RADIOHEAD EM “NO SURPRISES”: UM TRABALHO QUE TE MATA AOS POUCOS

Não é modo de dizer: há artistas que literalmente sofrem pela sua arte. Thom Yorke deu sua cota. O vídeo de “No Surprises”, pra promover o ora recente lançamento de “OK Computer”, terceiro disco do Radiohead, de 1997, foi um sufoco, sem trucagens, sem dublês.

Ao lançar o documentário “Meeting People Is Easy”, o diretor Grant Gee revelou os bastidores do angustiante vídeo pra intensa canção. O documentário, lançado em 1998, onde Gee acompanha a banda na turnê de “OK Computer”, ganhou o Grammy em 2000 pra filme musical e mostrava o nascimento do Radiohead pro sucesso.

“Em 1996, fiz meu primeiro filme”, disse Gee à The Quietus, em 2018, “era uma peça de trinta minutos chamada ‘Found Sound’, que acompanhava e promovia o álbum de mesmo título do Spooky (lançado naquele mesmo ano, clique aqui pra ouvir). Mais tarde, descobri que Thom Yorke era fã do disco e que o Radiohead usava algumas faixas nos primeiros shows da turnê do ‘OK Computer’. Foi ‘Found Sound’ que me fez conhecer Dilly Gent, da Parlophone”, o selo que lançou a obra-prima do Radiohead.

“Dilly”, ele segue, “tinha a ideia de fazer um vídeo pra cada música de ‘OK Computer’ e me deu um cassete antes do disco ser lançado, pedindo que eu tivesse ideias pras faixas que eu curtisse. Escolhi ‘No Surpirses’ e ‘Fitter Happier’. Minha ideia pra ‘No Surprises’ era bem ruim (…) e a gente ia fazer depois, mas creio que os primeiros vídeos filmados (‘Paranoid Android’ e ‘Karma Police’) ficaram bem acima do orçamento e o projeto de fazer um vídeo pra cada faixa não rolou”.

“Mas ainda havia a ideia de fazer uma espécie de filme pra seguir junto a ‘OK Computer’ e, acho que como um plano B de baixo orçamento, pediram-me pra ir à Barcelona e documentar o lançamento do álbum. Seriam três dias de entrevistas com a banda e dois shows mostrando as faixas do novo disco. E rolou. Filmei tudo. Achei que seria maravilhoso conseguir convencer a banda e a gravadora a permitir que eu repetisse as filmagens em vários pontos da turnê mundial ao longo do ano seguinte. Seis meses depois, a Parlophone precisava de um vídeo pro single ‘No Surprises’ e não gostou de nenhuma das ideias que recebeu dos possíveis diretores, então, como eu estava por perto, eles me perguntaram se eu queria ter outra chance. Desta vez, eu estava dentro daquela máquina e sabia o que seria aprovado”.

Isso queria dizer basicamente algum tipo de vídeo “esquisito”. Era o que o Radiohead vinha fazendo há um tempo: vídeos esquisitos. E Gee já tinha reparado nos bastidores da turnê essa preferência pelo não-usual.

Em outra entrevista, essa realizada em 1998, Gee lembra que esse tipo de direcionamento moldou a construção do seu documentários também: “algumas das músicas são B-sides ou coisas que nunca foram lançadas, como uma chamada ‘You Follow Me Around’. Acho que eles escreveram numa noite, e então eles tocaram no dia seguinte e eu estava lá. Não é uma música ótima, mas foi tão adorável ouvir essa banda e essa música acontecerem. Thom começou a tocar de maneira acústica e, a princípio, Jonny Greenwood está sentado no palco fazendo palavras-cruzadas. E então Thom segue em frente com palavras inventadas, e então Ed O’Brien começa a fazer pequenos barulhos, como ele faz, em torno do padrão acústico de Thom. E então Phil Selway, em algum ponto crítico, começa sua mágica. No final, Jonny está fazendo toda sua arte, Hendrix surge a partir da ideia principal e tudo isso aconteceu em sete minutos. Eu fiquei lá captando com essa pequena câmera de vídeo”.

Uma banda que tem o não-convencional como modo de se apresentar não podia se deparar com um vídeo qualquer. A equipe em torno do Radiohead e da Parlophone sabia disso. Gee teve, então, um daqueles estalos que os criativos têm sob certa pressão: “olhando com distanciamento, escrever a ideia foi ridiculamente fácil. Eu tinha uma imagem de ‘2001: Uma Odisseia No Espaço’ na minha escrivaninha (o close do rosto de David Bowman dentro de seu capacete). Escutei a faixa e o verso ‘…a job that slowly kills you’ saltou diretamente na minha frente. Olhei pra imagem na minha frente e imaginei se poderia fazer um único close-up de um homem num capacete espacial por três minutos e meio; lembrando de alguma ansiedade que remetesse a imagens da televisão infantil (um aterrorizante ato de fuga subaquática sub-Houdini em ‘Blue Peter’, os alienígenas assustadores em OVNIs, que tinham capacetes cheios de líquido verde…). Escrevi um roteiro muito preciso, quadro a quadro, pro vídeo, tudo em cerca de meia hora. Como eu digo, ridiculamente fácil e jamais tornou a acontecer da mesma maneira”.

“…Um trabalho que mata lentamente você” é um verso poderoso e que provavelmente as pessoas não se dão conta em “No Surprises”, talvez porque ela seja uma letra com absurdos outros versos que alfinetam o cidadão médio: “Um emprego que te mata lentamente / Feridas que não cicatrizam / Você parece tão cansado e infeliz / Bote abaixo o governo / Eles não / Eles não falam por nós / Eu vou levar uma vida tranquila (…) / Esse é meu último surto / Minha última dor de barriga / Sem sustos e sem surpresas / Sem sustos e sem surpresas / Sem sustos e sem surpresas / Por favor”.

A alternância de humor, entre as conquistas e as desilusões, é meio como um resumo da vida de qualquer pessoa, mas com Thom Yorke em primeiro plano, num ambiente sufocante, potencializa qualquer sentimento.

“A tarefa era transmitir essa sensação – de segundos perigosos – da forma mais clara possível”, explica Gee. “Uma vez que decidi que a situação básica era o terror de elevar a água num espaço fechado, era óbvio que funcionaria melhor em tempo real”. E assim foi feito o vídeo, numa única tomada, num único plano.

Ao contrário do que se imagina hoje, não houve trucagem nem efeitos especiais na captação do vídeo. Não há “tela verde”, não há trabalho de edição. Thom Yorke está lá, segurando a respiração, realmente sofrendo, perto de se afogar – e isso não é um exagero.

Por outro lado, era um risco calculado. Segundo Gee, o orçamento era até “decente” (oitenta mil libras), o que permitiu à produção a contratação de uma empresa apropriada, mas não pra truques em tela e sim pro mecanismo que ia vestir Yorke. A bem da verdade, depois dos enormes avanços que o cinema já havia mostrado com o uso de computadores, desde “Jurassic Park”, em 1993, seria possível uma ação mais cautelosa. Mas, daí, quem não toparia seriam o orçamento (estouraria) e o próprio Yorke, que comprou a briga.

A tal empresa construiu um capacete customizado, pra encher de água lentamente e esvaziá-lo rapidamente, ao ter acionado um dispositivo de segurança pelo próprio Yorke.

“No roteiro, eu sabia exatamente o momento em que a água devia atingir os lábios de Thom – “silent” – e quando ela devia ser evacuada – “…such a pretty house”. Isso queria dizer que ele devia ficar debaixo d’água por um minuto e dez segundos. Thom estava ok com isso. Ele inclusive me mostrou que podia segurar sua respiração por um minuto e meio sem problemas. Ainda parecia um pouco complicado e senti que deveríamos tentar mantê-lo submerso por menos de um minuto. O produtor do vídeo, Phil Barnes, teve uma ideia genial de como poderíamos alcançar isso. Ele descobriu que uma das câmeras Arriflex 35mm (a 435, eu acho) tinha um motor, cuja velocidade podia ser alterada. Isso nos permitiu variar a velocidade de uma parte de ‘No Surprises’, aumentando a velocidade da câmera pra cinquenta quadros por segundo por um curto espaço de tempo e então reduzindo novamente pra vinte e cinco quadros por segundo, e ainda ter os vocais de Thom em sincronia pro final da música. Isso garantiu a Thom vinte segundos a menos de submersão”. Mesmo assim, não foi fácil, como se vê nesse trecho do documentário:

“O dia virou um show de horrores. Foi uma tortura constante”, lembra o diretor. Isso porque, estressado por um ambiente que não era o dele, por estar sabidamente em uma situação de risco – ele não poderia desfalecer, já que era ele mesmo quem acionava o dispositivo de segurança – e por saber que o vídeo deveria ser feito naquele dia, por questões orçamentárias, Thom Yorke não foi capaz de segurar a respiração como prometera. A adrenalina faz o coração bater mais rápido e a respiração ser mais acentuada. Assim, ele ficava no máximo dez segundos debaixo d’água, antes de acionar o dispositivo. No trecho acima, é possível ver como o músico se irrita com a situação – e irritação não contribui pro quadro.

Ao final do dia, quando tudo parecia que levaria ao estouro do orçamento, Yorke e equipe conseguiram uma tomada de cabo a rabo e é essa que você vê no víde. O truque de “No Surprises” é não ter truques. Foi um trabalho de sofrimento, um lento sofrimento. Ninguém queria uma surpresa desagradável:

Veja aqui, na íntegra, o documentário:

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