O PRIMEIRO SHOW PÓS-PANDEMIA (OU: O BRASILEIRO BRINCA COM A MORTE)

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Eu gosto demais de Jorge Aragão. Pagode romântico sem ser brega (nada contra, na verdade) e com toques de consciência social, sem ser panfletário (nada contra, outra vez). Seria uma bela maneira de começar o ano. Mais do que isso, seria o primeiro show que eu veria em quase dois anos, culpa dessa crise sanitária que o mundo teima em não sair.

E não sai também por culpa de pessoas… como eu. Embora eu tenha tomado três doses da vacina, a última delas no começo de dezembro, não há motivo algum pra se enfiar em aglomerações. Mas foi o que fiz, achando que “ok” e confiando que as autoridades e organizadores da festa iam exigir o passaporte de vacinação. Bom, minha desilusão começou quando me lembrei que moro no Brasil e que somos todos humanos, o que quer dizer que fazemos de tudo pra morrer e matar uns aos outros mesmo que normalmente “sem querer”.

O show era na virada do ano, no Morro da Urca. Imaginei que pra embarcar no bondinho os organizadores pediriam o comprovante de vacinação. Não foi o que aconteceu. Mas mesmo que isso tivesse acontecido, se qualquer pessoa ali tivesse um mínimo de consciência (incluindo eu mesmo), não haveria como levar a empreitada adiante. Bastava ler uma manchete de jornal/Twitter/o que for. Não só a ômicron se alastrava e a semana seguinte mostrou o tamanho do estrago, como há ainda em curso e já havia naquele momento uma epidemia de gripe, fazendo as pessoas pegarem ou um vírus ou outro ou ainda os dois ao mesmo tempo. Hospitais hoje estão cheios por todo o Brasil. Em todo o mundo. Não é culpa só de brasileiros, mas o brasileiro gosta de brincar com a morte.

Enquanto falamos de negacionistas anti-vacina, pedindo cadeia pra eles, os vacinados sentem-se totalmente seguros a ponto de desprezar que as autoridades não estão nem aí – só dizem que estão. Quando o governo estadual do Rio de Janeiro e a prefeitura da capital permitiram festas particulares, alardeando sobre a obrigatoriedade de apresentação do passaporte da vacina e (cof cof cof) “todos os protocolos de segurança”, a primeira reação de uma pessoa de bom senso e inteligente seria rir disso e evitar participar dessa insanidade a qualquer custo. A gente sabe como funciona por aqui. E foi assim que funcionou: nada de pedir passaporte e provavelmente um monte de gente infectada passando a distribuir vírus (no plural) Brasil afora. No Carnaval veremos a mesma ladainha, liberando festas em ambiente fechados (!!!!!) e nos Sambódromos (!!!!!).

Spoiler aqui: ninguém vai pedir passaporte de vacina, porque isso era filas incômodas enormes. As pessoas vão reclamar. Vacinados se sentem super-heróis e vão reclamar. E uma semana depois, os casos vão novamente explodir. Se a ômicron é ou não é mais mortal creio que não importa, porque se uma pessoa morrer disso, apenas uma, já é culpa nossa, como sociedade, e não só dos anti-vacina. Então, pode continuar xingando os negacionistas, mas é preciso olhar pra si próprio, se você for vacinado por completo, e ver que tem culpa no cartório também.

Eu tenho e minha saída foi ficar isolado por uma semana, sem contato com ninguém, assim que retornei pra casa. Mas eu posso, eu consigo, já que trabalho em casa. A maioria não tem como. E, pelo visto, é vida que segue (ou não, infelizmente).

Em cima no palco, mais decepção. Culpa não só de Jorge Aragão, com seu jeito low profile, mas da organização. A escolha foi infeliz. Numa festa de Ano Novo, o que se pede é, em termos de samba, algo mais pra cima, animado, como sambas de enredo, por exemplo, o que até rolou depois. O samba (digamos) elegante de Aragão um tanto que esvaziou a pista, embora ele tenha sentido o clima e atacado com alguns petardos como “Identidade” e “Coisinha do Pai” e, claro, “Vou Festejar”.

Começou com “Eu E Você Sempre”, ganhando coros e danças da plateia bem nascida e vacinada (aqui, torcendo pra ser verdade), mas esfriou mandando belezas como “Malandro” e “Enredo Do Meu Samba”, que embora excepcionais, derrubaram o ânimo de uma festa que exigia um tom de alegria acima.

Aragão, com uma banda enxuta, parecia deslizar protocolarmente pelo palco, sem muita empolgação, como se quisesse apenas cumprir o contrato, talvez com medo de se infectar (é grupo de risco) e se arriscando após dois anos sem poder se apresentar regularmente. Ele tem bocas pra alimentar e tem salários a pagar, afinal de contas. Findo o carnaval, sabiamente pirulitou-se dali.

Das cinzas pude perceber, num sopro de bom senso, que não era hora pra eventos daquele porte. Não há protocolo de segurança que dê jeito. Chegando em casa, conversando aqui e ali, muitos conhecidos voltaram de suas festividades e ou pegaram covid-19 ou a gripe que está circulando por aí.

Se o brasileiro gosta de uma festa, também parece curtir bastante brincar e dançar com a morte. Eu só espero que a história não termine com uma “ponta de dor”, nem se encerre com o “pt saudações”.

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