1970, gravou um EP com versões bem próprias de quatro sambas de enredo: “Lendas E Mistérios Da Amazônia” (Portela 1970), “Bahia De Todos Os Deuses” (Salgueiro, 1969), “Heróis Da Liberdade” (Império Serrano, 1969) e “O Mundo Encantado De M. Lobato” (Mangueira, 1967).

Depois de 1969, ela foi intérprete na avenida da sua escola de coração, a Mocidade Independente De Padre Miguel, em 1973, com “Rio Zé Pereira” (ouça aqui a versão de estúdio, sem Elza), ao lado de Tião Da Roça; em 1974, com “A Festa Do Divino” (ouça aqui a versão de estúdio, sem Elza), com Ney Vianna; em 1975, com “O Mundo Fantástico Do Uirapurú” (ouça aqui a versão de estúdio, sem Elza), também com Ney Vianna; e em 1976, com “Mãe Menininha Do Gantois” (ouça aqui a versão de estúdio, sem Elza), mais uma vez com Ney Vianna. “Por onde eu fui, cantei meu amor pela escola”, dizia.

Ela ainda “puxou” quatro desfiles. Em 1979, defendeu duas escolas: Acadêmicos Do Cubango, com “Afoxé” (sozinha!); e Estácio De Sá, com “Das Trevas Ao Sol, Uma Odisseia Dos Karajás” (também sozinha!). Em 1985, fez parceria com o grande Quinho na União Da Ilha, com “Um Herói, Uma Canção, Um Enredo”; e em 2000, de novo na Acadêmicos Do Cubango, com “Por Uma Independência De Fato” (ouça aqui a versão de estúdio, com ela). Foi essa a primeira e única vez que Elza Soares comandou um carro de som na Marquês de Sapucaí, porque em 1985, quando o Sambódromo já existia, ela só gravou em estúdio (ouça aqui), mas não foi pra avenida, cabendo a defesa do samba a Quinho.

Apesar de ser Mocidade de coração e ter defendido outras escolas nos desfiles, Elza gravou muitos outros sambas de enredo em disco, já que nos anos 1970 era um artifício pra conseguir um sucesso nas rádios.

Gravou em 1972 “Rio, Carnaval Dos Carnavais” (Mangueira, 1972) – que rendeu a abertura maravilhosa desse filme de Mazzaropi:

No mesmo ano, veio o compacto de “Lendas Do Abaeté” (Mangueira, 1973):

“Rio Zé Pereira” (Mocidade, 1973):

Gravou também “Lendas E Festas Das Yabás” (União Da Ilha, 1974):

Fez também “Festa Do Círio De Nazaré” (Estácio De Sá, 1975), “Aquarela Brasileira” (Império Serrano, 1964) e “Mangueira Em Tempo De Folclore (Mangueira, 1974).

Elza Soares ficou mais conhecida pela sua ligação com Garrincha, seu grande amor, ou, de acordo com as novas gerações, pelo seu aclamado disco “A Mulher Do Fim Do Mundo”, de 2015, que ganhou aplausos da crítica e do público. Só que ela sempre soube dar um passo que ninguém imaginava que pudesse dar. Seja no samba, no jazz, no experimental, Elza teve fome de meter as caras. Ela devia ser mais conhecida como a pioneira que é.

Ou, como ela mesmo disse, “a música é minha liberdade, o meu alimento”. Pra ela, o planeta fome faz parte do passado.

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