7 EPS: VER, CÉU DE VÊNUS, CIANETO HC, ABDALA + GOD PUSSY, ZUMPIATTES, GAEL CONHECE O MAR, DEBATE

VER – “I”

A antiexposição de “I” é saturada em barulhos ritualísticos e um drone perverso, pois nele não há a possibilidade de movimentação. Soa tudo muito opressivo. Os barulhos valem na criação de uma cosmogonia impossível de ser interpretada – tudo em “I” soa como paralisação.

Os detalhes técnicos surgem nas consecutivas audições mas é a primeira-ouvida que pode-se interpelar o elemento mais radicante do EP – a força da estática, a força do Ver, mais um projeto de Cássio Figueiredo, músico de Volta Redonda, de ritualizar um movimento arrastado e sobreposições massivas.

Eu sinto como se o final da primeira faixa sonorizasse um abandono e “I” cobrisse o próprio elemento-abandono numa camada em que se deixar ao léu virou o próprio ritual. Se o ouvinte se pergunta “mas que raios são estas cantorias?”, é porque o criador conseguiu se esconder em demasia dentro dos seus próprios procedimentos. Não será culpa de quem ouve, obviamente, e nem culpa de quem cria. É que pra própria assimilação do diagnóstico do abandono em forma de rito é necessária uma espécie de solidariedade com o estado do Outro.

No fim do EP, o que fica sumário é como pode-se explorar tanto uma origem ao ponto de que o cerne criativo é sobreposto em camadas sonoras de modo a se duvidar o que exatamente começou o quê. Desde que este início não possa ser precisado, só se pode vagar na procura de qualquer coisa. É incrível a reciprocidade que pode-se estabelecer com o Nada e explorá-lo até que a própria relação fique suspensa por mediações. Pra elas existirem não é preciso estabelecer um objeto único nem ambicionar uma obra épica; a falta de verbalização (o abandono) possui uma instância múltipla quando a relação com uma não-entidade se caracteriza como movimento.

NOTA: 7,0
Lançamento: 18 de março de 2017
Duração: 16 minutos e 16 segundos
Selo: Independente
Produção: Cássio Figueiredo
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CÉU DE VÊNUS – “INTROSPECTRO”

Se a apresentação não é múltipla e se não há a decorrência de elementos (frases de guitarra, interação entre instrumentos e coisa e tal) a estagnação fica gritante num procedimento instrumental. Por este viés de impedir qualquer espécie de contemplação estagnada, o Céu De Vênus, grupo de Curitiba, utiliza elementos reconhecíveis que passam por diversas formas apresentadas – delays, reverbs etc. Segue-se numa guitarra inicialmente convidativa que explora a interação com outra guitarra, baixo e bateria.

Esta conclusão se estabelece com procedimentos criativos muito parecidos entre as faixas, relacionando harmonias e ritmos. Nós nos encontramos com uma espécie de som que representa significativamente os post-rocks mais “tradicionais” tão raros nestes país (quero dizer: sem influências gritantes de post-metal, afrobeat etc.). Esta decisão de ir por um caminho menos difuso de maneira alguma implica numa sonoridade monótona. Não me parece uma decisão puramente racional, no entanto – soa muito como quatro amigos tocando junto ao vivo em um ponto que a interação entre eles já está bem matura.

Tudo neste EP de estreia não parece coisa de principiante, o que credita ao Céu De Vênus a exploração máxima deste espaço íntimo entre os quatro integrantes da banda. Estritamente, aliás, pode-se reduzir o EP a isto – esforços singulares que mais tentam compreender o outro do que necessariamente preencher lacunas sonoras.

São declaradas musicalmente uma mutação (a mudança de timbres e coisa e tal) na necessidade de continuar subsistindo e sustentar a música num tempo teoricamente próprio. Em outras palavras: não se trata duma força refratária nem necessariamente unificada, mas da compreensão de exterioridades delimitadas ocupando um mesmo espaço. A música é uma operação apresentada. Não se ouve apenas ritmos & melodias, como também a configuração de uma entidade rígida comandando cada vetor (tocando os instrumentos).

Deve-se levar bem a sério esta operação, porque divergentes instâncias simplesmente coexistem ao invés de apenas concordar. E assim constrói-se algo mais abrangente porque os axiomas nunca reduziram as possibilidades. Isso significa que todo o caminho entre “Awake No. 1” até “Doce” é uma construção firme no sentido múltiplo. Estritamente falando, são quatro instrumentos que colaboram com o corpo final porque se apresentam como corpos modificáveis.

Em suma: são fragmentos resultantes de desenvolvimento ora paralelos e ora tangenciais. Nesta base, a esfera que é “Introspectro” não é nem jamais poderia ser preenchida completamente, porque cada desdobrar apresenta inúmeras possibilidades que apresentam inúmeras interações-possíveis e assim por diante. Vamos ser mais claros: é uma visão não estreita do que se pode criar com a música, uns instrumentos e uns amigos. Garantidos estes vetores, fica relativamente “fácil” à banda criar suas fugas, seus ritmos etc.

NOTA: 7,0
Lançamento: 17 de março de 2017
Duração: 33 minutos e 20 segundos
Selo: Sinewave
Produção: Thiago Machosky
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CIANETO HC – “ESTILHAÇOS”

Em “Estilhaços”, nenhuma figura santa foge à alçada terrena: Maria vendendo seu corpo, João usando droga e Jesus desdentado.

Os símbolos da cidade (muros, beco escuro) são labirintos planejados por quem detém o poder. No EP, não importa de onde tu vens, estás submisso a uma hierarquia sangrenta que explora e você não vai ter exatamente nada em troca. A agressividade sonora (que muito remete ao primeiro punk no Brasil: Cólera, DZK, Olho Seco etc.) deixa evidente este asco que todos temos que conviver.

O que é talvez mais dolorosamente pertinente no disco é que não há necessidade nenhuma de criação de personas pra incorporarem as personagens do EP, elas são brutalmente reais e bastardas subsistindo neste país.

Em “Bastardo” é evidenciada mais claramente a insatisfação com si próprio, talvez mais em sentido íntimo, mesmo: a cidade quente e abafada tá aí te imprimindo na merda e você não pode fazer nada quanto a isso (ainda mais quando se trata de Teresina, a quente capital piauiense). Então as máscaras são feitas do elemento desta podridão.

Num mundo com uma miséria onipresente e que tem de se coexistir com os outros, através de interpretações falsas das mais variadas sensações, o próprio elemento de conexão com o outro (face) é falseado. De outra forma, não daria pra andar com o nariz nu em meio a este cheiro ruim.

NOTA: 6,5
Lançamento: 21 de março de 2017
Duração: 11 minutos e 09 segundos
Selo: Geração TrisTherezina
Produção: Nilo Roque
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ABDALA + GOD PUSSY – “OWN LIGHTING”

(eu não sei exatamente se é um EP, mas pela duração parecida com os EPs, eu joguei neste balaio)

O que precede uma estrutura é um núcleo relativamente organizado, mas em “Own Lighting” o ouvinte é arremessado no caos criativo. A origem é perturbadora. Quando um som (ou um tema) é considerado cerne de uma estrutura (da onde os vetores variam) é porque ele só ressoa naquele seu ciclo, ele praticamente não dialoga com o externo.

Por isso, o que vem abrupto no EP é mais urgente que toda uma organização pré-datada. Os radicalismos sonoros dos artistas irrompem o mero objeto “conceitual” ou “temático” – como é recorrente nos trabalhos do God Pussy.

Não é que falte uma estrutura pra gravação – ela entra sim num loop repetitivo de ressignificar repetições – mas quando se tem, de cara, algo tão impositivo fica evidente que não há um forjamento criativo. Isso não significa que fique tudo tão “solto” como num free jazz, por exemplo – é justamente por uma estrutura mínima que cada ruído em “Own Lighting” decodifica uma outra possibilidade (sair da estrutura, sair da representação).

Se toda situação é estruturada, somente a disposição sincera de retalhos pré-formais que podem romper este rito que é “ouvir” algo. Os sons são retroativamente ativados não como uma totalidade de elementos, mas fragmentos vagando pra apreensão e a inter-relação destes extremismos com o ouvinte. Mais uma vez, uma possibilidade se abre pro rompimento desta estrutura (o ritual de ouvir um disco). O fato de que a última e curta peça seja a retaliação múltipla evidencia isso: que todos os procedimentos diferentes de 1 (0,45, por exemplo) possam descaracterizar uma unidade pra ter sua própria disposição de luz.

NOTA: 7,5
Lançamento: 16 de março de 2017
Duração: 14 minutos e 28 segundos
Selo: Proposito Recs
Produção: Jhones Silva e Bruno Abdala
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ZUMPIATTES – “MARGENS”

Em rápidos minutos, é perceptível que “Margens” destoe o tema sobre “feridas e cicatrizes”. Rapara-se no eu-lírico alguém contemplador deste processo. Alguém que “ainda não se encontrou” mas também não acha necessariamente ruim esta perdição e, uma vez que ela lhe é o único elemento dado, instrumentaliza-a pra possibilitar uma vivência na incerteza.

Contra esta convivência há um preço: a noção de tempo fica confusa, a busca carece de um guia. Mas se ele ainda não se achou, ele ainda não se entregou também. É porque andar à margem possibilita encontros não planejados. A ardência por um próximo encontro passa a ser a sensação-guia, ainda que difusa.

Os “pedaços de vida” são fragmentos que racionalizam um desespero inicial: há o rumo pro Fim, mas também há o aguardo de novas imanências. Imanências que são exemplificadas em “Dança A Dois”, onde a coreografia cede espaço quando alguém percebe a possibilidade de improviso. Os pés se movimentam em sequências inesperadas enquanto o rito da dança é ressignificado estruturalmente: se ele era um movimento cíclico repetitivo, a partir da possibilidade do improviso novas aberturas surgem, possibilitando movimentos variados. Os passos variam e não são exatamente o que eram, eles pisam em novos lugares e estruturam novos movimentos ao corpo.

Mas mesmo tendo em mente estas possibilidades é difícil pra quem é “algo” se desatar dos incômodos que tomam conta condenando coisas naturais (“o calor”, “a chuva”) porque estar preso em determinado corpo e determinada situação quase nunca é o suficiente. Pra ir além de onde os outros sempre vão, é necessário repensar a lógica da estrada-comum. É necessário olhar a cidade de outra forma porque, mesmo sem saber o que alimenta e o que motiva as pessoas, esta lógica mostra-se baseada em símbolos fechados pra reinterpretações, que aniquilam novidades e são sempre a mesma coisa. Pra ir além, é necessário aceitar a perdição e que nenhum guia é eficaz o suficiente pra completar alguém. Pelo contrário, quase todos os guias apontam pra um mesmo tipo de estrutura e se inevitavelmente todos vamos morrer é válido tentar um pouco mais do que as coisas parecem ser.

NOTA: 6,5
Lançamento: 7 de fevereiro de 2017
Duração: 25 minutos e 28 segundos
Selo: Valente Records
Produção: Zumpiattes
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GAEL CONHECE O MAR – “CASCA DE NÓS”

Em “Casca De Nós”, são apresentados a princípio dilemas que não configuram exatamente um problema. Então, frente a esta imprecisão não necessariamente problemática, as supostas soluções estão dispostas de maneira menos totalizadoras, permitindo um espaço em que o convívio e os atos não sejam tão precipitados a ponto de querer significar mais do que podem.

Mais problemático que estes dilemas são a forma medonha e cínica que muitos insistem em lidar com tudo isso ao redor. A facilidade com que as coisa brotam deste EP reivindicam o erro, querem se fazer notar pelas possibilidades guardadas ante o olhar comum.

Existe um clichê que diz que é “errando que se aprende”. Mas a noção de aprendizado é que está domesticada, se erra vivendo e se aprende muito pouco – e aprender nem deveria ser tão superestimado.

NOTA: 6,0
Lançamento: 26 de março de 2017
Duração: 8 minutos e 33 segundos
Selo: Independente
Produção: Gael Conhece O Mar
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DEBATE – “MELANCARONCA”

Debate foi uma das bandas que mais me empolgaram neste país. Compartilhou dois integrantes com outra das melhores bandas daqui, Diagonal – Sérgio Ugeda nas guitarras e vocais e Richard P. Ribeiro na bateria.

“Melancaronca” é um disco de 2007, que só foi mixado em 2012 (por Steve Albini) e surge com tudo o que caracterizou a banda: o vocal enfurecido, que fala berrando; a guitarra explosiva e coisa e tal. O tema do EP (eu não sei também se é EP ou álbum, mas pela duração estou considerando EP) relata, entre outras coisas, a dificuldade de se situar no presente encharcado não apenas por distúrbios sonoros (a guitarra rasgada de rifes irregulares) mas quando as próprias letras evidenciam que “está difícil respirar”. Os sentimentos se confundem: o que é necessariamente aceitar e o que é necessariamente esquecer? Como discernir os acessos pra estar em algum “lar”? Se estas perguntas obviamente não condicionam respostas fáceis, é justamente neste elemento-árduo (dum ser errante suspenso) que os caminhos se sobrepõem; daí a justaposição massiva de guitarra atrás de guitarra ressoando num corpo sonoro que justamente cresce quando menos tenta se impor.

É inevitável este procedimento pra banda. Mesmos nos instantes mais minimalistas (a faixa “Saudades”, a partir dos quatro minutos), fica nítida a impressão de algo estar radicalmente à deriva. É a incerteza monstruosa e quando a explosão ganha vida novamente. percebe-se que não estava quieta coisa nenhuma. Estava adquirindo sobrevida no limbo das lembranças.

Os barulhos, os avanços improváveis, as quedas bruscas – é justamente sobre um elemento improvável e incognoscível que sempre está “à moita”, irreconhecível mas pressentido. Chame isso de envelhecer, de cair na vida dita adulta ou qualquer coisa do tipo, mas o que caracteriza esta viva “não existência” é justamente a desconfiança de que os contornos determinados conspiram pra uma “não forma”.

Esta espécie de indeterminação fica evidente na faixa “Remete”, onde óbvios signos do jogo truco são trazidos como metáforas pra uma simulação contínua da vida. A carta em cima, a carta embaixo e o sinal escondido – está submerso nas impressões humanas a negatividade, o contrário.

Se estamos indo todos à falência (afinal: por que esta junção de símbolos não completam nada e apenas intensifica uma disposição totalitária inalcançável?), Debate sonoriza esta ida com recolhimentos impressionistas da incompletude de suas próprias vidas. Não é que eles tentem completar um painel com resquícios, mas eles tentam atravessar este panorama rompendo os limites da forma que podem.

NOTA: 8,0
Lançamento: 23 de março de 2017
Duração: 24 minutos e 42 segundos
Selo: Independente
Produção: Debate
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