COSMOPOPLITAN #12 – PARIGI/PERUGIA

– Bestia.

– O que foi?

– Achei muito legal mas estou enrolado com esta tradução aqui.

– O que é?

– É o roteiro de um documentário sobre um grande cordelista.

– Literatura de cordel?

– Isso. Então, já viu, eu que sou paulista, empaco a cada duas linhas pra processar os modos regionais, a pontuação diferente… Saca transcriação, tradução literária, de poesia?

– Sim.

– Pois é, não é a minha área…

– Tua camiseta da banana me inspirou, vou botar um show aqui pra gente escutar.

– Que show?

– Lou Reed, John Cale e Nico em Paris, no Le Bataclan, em 72. Eles tocaram canções do Velvet Underground e das carreiras solo de cada um. Só os três no palco, clima intimista e público em sintonia, o Lou Reed até se concede agradecer os aplausos, rara beleza.

– Espera, Le Bataclan? Aquele mesmo do ataque terrorista, lá?

– Sim, esse mesmo, pô, quando aconteceu essa barbaridade aí eu fui ler sobre o Le Bataclan e ali já foi palco pra muito show de rock bom: Jerry Lee Lewis, Captain Beefheart, New York Dolls, The Clash, The Fall, My Bloody Valentine…

– Eu fui lá faz menos de dois meses!

– (risos) Você, durango desse jeito, foi a Paris?

– Sim, fui e nem saberia bem te dizer o motivo; seria descolado se eu dissesse que fui a Paris por putaria? (risos) Em parte foi, mas não sei mesmo.

– Eita, entendi foi nada, me conta?

– Conto. De boa. Como fui me meter com a Elena. Uma sarda que mora em Paris. Em intercâmbio estudantil no Brasil, minha ex-colega de classe na USP. Dá um pega forte e relaxa, aqui vou eu.

(imagine aqui um efeito de passagem de tempo, flashback – e leia ouvindo o disco acima)

O ano de 2016 mal começou e meu casamento acabou. Não nos suportávamos mais. Fiz a inscrição pra um edital de intercâmbio da USP e fui morar numa república no Butantã, trampando durante o dia como professor de inglês e tradutor frila, e assistindo as aulas de noite, puta cansaço e uma dureza de foder. Depois do espaço cultural, aliás, dureza nem era novidade; eu e a Luciana engravidamos e logo depois do nascimento da nossa filha, fechamos as portas.

Combinamos de evitar aquele ritmo de vida em que a criança tem menos contato diário com os pais do que com outros e enquanto a Luciana voltou pro emprego antigo dela, eu fiquei em casa cuidando a tempo integral de nossa filha. Até os dois anos e meio dela foi assim.

Então, nos separamos e de repente minha filha passava o dia na creche e eu procurando emprego, amargurado e perdido.

Minha ideia, então, foi levantar minha auto-estima, entrei no Tinder; houve algumas novas amizades, legais, algumas presepadas e algum sexo também. Aos 41 anos de idade, me deparei com a novidade que era perceber as diferenças, negativas e positivas, entre a vida de casado e a de solteiro. Mas a sensação de confusão só diminuiu quando vi que fui selecionado pro intercâmbio. Seis meses em Perugia, sem bolsa de estudo. Ao invés de confusão, agora era correria, eu tinha que guardar dinheiro. Deixei de pagar as merdas todas no banco e até dependi da caridade da Luciana e fui morar na quitinete dela que estava desocupada, no centro – onde morávamos quando nossa filha nasceu.

Ali, fiquei sem máquina de lavar, sem fogão, sem geladeira, sem coberta. Um frio do cão em São Paulo. Nunca comi em tantos restaurantes e tantas lanchonetes diferentes na vida. Mas era por pouco tempo, logo eu estaria de volta vivendo na Itália, depois de quase oito anos. A Luciana me deixava lavar roupa na casa dela e eu podia ver nossa filha tranquilamente. A única outra opção pra mim seria passar esses últimos dois meses com meu irmão Paulo, mas ele morava longe, no interior. Na quitinete eu podia ficar com minha filha. Era demais.

Logo no meu primeiro dia de aula, literatura italiana, assim que bati os olhos nela, sentada em meio aos outros poucos alunos naquela classe minúscula, a percebi. Eu a olhava durante a aula toda, a Elena, disfarçadamente, mas não puxei papo com ela, nem ela comigo. Ela parecia ter um corpo muito bonito. Sempre ia às aulas vestida como se estivesse em casa, de moletom, sem maquiagem. Fazia anotação de tudo que a professora dizia. E quieta, só falava o indispensável, quando a professora perguntava e ninguém mais respondia, ou quando se dirigia a ela. Achei que fosse timidez, a aula era em italiano. Vi que seu italiano era perfeito. Deixei pra lá.

Perto do fim do semestre começou a greve na USP e as aulas foram interrompidas. Foi a professora que nos meteu em contato, creio por obra do acaso, pra passarmos o material de leitura pro trabalho final aos demais alunos. Ela foi buscar o material na quitinete, eu terminava de vestir minha filha no sofá-cama, que era o único móvel ali. Eu e minha filha íamos ver uma sinfônica alemã com espetáculo dedicado às crianças, no Ibirapuera. Conversamos por alguns minutos e acenamos um pouco sobre nós, aquilo de se apresentar. Ela não vestia moletom, era jeans. Pela primeira vez sorrimos um pro outro e a despedida foi com abraço. Foda, senti vontade dela. Depois escrevi a ela propondo de nos encontrarmos pra praticar nossos idiomas. Ela topou.

Fomos no CCSP ver “Onde Os Fracos Não Têm Vez” e rimos juntos com o velhinho adorável ao nosso lado que repetia a última palavra de cada fala. Não nos tocamos. Então a levei no porão da São Francisco num evento do Dubversão, eu estava doido pra fumar um mas tudo bem pois ali todos eramos fumantes passivos; só então descobri que ela nem beber bebia. Dançamos, dançamos e comecei a avançar, ela me rejeitou, dançamos mais um pouco e nos despedimos. Pensei que a história acabaria ali. Mas voltamos a sair nos dias seguintes: uma vez fomos à Pinacoteca, outra fomos à Funarte ocupada e nos deparamos com a Erundina, fomos também ver shows de música experimental. Ela estava comigo inclusive quando toquei com a Luciana e nossa filha na Trackers.

Insisti por dois dias e então ela cedeu, mas deixando claro que estava numa fase indefinida – saindo com outros –, que me achava legal etecetera, mas que de mim não queria nada além de amizade e eventualmente sexo. Me convidou pra jantar, pediu pra eu não escolher um dos lugares toscos onde eu comia, fomos ao Ramona e ela fez questão de pagar a conta, foi um jantar mezzo romântico. De lá, voltando à pé pra quitinete, acabamos parando no bar Brahma pra um chope e eu paguei, então fomos até a quitinete e acabamos indo pra cama. E a cama foi pra onde seguimos indo, muitas e muitas vezes a partir de então. Aliás camas. E banheiros. E também lugares menos usuais.

Elena morava num apartamento dividido perto da USP e intercalávamos dias e noites entre o Centro e o Butantã. Estudamos juntos no CCSP e andamos de bicicleta no Villa-Lobos, fizemos piquenique no Ibirapuera, passeamos em vários lugares de São Paulo, inclusive com minha filha. As duas se davam bem demais e brincávamos os três juntos. Ela vivia me pedindo pra tocar o ukulele, pra cantarmos juntos. O ukulele era o único instrumento disponível na quitinete. Passamos a tocar e cantar canções lindas do Lucio Battisti. Me ensinou a cozinhar, cozinhei pra ela, me ensinou a fazer chá de gengibre com limão e mel, fazia sempre pra combater o frio e nosso resfriado, fiz pra ela também; dançamos, cantamos, realmente praticamos muito nossos idiomas, ela passou a lavar a minha roupa, chegamos a imaginar como seria nosso filho, lavávamos um ao outro no banho. Passei a dizer a ela que a amava. Expliquei que não queria reconhecimento nem retribuição, que considero amar algo bonito e que não significa nada além disso. Ela dizia que não se pode dizer isso facilmente, mas chegou a deixar escapar uns três “eu te amo” em ocasiões diferentes e em público se referia a mim como seu “ragazzo”. Era alegre e afetuosa, na cama era gostosa e segura. Dizia que estava muito satisfeita comigo, me disse que eu seria capaz de fazê-la uma esposa feliz; gostava desta minha camiseta aqui, da banana.

Por outro lado, me dizia que eu não fazia seu perfil, nem tanto pelos meus quase dez anos a mais, mas por já ter tido duas famílias; vivia me contando do ex que a deixou em Paris pouco antes dela vir ao Brasil e do recente ex brasileiro. Que estava confusa, que achava que iria acabar sozinha. Eu dizia que apesar de a amar não toparia um relacionamento à distância. Falei do livro que escrevi contando a descoberta da minha italianidade e ela ficou muito interessada pois a pesquisa do mestrado dela era justamente sobre a literatura de italianos emigrados no Brasil e seus descendentes, dei a ela a última das cinquenta cópias da tiragem independente que fiz. Viajamos pra Brasília onde minha banda com a Luciana tocou e depois passamos quase uma semana na Chapada dos Veadeiros. No total foram quase dois meses que ficamos juntos, vinte e quatro horas por dia. E apesar de às vezes bater um clima triste quando lembrávamos que logo aquilo tudo acabaria, me senti muito bem.

Acabei guardando menos dinheiro do que o mínimo que eu tinha previsto. A Elena também gastou mais do que esperava, inclusive bancou um pouco mais do que eu os custos da nossa viagem, estava preocupada com seu retorno. Antes de Paris ela iria passar duas semanas com a família na Sardenha. Ela me contou que seu aniversário seria menos de uma semana depois do retorno a Paris e que provavelmente o passaria sozinha. O intercâmbio dela no Brasil chegava ao fim e o meu na Itália iria começar um mês e meio depois. Decidi chegar antes em Perugia, pra procurar um emprego. Eu disse que iria visitá-la em Paris pra passar o aniversário dela com ela. Ela disse pra eu me limitar a pensar nas passagens pois na minha hospedagem pensaria ela.

No dia em que ela foi embora, sentados num café no aeroporto de Congonhas, combinamos que seríamos amigos pra sempre. Ela disse que sempre que nos reencontrássemos a cama seria inevitável, que seríamos amigos plus, a não ser que um de nós tivesse a sorte maior de encontrar um par. Pediu pra não nos afastarmos, pra continuarmos em contato, mas me pediu pra não contar sobre meus novos flertes e encontros, pois sentiria ciúmes. Eu pelo contrário pedi pra ela me contar sobre seus novos flertes e encontros, ela perguntou se eu teria estômago, respondi que sim pois acredito ser esse o preço da intimidade. Aperto de mão pra selar o “acordo”, sorriso e beijos na boca, no pescoço até o ombro, e um longo abraço. A acompanhei até onde pude e nos abraçamos e beijamos, de frente às esteiras do raio-x. A última imagem dela no Brasil, chorando e me mandando beijos. Só chorei depois, saindo do aeroporto, de volta pra quitinete.

Eu ainda tinha uma semana antes da minha partida por Cumbica e os dois dias seguintes à partida da Elena foram de uma autêntica síndrome de abstinência. Tipo cena de “Trainspotting” mesmo: choro compulsivo, hibernando na cama, risada seguida de choro e vice-versa. No terceiro dia, fui buscar minha filha. E minha filha me tirou daquela, ficamos grudados nos meus últimos dias no Brasil.

Eu e Elena mantivemos contato diário – não éramos, mas parecíamos namorados. Era estranho. Ela me contava dos dias dela na Sardenha com a família e eu contava de mim com minha filha. Disse que se eu não levasse o ukulele não me aceitaria em Paris. Chegou o dia da minha partida. Estourou a guerra civil na Turquia e descobri só no check-in que meu voo com a Turkish Airways foi cancelado na última hora, então me botaram num hotel cinco estrelas perto do aeroporto e me encaixaram num voo Alitalia do dia seguinte. Me senti o Bill Murray em “Encontros E Desencontros”. No dia seguinte, Elena surtou e a poucos minutos da minha entrada no avião as mensagens que ela me enviava diziam pra eu não me iludir pois nunca tivemos nem teríamos um relacionamento.

De Roma, fui direto pra Gatwick e de lá peguei o trem pra Brighton, pra visitar meu primeiro filho, de 21 anos, que me esperava na estação. Foi emocionante. Éramos muito próximos até os 15 anos de idade dele, tivemos pelo menos três bandas juntos, fizemos juntos uma turnê com quatoze shows nos EUA e Canadá em 2009 e outra na Europa em 2010, tudo na base do DIY. Em 2011, quando eu e a mãe dele nos separamos, voltei ao Brasil e ele continuou na Inglaterra morando com ela. A partir de então, nos tornamos distantes.

Fui visitá-lo em 2012 com a Luciana e em 2014 quando ajudei sua mãe a adquirir a cidadania italiana. Agora ele mora com a namorada, faz faculdade, toca com bandas, é um adulto, enfim. Passei dez dias fazendo couchsurfing em Brighton pra não gastar mais dinheiro. Eu ia até meu filho diariamente pra passamos algumas horas juntos. Ele me levou a parques, à praia e caminhamos pela cidade. Me apresentou hash e 25-i, tive momentos incríveis com ele, em que viajamos juntos ao som de dub, psych, soul, do “Bitches Brew”, do “Os Mutantes”, do “In The Court Of The Crimson King” e fazendo jams com violão, cítara e ukulele. Eu tinha muito pouco dinheiro, estava preocupado e sabia que precisaria encontrar trabalho assim que chegasse na Itália.

A essa altura o contato meu com a Elena era um vai-e-vem de brigas, pazes e despedidas. Mas tudo com carinho e consideração, muito dolorido. Decidi ir mesmo assim a Paris. No ônibus que me levou de Londres a Paris, conheci uma francesa com a idade do meu filho, loirinha de dreads, que tinha acabado de voltar de um intercâmbio em Camarões, conversamos por horas a fio e foi muito agradável.

Nem mesmo sabia se a Elena me receberia, mas na manhã do dia do aniversário dela assim que desci do ônibus na rodoviária em Paris lá estava ela e nosso reencontro foi com beijo na boca. Me sentia estranho. Fomos meio calados da estação de ônibus até o apartamento onde ela mora, entramos no quarto e direto pra cama, por horas sem parar. Quando já estávamos exaustos ela fez uma foto nossa na cama, estávamos sorrindo, mandou pra um amigo contando do nosso reencontro. Fomos comer e instantaneamente voltamos a conversar como em São Paulo.

Fiquei cinco dias em Paris e ficamos juntos por todo o tempo. Muita cama e passeios vários de dia ou de noite – Sacre Coeur, museus, parques, cafés, com o ukulele fomos à beira do Sena. E também houve mais duas ocasiões com conversas sobre como ela ainda amava o ex francês, sobre meu perfil errado pra ela, que seríamos amigos plus etc. Uma dessas ocasiões foi justamente a visita ao Bataclan, onde houve o atentado terrorista em que o amado ex dela quase morreu porque tinha o ingresso e só na ultima hora teve de desistir do show.

Um dia antes da nossa ida ao Bataclan, enquanto estávamos passeando em Paris vi no metrô um cartaz com a banana do Wharol, era uma exposição sobre o Velvet Underground e fiquei empolgado, estava vestindo esta mesma camiseta da banana aqui, Elena a identificou, eu disse a ela que queria ir, ela disse ok. Fomos. A expo era grande e tinha muito material, em vários formatos, um verdadeiro parque de diversões para fãs de VU. Uma instalação estilosa transmitia os filmes da Factory com as pessoas assistindo em camas coletivas, enquanto eu assistia de olhos arregalados, Elena dormia a meu lado.

Ainda arrumamos tempo pra falarmos sobre a tese dela e ela me convidou pra uma entrevista, queria me botar na tese, fiquei contente. No meu penúltimo dia em Paris, ela voltou ao trabalho e no horário de saída dela nos encontramos no metrô pra passear. Cheguei a sentir como se estivesse morando lá. Até que a coinquilina dela surtou dizendo que o quarto não era de casal e eu fui embora. Elena me acompanhou até a estação. Saímos da casa dela com tempo de sobra e antes passeamos num parque, passamos aquelas horas numa calma aparente batendo papo como se fossemos nos reencontrar na semana seguinte. Quase perdi o ônibus, corremos feito loucos. Na estação de ônibus, ela chorou de novo. E de Paris peguei o ônibus pro local de meu intercâmbio, Perugia, onde já estava meu primo que, sabendo da minha vinda e querendo fazer o processo da sua cidadania italiana e se estabelecer na Itália, veio do Brasil.

Por mais que eu tenha feito o possível pra arrumar um emprego qualquer em Perugia, não encontrei. Fui à assistência social e passei a comer na Caritas. Fizemos alguns bons amigos brasileiros, uma família composta de mãe e dois filhos adolescentes, donos de uma pastelaria, que nos acolheram com alegria e deram dicas. O alojamento no campus – que não seria grátis pra mim – só estaria disponível dentro de um mês. Com o dinheiro cada vez menor, eu e meu primo rachamos o aluguel de um quarto num apartamento no centro histórico por um mês e deixamos o hostel. Quando consegui minha primeira entrevista de trabalho numa agência em Perugia, contei pra Elena e ela se mostrou contente, me parabenizou e o papo acabou em morarmos juntos. Cogitamos um relacionamento, ela me disse que deixaríamos de ser amigos plus pra enfim construirmos uma história somente se e quando vivêssemos juntos, mas logo disse que não deixaria Paris e me sugeriu de eu mudar meu intercâmbio pra lá. Por minha vez, eu disse a ela que nunca tive muita vontade de morar na França e que não sei falar francês, além da impossibilidade de mudar meu intercâmbio.

Percebi que ela deixou o Messenger dela aberto no meu celular. Juro que tentei deslogar, não queria ver as coisas dela, mas depois de tentar tirar o login dela várias vezes sem conseguir, acabei vendo as suas mensagens. E foi uma puta bad trip. Vi ela em ação abertamente chamando um DJ pra sair (e tomando um fora, o cara disse que seria difícil porque morava longe e era casado), trocando mensagens quentes com um francês com quem ela já tinha se envolvido, inclusive com um encontro no dia anterior à minha chegada, e convidando um brasileiro com quem ela saía antes de mim em São Paulo pra visitá-la em Paris. E sempre que eu perguntava pra ela era “não, bobinho, não tenho nada pra te contar”. Não contei a ela e continuei vendo suas mensagens, por mais que sentisse culpa. Era mais forte do que eu. Ela não tinha cumprido a parte dela do que combinamos.

Foi difícil, ao continuar o contato diário com ela, fingir que eu não sabia e tentar não transparecer raiva e desânimo. Ali começamos a intercalar brigas chatas e longas e trocas de mensagens quentes, com fotos e videozinhos. Num dia triste desci com o ukulele e fiquei tocando sentado na esquina. As pessoas passavam e olhavam, aquilo me levantou o astral um pouco. No térreo do prédio tem uma osteria. Depois de algumas canções um senhor aplaudiu, mandou um “bravo!” e me chamou para tocar na Osteria, que era dele. E fui. Fiz uma série de versões ukulele e voz pra canções de punk e rock em geral, pra um público composto de famílias jantando, e gostaram, foi divertido.

A amiga Shirlei contou que fazia eventos na pastelaria, com músicos tocando. Me deu a ideia de fazer busking, comentei com a Elena e ela botou pilha grandão, e entrei nessa. Montei um repertório com mais de cem canções – Beatles, Lucio Battisti, Velvet Underground, My Bloody Valentine, Modern Lovers, John Lennon, Verdena, Black Sabbath, Raul Seixas, Legião Urbana, Elvis Presley, Black Flag, Modena City Ramblers, Flaming Lips, Motorhead, The Smiths, Tribalistas,Tiromancino, Jorge Ben, Bob Marley, Johnny Cash, New Young, Bob Dylan, The Doors, Queen, Kraftwerk, Tom Jobim, Adoniran Barbosa, Elis Regina, Led Zeppelin, The Cure, Neil Young, Supremes, Ronettes, Temptations, Louis Armstrong, Beirut, Nina Simone, Simon and Garfunkel, Afterhours, David Bowie, Lou Reed, Beach Boys, Tim Maia etc.

Agora faço busking. Sento no chão e boto o estojo na minha frente, tenho uns três lugares preferidos no centro histórico de Perugia pra tocar: perto das escadas rolantes na Rocca Paolina (em cima ou dentro) e em duas alturas do Corso Vannucci (na esquina com via Mazzini e quase na Piazza Italia). Conheci os outros artistas de rua da cidade, que diariamente tocam ou expõem e vendem pelas ruas do centro, cada um em seu ponto, como por exemplo o basco que toca violão e canta, o cigano que dança freneticamente e sempre rindo, a loirinha que toca harpa, o cabeludo que toca acordeão, o paquistanês que toca um instrumento enorme húngaro que parece uma mistura entre arpa e vibrafone, o introvertido careca de olhos azuis que toca free fazz no clarinete, o bonachão pançudo e de barba longa e branca que toca violão por entre as mesas dos cafés, o doutor em filosofia que passa o dia a ler em frente a seus quadros, o argentino que vende artesanato, dentre tantos outros.

Toquei na pastelaria também, com vários amigos novos que cantam e tocam comigo. Ensinei ao Gilberto, filho mais novo da Sheila, a tocar o cajon que um parente deixou pra trás e de tanto em tanto ele se junta a mim. Uma alemã e duas polonesas, da mesma faixa etária de meu filho, universitárias como eu, que cantam muito bem, também se juntam a mim de vez em quando, de forma intercalada. Às vezes passantes se juntam a mim, dentre os quais uma vez um italiano tocou percussão, outra um nigeriano cantou e outra um angolano tocou violão. Com as moedas e raras notas que depositam no meu estojo, e com os eventuais frilas de tradução, venho sobrevivendo e sigo procurando um emprego.

Numa das brigas, já farto, acabei contando para a Elena que eu li as trocas de mensagens dela no Messenger. E o fiz daquele jeito, com sarcasmo. Ela ficou puta e desde então nosso contato se deteriorou mais. Depois de um período de silêncio, voltamos a trocar mensagens, mas não temos mais a sintonia de antes, cada um com sua mágoa e agora nos limitamos a trocar poucas mensagens curtas e espaçadas.

Já estou no alojamento, no campus, as aulas já começaram. Ao fim deste semestre acaba meu intercâmbio e devo voltar ao Brasil pra prosseguir minha graduação na USP. Preciso rever minha filha. Mas se não por ela, sinto que no Brasil eu não tenho mais nada. Se eu voltar como e quando previsto, não terei onde morar, além da volta à eterna busca por emprego. Não sei mais se mantenho a ideia de finalmente terminar uma graduação, já iniciei quatro vezes e nunca pude me formar, ou se mais uma vez largo os estudos pra ir pro norte da Itália ou pra Inglaterra, procurar um emprego.

Tem aquilo de não saber se, como e quando poderei conhecer outra pessoa que me desperte como aconteceu em relação à Elena. Tem outra também, que é se e quando isso acontecer, que seja correspondido. Às vezes, ainda sinto falta dela, só não sei bem o que isso significa, ainda estou aprendendo a lidar com isso. Nem parei pra pensar sobre o quanto cheguei a conhecer dela.

(volta ao tempo presente)

– Você reclama de barriga cheia (risos). Depois te conto uma. Bem que eu queria ir no Le Bataclan. Agora vou nessa.

– Já vai? Beleza, a gente se fala.

– Ó, tá acabando, a Nico está perdendo a voz mas ainda assim é demais.

– Ah, valeu. Ao contar essa história, percebi que estou melhor agora. Preciso correr pra terminar a tradução, a entrega é pra daqui a poucas horas.

– De boa, foi bom também escutar sua história.

– Agradeço por ter botado pra gente escutar o show de Reed, Cale e Nico. Coisa linda mesmo.

Como foi que enquanto eu estava ali nem tenha passado pela minha cabeça sobre o tanto de show bom que já teve no Bataclan? Como eu posso ter ido até lá e nem ter feito uma foto? Onde eu estava com a cabeça?! Assim que encontrar um emprego vou ver um show lá, pode crer.

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