SPACEMEN 3 E UMA TARDE DE MÚSICA CONTEMPORÂNEA COM SITAR

“Foi vendido como ‘uma tarde de música contemporânea com sitar’, o que talvez tenha sido um tanto enganador, visto que nenhum de nós jamais tocou seriamente um sitar, nem tínhamos um conosco. Sonic Boom trouxe seu saz, um instrumento turco que que soa agradavelmente em drones e que pode ocasionalmente produzir som em escalas orientais. Infelizmente, aquele instrumento particular tinha sido roubado por algum filho da mãe. O saz turco era na verdade uma parte intrínseca do som Spacemen 3. Pegue um e toque alguma escala ascendente de uma nota, se você não acredita em mim. Talvez tivesse ouvido o saz em alguma visita à Turquia, quando era adolescente, e isso convenceu Sonic – então ainda Peter Kember – que não era necessário ser um virtuoso pra produzir um som convincente e espiritualmente reconfortante. Menos é mais, às vezes, então se você consegue soar bem usando um dedo, então, por que não? Você não ganha pontos com embelezamentos desnecessários e acordes de jazz aleatórios que só impressionam seus amigos”.

O parágrafo acima é do livro “Playing The Bass With Three Left Hands”, de Will Carruthers, que tocou com o Spacemen 3 por quase três anos, substituindo Pete Bain em 1988 e partindo pra famosa turnê do S3 pela Europa em 1989. Carruthers saiu do grupo em 1990, mas logo seguiu Jason Pierce no recém-formado Spiritualized, onde ficou até 1992. Desde 2006, Carruthers toca com outra banda icônica dos subterrâneos dos sons alucinantes, The Brian Jonestwon Massacre.

O livro foi lançado em setembro de 2016, pela Faber & Faber, sem edição nacional. Nele, com um estilo meio errante, como se estivesse contando pretensiosamente suas histórias pra desconhecidos em mesa de bar, Carruthers descreve passagens curiosas principalmente do Spacemen 3 e do Spiritualized, como no trecho recortado acima, falando do “Dreamweapon: An Evening Of Contemporary Sitar Music”, disco ao vivo que o Spacemen 3 lançou em 1990, pela Fierce Recordings, e que tinha basicamente uma música só, intitulada “An Evening Of Contemporary Sitar Music”, mas que era uma viagem da banda, em looping, formada por duas canções, “Honey” e “Come Down Softly To My Soul”.

O disco foi a gota d’água pra desmanchar de vez a parceria entre Kember e Pierce, que vinha desde 1981, quando a dupla se conheceu na escola em Rugby, Inglaterra.

Em 1982, o Spacemen 3, com Pete Bain no Baixo e Tim Morris na bateria, era anunciado da seguinte forma: “nós somos os Spacemen! A qualquer um que esteja escutando, nós assim nos batizamos”. Pra evitar confusão com o grupo de R&B dos anos 1950, adicionaram o número “3” no cartaz que dizia “seus sonhos são três vezes maiores à noite?”. Embora, fossem quatro na banda, assim ficaram, Specemen 3. O show anunciado, o primeiro da história deles, seria numa festa particular, numa casa. Foi ensurdecedor, e a polícia acabou colocando fim em tudo. Foi uma boa estreia.

É só em 1985 que o Spacemen 3 engrena mesmo, com Nicholas “Natty”” Brooker na bateria e Bain no baixo. É aqui que a banda começa a gravar suas primeiras demos. Nessa época, Kember e Pierce estavam com a heroína pipocando a todo vapor. Conta a lenda, nunca confirmada, que eles venderam os direitos de suas músicas pra um empresário em troca de grana pra comprar heroína. Alimentar essas lendas tornou-se um bom negócio, numa época em que a informação passava pelo filtro dos fanzines e periódicos de música. Tanto que as demos gravadas em janeiro de 1985, em Northampton, acabaram sendo lançadas em 1994, anos após o fim do grupo, na cultuada coletânea “Taking Drugs To Make Music To Take Drugs” (tomando drogas pra fazer músicas pra se tomar drogas).

Foram essas demos que caíram nas mãos de David Barker, da Glass Records, que logo ofereceu um contrato de dois discos.

“Sound Of Confusion”, o disco de estreia, lançado em 1986, e gravado com menos de oitocentas libras, tinha três coveres e quatro produções originais assinadas por Kember e Pierce.

Sobre o disco, Pierce disse: “estávamos todos tocando na sala, até que algo veio através do telhado, o som que estávamos ouvindo era como de algum outro planeta ou algo assim. E isso é o que Spacemen 3 era. De repente, nos vimos fazendo este tipo sobrenatural de som que nos elevava a outro patamar”. Mas o que o disco mostrava mesmo era a fagulha de uma divisão de visão temática: Pierce buscava essa “elevação” via o gospel e apreço pelos temas da religiosidade negra estadunidense (o refrão de “Hey Man” virou claramente “Amen”), enquanto Kember buscava a elevação pelas drogas, personificadas no som sujo dos Stooges ao 13th Floor Elevators.

Depois, de lançarem o brilhante segundo disco, “The Perfect Prescription”, em 1987, passaram a ser fortemente comparados ao Velvet Underground, inclusive por conta dos shows sempre imprevisíveis. Enquanto o Jesus & Mary Chain abrandava seu som pra caber em ondas radiofônicas (como aconteceu com o “Darklands”, do mesmo ano), o Spacemen 3 também abrandava a sujeira garageira, mas com outro propósito – atingir outra dimensão.

O reconhecimento da crítica por “The Perfect Prescription” levou o Spacemen 3 a uma turnê pela Europa. Mas logo a coisa degringolou, por conta das drogas e do temperamento divergente de Kember e Pierce. Bain e Stewart “Rosco”” Roswell, o baterista que substituiu Brooker, saíram do grupo. O contrato com a Glass Records não foi renovado (ainda lançaram o “Performance”, disco ao vivo, de 1988, gravado no Melkweg, Amsterdã).

Conseguiram assinar com a Fire Records e lançaram o significativo “Playing With Fire”, em 1988, com a tremenda “Revolution”, uma das mais barulhentas guitarras já gravadas.

Foi nessa época, logo após a gravação do disco, que Will Carruthers entrou na banda.

Em 19 de agosto de 1988, aconteceu o show no Waterman’s Art Centre, em Londres, o tal da “tarde de música contemporânea com sitar”.

Carruthers, em seu livro, descreve a curiosa expectativa de quem compareceu ao evento: “deve ter sido bem possível pra aquela pessoa imaginar que estava ouvindo algum tipo fabuloso de música de sitar ‘contemporânea’, especialmente se ela nunca tinha visto ou ouvido um sitar antes”. E completa: “ao invés disso, o que as pessoas estavam prestes a conseguir não se aproximava em nada daquilo que qualquer estudioso da música consideraria ser um sitar, seja hoje, ontem ou em algum momento no futuro. Tínhamos drones, mas não tínhamos sitar algum. Poderia ter sido vendido, com a mesma exatidão, como uma noite de música contemporânea de sanfona ou de gaita de foles, mas talvez isso pudesse ter afastado algumas almas tímidas”.

A apresentação no Waterman’s Art Centre aconteceria antes da exibição de “Asas Do Desejo”, o hoje já considerado clássico filme de Win Wenders. Havia uma fila enorme de pessoas pra ver o filme. E quase ninguém pra ver uma apresentação de “música contemporânea de sitar” de uma banda que aquele público certamente não fazia ideia de quem fosse.

“Agora, você veja: nós estávamos lá, tínhamos umas guitarras legais e íamos tocar e ser pagos por isso, o que era basicamente o que a gente fazia naquele tempo”, diz Carruthers. “Se o preço era tocar um única nota por um longo tempo, ao invés de acidentalmente entreter a audiência que esperava pacientemente o começo de ‘Asas Do Desejo’, além das quinze pessoas que foram pra nos ver, então que seja. O Spacemen 3 certamente não era o que você esperava encontrar em centros de arte repeitáveis e com credibilidade, no final dos anos 80. Bandas realmente não tocavam em galerias, ou pelo menos não a gente. Nós geralmente tocávamos em lugares caindo aos pedaços, fedendo a cigarro e suor, onde os amantes de arte obviamente não estaria. Tocávamos pra bêbados, basicamente. E, com frequência, os únicos bêbados em galerias e centros de arte são justamente os artistas”, continua.

“E só porque era ‘arte’, a gente nem ensaiou. Peter e Jason tocariam uma coisa e o resto de nós tocaria uma única nota. Não havia músicas pra gente aprender, nós não precisávamos de uma bateria ou de passagem de som. Só tínhamos uns poucos amplificadores conosco. Fácil. Ficar doidão, tocar alguma música, acelerar e, então, fazer aquela hora e meia como se dirigíssemos pra casa”, escreve o baixista sobre a noite que se tornaria clássica.

“‘Basta tocar uma nota’, foi o conselho que Sonic Boom (Peter Kember) nos deu. ‘Faça tudo simples. Uma nota. Sem frescuras’. Por ‘frescura’ ele queria dizer ‘duas ou mais notas’. Qualquer coisa além disso não tinha propósito. Podíamos tocar no máximo uma nota. Qualquer um pode fazer isso. Um macaco pode fazer isso. Mas poderia um macaco chapado fazer isso com sentimento e sem perder seu senso de identidade?”.

Tudo parecia ao mesmo tempo enfadonho e divertido, se é que dá pra encontrar um equilíbrio pra isso. Os organizadores chamaram a banda e lá foram eles – Will Carruthers (baixo), Jason Pierce e Steve Evans (guitarras), Peter Kember/Sonic Boom (guitarra) e, como creditado no disco, Pat Fish (baseado).

“Atrás de nós havia uma fila de pessoas esperando o cinema abrir. Ajustamos as guitarras e ligamos nossos amplificadores. Sonic tocou o primeiro acorde. A guitarra pulsou normalmente, por conta própria, ele girou o seletor no tremolo. ‘W w w w w w w w w w w w w w w w w w w’, soou, transformando o tempo em incerteza atômica e mística probabilidade. Fiz a nota mais discreta que poderia. Nada muito baixo e nada muito alto. Comecei como eu queria e fui… e fui… e fui. Soou bem. Eu estava tão no tempo da música que eu mal podia ouvir a mim mesmo…”, escreveu.

Carruthers revela um divertido exercício que ele fez pra manter-se ativo, no ritmo, no tempo daquela experiência insana: “vamos pegar uma palavra. Vamos escolher a palavra ‘morango’. Respire fundo e diga essa palavra ritmicamente até você ficar sem fôlego. Agora faça de novo… e de novo… e de novo, até que pare de fazer qualquer sentido verbal ou audível pra você. Agora, tente dizer a mesma palavra por vinte minutos… E por aí vai. É difícil, mas, porra, soa bem e faz sentido. O tom é prazeroso… E agora a banda está tocando toda junta e quase alto o bastante pra abafar todas aquelas pessoas que não paravam de falar ali num canto do bar sobre o quão ruins nós éramos”.

Lá pelo décimo sexto minuto e meio, uma voz é ouvida: “Ladies and gentlemen, would you please take your seats for this evening’s showing of ‘Wings Of Desire'”. O filme ia começar, mas a banda não parou. “Era como a voz de deus”, lembra Carruthers.

Ele descreve com precisão o que se ouve: “as formas espectrais, os arquétipos melódicos flutuam e desaparecem, enquanto a besta mítica ocasional surge do oceano de drones, subindo e submergindo com apenas uma ondulação. As cores imaginárias pulsam lisergicamente, e o lapso do tempo é esquecido dentro dos limites do som ilimitado. Como poderia tão pouco significar tanto? E o que aconteceu com todas aquelas perguntas estúpidas e sem sentido que pareciam tão importantes antes? Após quarenta e quatro minutos e dezessete segundos deste tipo de coisa, a nossa máquina de movimento perpétuo começa a sua descida de volta pro que entendemos como ‘a realidade’. A música termina e um punhado de aplausos saúda o alívio e a decepção do relativo silêncio”.

A grande surpresa veio quando ele foi desligar seu amplificador: “vi que os outros músicos haviam terminado e, sem seguida, me abaixei pra desligar me amplificador. Fiquei bastante surpreso ao descobrir que era impossível desligá-lo. Era impossível desligá-lo porque eu na verdade sequer o havia ligado. Foi bastante confuso e embaraçoso, até que eu percebi que ninguém, nem mesmo eu, que estava sentado no meu amplificador, tinha realmente notado que não estava ligado. Um macaco poderia ter feito o que eu tinha acabado de fazer. Um macaco inexistente poderia ter feito isso”.

Carruthers tocou naquela apresentação, mas ele não é ouvido. Nem por ele mesmo. Se não estivesse ali, tanto fazia. “Uma gravação desse show continua a vender, quase trinta anos depois. Até hoje. Eu não tenho certeza se era arte ou não”.

Pra maioria das pessoas, fãs do Spacemen 3 principalmente, era. Por conta de histórias como essas, de shows como esse, suas apresentações se tornaram tão famosas, embora não necessariamente concorridas, que bootlegs pipocavam aos montes. Mas os cassetes que eram vendidos pelos clubes ingleses com essas apresentações não acabavam no bolso de Kember ou Pierce.

Por isso, em 1990, Kember ofereceu a Steve Gregory, co-fundador do selo Fierce Recordings, do País de Gales, a gravação do show do Waterman’s Art Centre. Ele não queria deixar de ganhar seu quinhão com a venda de seus próprios shows gravados. Mas não avisou a Pierce sobre a ação. Tomou a decisão sozinho.

A Fierce Recordings era um selo atípico, especializado em bootlegs, criado por Gregory e Steve “Haggis” Harris em 1985. O primeiro disco que eles puseram na praça foi uma gravação de “The Love And Terror Cult”, de Charles Manson – a mesma capa, as mesmas faixas, só com outro título.

A Fierce não pensou duas vezes em lançar “Dreamweapon: An Evening Of Contemporary Sitar Music”, em 1990, como bootleg oficial, um disco de carreira do Spacemen 3. Era, convenhamos, um ótimo negócio: uma exclusividade entregue por um membro da própria banda, sem ter que assinar contrato, sem burocracia… Só lançar e passar no caixa pra retirar a grana.

(Vale ler também o livro de Erik Morse, “Spacemen 3 & The Birth Of Spiritualized” – de 2005, sem edição brasileira – que conta mais detalhes sobre “Dreamweapon: An Evening Of Contemporary Sitar Music” especificamente sobre a expressão “dreamweapon”)

Pìerce e Kember já vinham se desentendendo e “Playing With Fire” acabou dando pistas. A divisão entre eles fica clara nos créditos de composição, que pela primeira vez mostram o duo reconhecendo suas próprias músicas e não mais em dupla. O disco deixa clara a diferença entre os dois: Pierce compõe canções focadas mais em spiritual e gospel, enquanto Kember usa repetições, loopings e drones.

Após a turnê pela Europa, a Fire Records tinha mais um disco pra lançar, e mais uma vez a divisão entre ambos ficou evidente. Eles trabalharam em separado, sem se encontrar, pra fazer “Recurring”, o derradeiro disco, lançado em 1990 – e “Recurring” nem é exatamente um disco do Spacemen 3, já que um lado é do Sonic Boom e outro é do Jason Pierce-quase-Spiritualized. Um anos antes, pela Silvertone Records, Sonic Boom lançou seu primeiro single, “Angel”, e estava prestes a colocar no mercado seu ótimo disco de estreia, “Spectrum” (conheça aqui), que ironicamente tinha a participação de Pierce, num dos últimos trabalhos deles juntos.

Antes de “Recurring” ficar pronto, Pierce recrutou Jon Mattock (bateria), Mark Refoy (guitarra), ambos da última fase do Spacemen 3, e Carruthers, pra tocar com o Spiritualized que ele acabara de montar. Segundo Pierce, ele chamou os três músicos porque era basicamente os únicos que ele conhecia. O single “Anyway That You Want Me”, um cover dos Troggs, saiu em junho de 1990. Kember conta que ficou surpreso com a “rasteira” de Pierce.

Mas Pierce ainda estava com “Dreamweapon: An Evening Of Contemporary Sitar Music” engasgado na garganta. Tanto ele quanto Kember conheciam Gregory, da Fierce Recordings, e por conta disso e pra alfinetar Kember, Pierce soltou oficialmente pra Gregory a gravação de uma apresentação no The Mean Fiddler, de Nova Iorque, em 1987 (muita gente acredita que a gravação foi feita na Universidade de Londres, em outubro de 1987). O resultado é “Revolution Or Heroin”, um explosivo disco ao vivo, com o Spacemen 3 em sua melhor forma, aumentando o volume ao máximo.

“Revolution Or Heroin” é conhecido por muitos fãs do Spacemen 3 como “o disco da vingança de Pierce”. Foi também o derradeiro disco lançado pela Fierce Recordings, que colocou o material no mercado em 1995, quando o Spiritualized já havia inclusive lançado dois álbuns. É tido por alguns críticos como “bem melhor e mais poderoso” do que o ao vivo oficial “Performance”, de 1988.

A “tarde de música contemporânea com sitar”, sem a sitar, foi o que pode ser detectado como o começo do fim do Spacemen 3. Foi um dia e tanto, gravado pra posteridade, o dia em que a arte foi marcada com uma nota só – mas que desencadeou o fim de uma das bandas mais legais da história.

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