RESENHA: CADU TENORIO – CORRUPTED DATA孤独死

Os dados corrompidos. Com esse título, Cadu Tenório faz de deformação e da corrupção da memória a matéria-prima pra advogar por uma beleza que reside atrás dos escombros. Revestidos em transições e repetições, as camadas justapostas transformam-se em outro elemento, não apenas negando seu solo originário como ultrapassando sua origem. A distorção, os ruídos, viram o epicentro referencial. É o som de uma referência enigmática que ultrapassa subterfúgios racionais pra eclodir num abandono de si, utilizando as próprias matérias – lembranças, barulhos, impressões, frases – como meio de deixar um “eu mesmo” bem caracterizado nos escombros de sua própria constituição.

Os dados, as lembranças, tornam-se a obsessão do músico pra encontrar beleza na fragilidade dessa fidelidade. Não espere como “beleza” a representação cartesiana daqueles, mas sim um solo trêmulo em que cada vestígio é confrontado por uma permanente, ainda assim momentânea, resignificação. O que era não é mais. “Corrupted Data”, como prolongamento do seu incisivo estudo anterior (conheça aqui), é a procura de Tenório por elementos que dialoguem e se expelem simultaneamente, conferindo ao álbum a impressão de um sistema computadorizado que reconstitui a experiência humana enquanto sabota a fidelidade memorialística.

Enquanto amplifica a sensação de abandono, os dados corrompidos ainda assim são o único farol num descampado deserto noturno. Quando quebra a repetição, o barulho novo será a base da repetição a seguir e, nesse ciclo prolongado, a limitação da memória insurge como força. Imersos em resquícios memoriais, os dados virtuais tornam-se esperança e desgraça. Ao mergulhar nesses fragmentos virtuais, a identificação é algo muito precário pra se confiar. Há a necessidade de confiar no que a matéria vai se tornar, ou seja, em sua própria indeterminação sedimentada num universo de resquícios e deformidades.

“Corrupted Data” conta com vozes que divagam sobre a criação e o amor pra interpor um depoimento, entre as peças mais viscerais e calmas, que duvidam sempre da origem dos ditos sentimentos, mas que, ainda assim, permanecem a ela agarrados. Mesmo que ela tenha se transformado numa coisa completamente diferente do que era no início. Essa apresentação errática permite que um mundo de vislumbres sensoriais seja criado, enquanto se perde a familiaridade nostálgica das lembranças. Restam considerações sobre a nova origem deformada que é o chão pra quem acena nostalgia. Tenório assina, assim, uma lavagem contínua que reconhece a infidelidade à origem, como forma de honrá-la e representar seu estado fluído num mundo em que o abandono é a única constância. E se os ruídos arranhados amplificam uma cacofonia do esquecimento, as vozes computadorizadas e as partes mais harmônicas brotam como reconhecimento, ainda que desfigurado, de uma realidade em que uma vez se viveu. O efeito é o estranhamento ainda maior dessa realidade perdida, mas um agarramento à deformidade intrínseca que caracteriza um esboço do que é estar no mundo.

Parte dessa ausência presente reconstitui uma experiência esquecida: lembrar é viver no passado enquanto o transforma pelos atravessamentos presentes. “Corrupted Data” é uma transformação contínua do que se entende por realidade e uma aceitação forte da corrosão como sistema inerente ao ato de viver. Ouvir esse álbum é se remexer entre os diversos períodos da vida, encarando e cedendo às suas durabilidades enquanto se encanta com a precariedade de sua dureza, tendo a fragilidade das lembranças uma força propulsora da contínua experiência que caracteriza a criação. Em sua imersão, é possível ser remetido ao encantamento com o fato de ser humano e ser precário e testemunhar o vazio dessa condição como potência criativa de uma intimidade guarnecedora.

Apesar desse monólito, desses edifícios e dessa lápide que assinala o ser humano assim que se nasce, há uma constante difamação nos sentidos. Isso não apenas permite a intimidade, mas cria uma casta possível que reconhece a beleza de tudo o que pode ser corroído e esquecido. Mesmo que tudo se dissolva, Tenório reconhece a singularidade do processo de corrosão como um deslumbramento criativo.

É claro, dissolver tem todas suas desvantagens práticas, mas apenas abandonando a dicotomia da práxis que a música pode revelar os lados mais obscurecidos da humanidade com o encantamento que eles merecem. Com a paz dos ruídos, do esquecimento e da conjuração de que um mundo transformado, é sempre possível – ainda que seja pela corrosão.

1. I
2. People Only Have Substance Within The Memories Of Other People. And That’s Why There Were All Kinds Of Mes. There Weren’t A Lot Of Mes Per Se, I Was Just Inside All Sorts Of People, That’s All.
3. Even If We Were To Become Separated Let’s Both Think Of Each Other.
4. Love Certainly Is A Strange Emotion, Now Isn’t It, Lain.
5. Punpun, Remember When We Were In Grade School And You Wrote That Essay About Wanting To Research Outer Space? (clique aqui pra ver o vídeo)
6. II
7. You Told Me Once To Forget The Past, Cause It Doesn’t Matter, But You’re The One Still Tied To The Past, Spike.
8. III
9. I Always Believed That Everyone In This World Was Far Nicer And Smarter Than Me. That No Matter How Unlikeable They Seemed To Be, They Still Had A Good Conscience And Had Justifiable Circumstances For Acting The Way They Did.
10. I Said “See You Later” Thinking The Back Of My Mind That We Would Never See Each Other Again.
11. IV
12. V
13. It’s Human Nature To Mindlessly Pursue Beauty And To Be Toyed With And To Destroy.
14. VI
15. It’d Be Nice If Everything Else, Would Just Vanish Into Nothingness… (clique aqui pra ver o vídeo)
16. VII
17. The Rain Continued On Endlessly As If It Had Forgotten How To Stop.
18. VIII

NOTA: 9,0
Lançamento: 22 de março de 2019
Duração: 55 minutos e 46 segundos
Selo: Sinewave
Produção: Cadu Tenório

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