V-ROX, O FESTIVAL DO OUTRO LADO DO MUNDO

Quem já jogou “War” uma vez na vida, vai lembrar de um território de nome um tanto esquisito que ficava no extremo leste da Ásia e ocupava o terreno das Coreias e parte da China e da Rússia (à época, ainda União Soviética). Vladivostok existe de fato, como todo mundo sabe, mas é uma cidade, capital do Território Marítimo (Primorsky Krai), uma das nove subdivisões administrativas do Dalnevostochny Federalny Okrug (Distrito Federal do Extremo Oriente – a Rússia é dividida em nove regiões como essa, os federalnyye okruga, distritos federais).

Vladivostok tem quase seiscentos mil habitantes (censo de 2010) e fica no extremo sul da Península de Muravyov-Amursky, banhada pelo Mar do Japão. É a cidade mais populosa do Distrito Federal do Extremo Oriente (que é o menos populoso da Rússia) e também a mais cosmopolita.

Fica a pouco mais de nove mil quilômetros da capital Moscou e é ponto final da famosa ferrovia Transiberiana. Vladivostok é também o maior porto russo no oriente, com forte indústria marítima e saída fácil pra Coreia do Sul e Japão, bem como Oceania, sul da Ásia e costa oeste das Américas.

Pra se ter uma ideia da distância pra capital do país, de Moscou a Vladivostok um viajante da Transiberiana cobriria oito fusos horários e levaria seis dias e meio pra percorrer o caminho (de avião são pouco mais de oito horas de voo). É possível assim imaginar que a veia cultural local está mais ligada a artérias orientais do que europeias. O mundo ocidental está bem longe.

Longe, mas presente no ideário da juventude daquele canto do mundo – porque jovem é jovem em qualquer lugar, oras.

É pra cobrir uma lacuna considerável de eventos pra massa jovem que surgiu em Vladivostok, em 2013, o que viria a ser considerado o maior e mais importante festival de música, cinema e negócios dessas indústrias na região, o V-Rox. É o que alguns chamam de “SXSW do mar do Japão”, por apresentar shows, palestras, mesas de debate e negócios, filmes etc.

A primeira edição teve mais de quarenta bandas, da Coreia do Sul (No Brain, headliner, além de Apollo 18 e Goonam), China (a já clássica P.K. 14, também headliner, além de Wang Wen), Japão (Ego-Wrappin’, headliner, além de Scarlet Diva, Emufucka e o produtor Daisuke Tanabe), Esteites (Julien-K, headliner), Hong Kong (Peri M), Singapura (Mark Bonafide & DJ Andrew Chow), África do Sul (Matthew Mole), Ucrânia (Kulakostas), Letônia (Oid) e bandas dos mais distintos lugares da Rússia, de Moscou a Vladivostok (foram escalados dezessete artistas e bandas locais!), passando por São Petersburgo, Novosibirsk (na Sibéria), Lesosibirsk e Ecaterimburgo.

Um dos headliners foi a banda Mumiy Troll, grupo formado em 1983 por Ilya Lagutenko. Ilya é a mente criadora do V-Rox, o Perry Farrell local. “Speed” foi um razoável sucesso, do seu décimo terceiro disco, “Malibu Alibi”:

Ilya também é ator de cinema e trabalhou num dos grandes sucessos russos recentes, “Guardiões Da Noite” (Nochnoy Dozor/The Night Watch, 2004), com direção de Timur Bekmambetov, que foi captado por Hollywood pra dirigir “O Procurado” (Wanted, 2008), “Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros” (Abraham Lincoln: Vampire Hunter, 2012) e a nova versão de “Ben-Hur” (2016).

É o nome de Ilya que a audiência gritava no início do show da primeira edição do V-Rox. As apresentações aconteciam por toda a cidade, em praças, clubes, parques, onde quer que Ilya tivesse conseguido autorização pra tal. Como é gratuito e acontece em muitos espaços públicos, o V-Rox está mais pra Virada Cultural do que pra SXSW. Independente do perfil da comparação, entre os dias 22 e 25 de agosto de 2013, Vladivostok fervilhou pela primeira vez.

A bem da verdade, Ilya conseguiu grande apoio governamental. O próprio prefeito de Vladivostok, Igor Pushkaryov (não confundir com o ator de mesmo nome), um sujeito acusado formalmente de corrupção e abuso de poder, foi um entusiasta do V-Rox desde o início.

O governo atuou intensamente na produção, oferecendo energia, policiais pra segurança dos palcos (!), estrutura, apoio logístico e contatos com patrocinadores. Um deles foi a S7 Airlines, uma companhia aérea que surgiu na Sibéria, mas tem sede em Moscou, que transportou os artistas e convidados de graça, a partir de Moscou – mas com uma inconveniente escala em Novosibirsk, na Rússia central.

O próprio Pushkaryov, do palco principal, anunciou a entrada da banda de Ilya, a Mumiy Troll, na primeira edição.

Ele entende que “pra cidade de Vladivostok, pra região de Primorsky e pra Rússia como um todo, a realização de tal evento é um importante projeto social, bem como um estímulo pro crescimento econômico na região do Extremo Oriente, em particular pra indústria do turismo”.

A Mumiy Troll ao vivo na edição de 2013 (Ilya é o vocalista):

Vladivostok, há até vinte e cinco anos, era uma base naval estratégica pra Rússia e, por isso, era proibida de receber estrangeiros, e estava isolada de qualquer influência cultural externa. Isso mudou e o governo de Vladimir Putin vem investindo no local de maneira intensa.

Em 2012, a cidade recebeu o Encontro Econômico de Cooperação Ásia-Pacífico. O governo investiu perto de vinte bilhões de dólares em estrutura pra receber as comitivas. Um centro de convenções foi construído na Ilha Russky, que era uma ex-base militar secreta, e tem ligação com o continente pela maior ponte estaiada do mundo, também erguida pro evento. Como o centro foi projetado com capacidade e estrutura acima do necessário, o complexo segue subutilizado, de modo que o governo cedeu as instalações pra acomodar os artistas e equipe do festival.

Por fim, Pushkaryov deu uma entusiasmada entrevista pra explicar os motivos da cidade ter mergulhado de cabeça no V-Rox: “Vladivostok (que quer dizer, numa tradução forçada, “conquistadores do oriente”) não é diferente do ocidente, a cidade precisa estar integrada com a cultura global, por isso os portões estão abertos a todos”.

Após a primeira edição do evento, que conseguiu boa cobertura de veículos como o Guardian, Filter e New York Times (leia aqui a tradução pra Folha de São Paulo de um artigo original do NYT), Iuliia Kriukova, 28, vocalista do grupo InWhite, de Moscou, disse que “esse foi um momento essencial pra Rússia do ponto de vista criativo: ‘durante muito tempo, estivemos em um vácuo cultural’. Após passar dias com músicos do mundo todo, ela teve uma sensação de pertencimento: ‘Estamos todos no mesmo nível'”, publicou o NYT.

O festival, como veículo de inclusão global e cultural não se distancia do seu vértice político. É um evento político, pelo menos por parte do governo. Por isso, há ouvidos de mercador pra quaisquer declarações desse tipo. Putin, que vem se destacando como um intolerante ao que é divergente, parece não ligar muito com o que saia daqueles microfones apoiados oficialmente, embora os artistas escolhidos também não sejam muito inclinados a discursos contundentes.

Os membros da banda coreana Goonam são apoiadores dos direitos dos homossexuais e sabiam da cultura intolerante russa com relação ao tema, quando foram convidados, mas o baixista do grupo, Eem Byung Hak, desconversou: “eu não penso nesse festival como política, apenas amizade”.

O artigo do New York Times lembra como esse traço do perfil russo ainda é degradante: “o V-Rox ainda está muito longe do status obrigatório e acessibilidade do SXSW. Marketing em si é algo que a cidade ainda pode precisar de ajuda. Um vídeo promocional mostrado no festival, por exemplo, vangloriou-se de que Vladivostok tenha ‘as garotas mais bonitas'”.

Numa análise mais ampla, Vladivostok não poderia ficar isolada pro resto da vida. Nem censurando a Internet (o que jamais aconteceu oficialmente), seria possível segurar a efervescência jovem da cidade. O mundo não tem mais fronteiras – esse é um clichê preferido sobre os tempos atuais, de verdade rascante e por isso inevitável. O que se decidiu foi transformar em negócios o local geográfico estratégico, a beleza da cidade e a força explosiva dos jovens, aproveitando a potência da segunda economia mais vibrante dos BRICS. O V-Rox é só mais um desses negócios bem-sucedidos. E veio pela insistência do agitador Ilya Lagutenko.

Cartaz da edição 2016:

Ilya nasceu em 1968, em Moscou, mas logo após a morte de seu pai, se mudou pra Vladivostok. A fervilhante cultura local mexeu com o menino logo cedo. Aos onze anos, já tinha uma banda punk, a Boney P. Aos quinze, formou a Mumiy Troll, que até 2017 havia lançado quatorze discos.

Hoje, Lagutenko é um cidadão rico. Tem casas em Los Angeles, Moscou e Vladivostok e sua banda tem uma agenda cheia pela Rússia e, veja só, palcos do oriente – do Japão a Singapura. Quem precisa do Primavera Sound ou do Lollapalooza, afinal?

No site oficial do evento, Lagutenko descreveu sua criação como “um festival de música de três dias, em agosto, que ajudou a estabelecer Vladivostok como um farol internacional pras artes na região Ásia-Pacífico, combinando música e conferência internacional pra indústria. É uma oportunidade única pros aspirantes a artistas e produtores obterem exposição – tanto pra novas audiências como pros principais profissionais da indústria da música internacional”.

“A ideia do Festival V-ROX é promover e facilitar uma jornada de descoberta – as pessoas podem, e devem, usar o festival pra descobrir por si mesmas a infinidade de coisas interessantes ao seu redor. Queremos que as pessoas se abram, sejam receptivas e vejam e experimentem, em primeira mão, o que está acontecendo ao seu redor nesta próspera região cultural do mundo”, escreve.

Filme oficial da edição de 2015:

Assim, ao longo das quatro edições – 2013, 2014, 2015 e 2016 – mais de mil e quinhentos músicos, profissionais da indústria e jornalistas, de todo o mundo, como Coréia do Sul, Japão, Rússia, Mongólia, Ucrânia, África do Sul, China, Alemanha, Esteites, Letônia, Lituânia, Singapura, em mais de quatrocentos shows, com um público em torno cem mil pessoas e outras duzentas e cinquenta mil assistindo ao vivo, online, pela Internet.

Embora esses números oficiais não possam ser confirmados ou auditados, eles expõem um festival em constante crescimento. Pra edição de 2017, que acontece de 4 a 6 de agosto, a organização espera o maior número de público da história, que tem uma média de vinte e cinco mil por edição. É um número baixo pros padrões dos festivais europeus e até mesmo brasileiros, mas é preciso levar em conta as dificuldades de acesso, mesmo de países próximos como a Coréia do Sul, China e o Japão (das capitais desses países só se chega de avião, os vôos não são diários, e duram de duas a três horas), e da própria Rússia. Da capital da Mongólia, Ulan Bator, pra lá, há só um voo com escala e o trajeto dura mais de oito horas; de carro, são dois dias dirigindo, quatro mil quilômetros.

Os nomes pra edição de 2017 não estão fechados, mas estão confirmados artistas como a boa Weary Eyes (da Rússia), National Pigeon Unity (Coréia do Sul), Elektromonteur (Rússia), Jan&Naomi (Japão), Rec On (Mongólia) e Graham Candy (Nova Zelândia).

Não se sabe como o festival se sustentaria sem o apoio governamental. Por ora, não há motivo nem previsão de recuo. O V-Rox parece ter fôlego e apoio pra seguir como uma das mais frondosas bandeiras de promoção desse fervilhante leste, do outro lado do mundo.

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