REVISITANDO: JUNIOR – POVO FELIZ (VOA, CANARINHO) (1982)

Waldir Perez, Leandro, Oscar, Luizinho e Junior, Falcão, Cerezo, Sócrates e Zico, Serginho e Éder. Técnico: Telê Santana. Não há quem esqueça essa escalação. Parece unanimidade afirmar que após a seleção de 1970, com Pelé, Tostão, Rivelino, Gérson, Jairzinho e Carlos Alberto, a de 1982 foi o melhor time de futebol que o mundo viu passear pelo relvado.

Um time com ginga, balanço, ritmo e alegria. Só não foi vencedor. Paolo Rossi fez três gols em 5 de julho de 1982, naquela que ficou conhecida como “A Tragédia Do Sarriá”, e eliminou a Seleção Brasileira. A Itália, um time desacreditado e abalado por recentes escândalos de corrupção, eliminava o encanto – e seria campeã, tricampeã (em cima da Alemanha).

O episódio que muita gente acha determinante pra virada do entendimento do futebol, determinando da derrocada do tal “futebol-arte”, teve alguns vilões apontados pela nação – que adora apontar culpados. À época, o erro de Toninho Cerezo o elevou quase à condição de maldito, como aconteceu com Barbosa, em 1950. Telê Santana também teve sua dose de piche. A sorte foi outra que teve sua brasilidade colocada em dúvida. Mas pior que isso, foi o otimismo. Muita gente achou que a Seleção embarcou pra Espanha com dose excessiva de otimismo e que por isso o tombo foi mais doloroso.

O que alimentou esse otimismo, além de uma geração de craques que não se via há muito, foi um ingrediente que chegou a menos de vinte dias da estreia do Brasil, em 14 de junho, diante da União Soviética: a canção “Povo Feliz”.

Esse é o título original pra aquele que virou um dos maiores hinos relacionados a uma Seleção Brasileira, depois de “A Taça Do Mundo É Nossa”, embalando 1958; “Pra Frente, Brasil”, hino de 1970; e a famosa “Coração Verde E Amarelo”, tema que a Rede Globo roda até hoje.

Os dois primeiros mostram que “Povo Feliz” não pode carregar culpa alguma, já que hinos eram prática frequente, especialmente após a derrota doída de 1950, no Maracanã.

“A Taça Do Mundo É Nossa” é um hino feito após a conquista na Suécia, em 1958, lavando a alma do brasileiro. Composta por Wagner Maugeri, Lauro Müller, Maugeri Sobrinho e Victor Dagô, foi um grande sucesso, lembrada até hoje, com os versos “A taça do mundo é nossa / Com brasileiro não há quem possa / Ê-eta esquadrão de ouro! / É bom no samba, é bom no couro!”.

Já “Pra Frente, Brasil” nasceu a partir de um concurso cultural.

Aquela seria a primeira Copa do Mundo transmitida ao vivo pro Brasil pela televisão, mas a Rede Globo precisava de anunciantes pra viabilizar a empreitada. A Esso era a única disposta a isso, só que os custos pra arcar toda a operação sozinha eram mais do que proibitivos, eram indecentes. A Souza Cruz e a Gilette entraram na jogada e os três anunciantes, mais a emissora, criaram um concurso de jingles pra impulsionar a Seleção e fazer valer a grana investida.

Em 1970, o Brasil vivia um momento terrível na ditadura militar comandada por Emílio Garrastazu Médici, um dos períodos mais opressores. A música pedida pelos anunciantes deveria exaltar o Brasil a despeito de qualquer coisa. Pão e circo total.

Em 17 de abril de 1970, o jornal Folha de São Paulo anunciava, na sua página 21: “uma comissão formada de empresários, publicitários e produtores de rádio e tevê escolheu, no Rio de Janeiro, a música que servirá de Hino da Copa do Mundo, nas transmissões dos jogos para o Brasil. A música tem o nome de ‘Prá Frente Brasil’ (assim mesmo, com acento e sem a virgula) e é de autoria de Miguel Gustavo, que concorreu com outros compositores profissionais e amadores a um prêmio de dez mil cruzeiros novos (o equivalente a sessenta mil reais hoje). Miguel Gustavo é o compositor de sucessos como ‘E Daí E Daí’ e de outras canções gravadas por Moreira Da Silva”.

A intensa veiculação na televisão – e obviamente a euforia pelo tricampeonato – ajudou a transformar os versos (“Noventa milhões em ação / Pra frente, Brasil / Do meu coração / Todos juntos vamos / Pra frente, Brasil / Salve a Seleção! / De repente é aquela corrente pra frente / Parece que todo o Brasil deu a mão / Todos ligados na mesma emoção / Tudo é um só coração!”) em algo eterno. Dificilmente alguém não conhece essa letra inteira.

O ufanismo dos versos de Gustavo, morto aos 49 anos, em 1972, refletiam a percepção correta do briefing dos anunciantes. O autor era um exímio e já conhecido autor de jingles de grandes marcas.

“Coração Verde E Amarelo” foi composta em 1994 por Tavito e Aldir Blanc e virou o tema oficial da Rede Globo, detentora dos direitos de transmissão das Copas do Mundo. Deu sorte, porque o Brasil conquistou o tetra nos Estados Unidos e melodia e versos seguem embalando o futebol da emissora, não só em tempos de Copa.

“Eu sei que vou / Vou do jeito que eu sei / De gol em gol / Com direito a replay / Eu sei que vou / Com o coração batendo a mil / A taça na raça é Brasil (ou É taça na raça, Brasil!)” diz o refrão assimilado por todos.

A diferença entre essas três e “Povo Feliz” estava no intérprete. Leovegildo Lins da Gama Júnior, nascido em João Pessoa, na Paraíba, mas carioca de sangue, suor e ginga, era apaixonado por praia, futebol e samba. Junior, o Maestro, como ficou conhecido o meio-campista e lateral do Flamengo e da Seleção Brasileira, sempre bateu sua bola na areia e no morro.

“A gente ia pro samba no Vila Rica, na Ladeira dos Tabajaras. Muitos companheiros do Juventus (time de futebol de praia em Copacabana) iam pra lá. Aprendi a tocar os instrumentos de percussão de samba lá. Repique, surdo… Foi tudo no morro. (…) Isso em 1967, 1968… Eu já tinha 14, 15 anos”, contou Junior numa entrevista pra Leandro Souto Maior e Ricardo Schott, em 2014. “Durante um bom período, no carnaval, antes de ir pros bailes, tocávamos das 15h às 20h, na Avenida Atlântica”, recordou.

Ter um atleta da Seleção cantando era uma jogada de mestre. O atleta conta em entrevista a Pedro Bial como surgiu a chance de gravar a música:

“Foi tudo uma brincadeira. O Alceu Maia, que é o Alceu do Cavaco, e eu jogamos futebol de salão no Flamengo, ele com 16 e eu com 15 anos, lá em 1970. E eu tava na Toca da Raposa. Naquela época, a gente ficava trinta, quarenta dias se preparando pra Copa. O Alceu telefonou pra Toca da Raposa e falou: ‘tem uma música aqui que é a tua cara, se chama ‘Povo Feliz”. Eu falei: ‘ah, Alceu, tô preocupado em jogar, cara, daqui a dez dias estamos indo embora’ (a Seleção ia embarcar pra Portugal, fazer a reta final da preparação). Mesmo assim ele mandou a fita cassete. Chamei o Edevaldo, lateral-direito do Fluminense, meu parceiro de samba: ‘bora ouvir uma música que o Alceu mandou’. Quando a música rolou, ele falou: ‘ih, cara, isso é a sua cara, mesmo!’. O Alceu queria que eu gravasse isso e o Edevaldo ficou me botando pilha, ‘vai, cara, vai ser legal’. Liguei pro Alceu e ainda falei que não tinha tempo. ‘Não, deixa comigo. Se prepara, porque no sábado de manhã a gente vai pra gravadora pra colocar a voz nisso aí. Vê só se você se segura na sexta-feira, vai dormir cedo…’. Pô, eu tava trinta dias na Toca da Raposa, concentração, e tinha um pagode ali na Bartolomeu Mitre (no RJ), não tinha como, fui e saí de lá amanhecendo. Mas foi até bom, porque nesse pagode nós cantamos a música, então quando cheguei na gravadora a música tava na ponta da língua. Entramos no estúdio às dez horas da manhã, quando deu meio-dia, uma hora, já tava tudo certo”.

Um jogador titular do clube de maior torcida do país e da Seleção Brasileira sair da concentração e cair na noitada às vésperas de uma Copa do Mundo, pra ir gravar uma música, é algo inimaginável no futebol de hoje.

Mas a Folha de São Paulo, de 29 de maio, reportava o caso assim: “Junior, um dos melhores laterais do mundo, grava o primeiro disco de sua vida, um compacto simples com dois sambas exaltando e incentivando o time na campanha da Copa do Mundo. Num lado, o jogador gravará ‘Pagode Da Seleção’, que ele próprio compôs, com Alceu Do Cavaquinho, e no outro, ‘Voa, Canarinho’, de Memeco e Nonô Do Jacarezinho. Segundo o diretor artístico da RCA, Paulo Varela, o compacto será lançado a partir do dia 7 de junho e poderá ser adquirido em todas as lojas de discos do país. Inicialmente serão prensadas cem mil unidades e uma parte delas irá pra Espanha, pra promoção da Seleção na emissoras das cidades onde o Brasil jogar. ‘Já me disseram que não sou tão bom no disco quanto no campo – brinca Junior – mas, já que gosto de samba, não custa nada fazer a experiência. Se der certo, juro que gravo outras’. Ontem, ele assinou seu contrato com a gravadora. ‘Um contrato mais na base do amor à música do que às cifras’, explicou”.

Em duas horas, havia nascido o compacto simples, com as duas músicas. No lado A, “Povo Feliz”, de autoria de Jorge “Memeco” Américo e Nonô do Jacarezinho, com os versos que caíram logo na boca do povo: “Voa, canarinho, voa / Mostra pra esse povo que és um rei / Voa, canarinho, voa / Mostra na Espanha o que eu já sei”. No lado B, o “Pagode Da Seleção”, de Alceu Maia e Junior, que passou como se nem existisse.

No mesmo dia, veio a gravação do clipe pro “Fantástico”, onde Junior e sua turma aparecerem meio sisudos. Era cansaço, depois de uma virada de noite no pagode, um pouco de praia, umas horas no estúdio de gravação e outras horas com a equipe da Globo pra acertar luz e locação pro clipe. “Eu tava mortinho”, ri Junior na entrevista pra Pedro Bial. O clipe foi ao ar dia 30 de maio, como trilha do avião da Seleção decolando pra Europa. O timing era perfeito.

A RCA Victor, Memeco, Nonô e Alceu não podem reclamar. O compacto vendeu, em vinte e três dias, até a eliminação do Brasil na “Tragédia do Sarriá”, oitocentas mil cópias (os números variam de setecentas a oitocentas mil), um fenômeno sem precedentes pra um disco de estreia. As vendas só enfriaram, bruscamente, com a eliminação do time na Copa.

Aqui, na íntegra, as duas canções:

A música virou um símbolo do fracasso da Seleção, identificando-se ali um exagerado otimismo que pode ter influenciado na performance dos jogadores em campo.

Mesmo com essa fama, havia nascido um hino pra história. A música continuou um baita sucesso e foi regravada muitas outras vezes, em muitos outros mundiais, inclusive pelo Junior.

O sucesso levou Junior a gravar seu primeiro disco cheio ainda em 1982. Chamado de “Junior” e mais uma vez lançado pela RCA Victor. Ele interpreta músicas de Dedé Da Portela (“Lavadeira”), Martinho Da Vila e Luiz Carlos Da Vila (“No Terreiro”), Noca Da Portela (“Coisas Da Vida”), além de algumas dos autores do compacto José “Memeco” Américo, atleta de vôlei que defendeu o Brasil nas Olimpíadas de 1968, na Cidade do México, Nonô Do Jacarezinho e Alceu Do Cavaco.

Em 1990, tentou a sorte de novo, dessa vez com o álbum “Tem Que Arrebentar!”, agora pela EMI-Odeon, interpretando músicas de Alceu, Aldir Blanc, Arlindo Cruz, Sombrinha, Nei Lopes, Almir Guineto, Leci Brandão, Mauro Diniz, Zeca Pagodinho e outros. Como aquela Seleção na Itália, o disco foi um fracasso.

Talvez fosse excesso de otimismo achar que Junior seria um craque nos microfones tanto quanto armando um time no meio de campo. “Povo Feliz” foi um daqueles gols que até os craques só fazem uma vez na vida.

Lado A
1. Povo Feliz

Lado B
1. Pagode Da Seleção

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