A HISTÓRIA DE ELIZABETH COTTEN E SUA “FREIGHT TRAIN”

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Carrboro fica próximo do coração da Carolina do Norte, quase se confundindo com Chapel Hill, a pouco mais de vinte quilômetros de Durham e a sessenta quilômetros da capital do estado, Releigh. Já de Charlotte, a maior efervescência econômica do estado, são duzentos quilômetros.

Ali, naquela pequena massa urbana, encontram-se galerias de artesanato, comunidades de pequenos e médios agricultores que vendem produtos orgânicos e bares que estimulam a música independente. É um condado turístico, voltado às artes, à cultura e à vida desprendida. E tem por onde.

Além de vizinha da Universidade da Carolina do Norte (em Chapel Hill), a cidade se orgulha de dois acontecimentos singelos: foi ali que o REM fez seu primeiro show fora do seu estado natal, a Georgia, e onde Elizabeth Cotten morou e “se inspirou pra escrever” sua mais famosa canção, “Freight Train”, lá no início do século XX.

Cotten morava perto da estação de trem, que agora é um restaurante. Ela tinha onze anos quando começou a escrever a canção. “Freight Train” era um “tributo aos trens que paravam em Carrboro, os quais ela podia ouvir de sua cama à noite”, diz a placa comemorativa no restaurante. A referência à canção é importante: ela se tornou um verdadeiro clássico do folk estadunidense e do skiffle britânico.

Mas Cotten não foi imediatamente reconhecida como autora da canção.

Durante anos, “Freight Train” foi creditada a Paul James e Fred Williams, dois compositores britânicos, que sem pudores se apropriaram da música.

Cotten nasceu em 1893, em Chapel Hill. Negra, neta de escravos, sofreu pra impor sua identidade, como é de se imaginar. Com oito anos, já tocava violão e mostrava talento. Canhota e autodidata, teve que aprender a tocar investido, sem trocar as cordas. Mas aos nove, teve que deixar a escola e trabalhar como empregada doméstica. Aos nove anos!

A música foi circular nos ouvidos britânicos por conta de Peggy Seeger, admiradora do comunismo (e por isso na lista negra do macarthismo) que era de uma família bastante musical, os Seeger – o pai era um estudioso musicólogo e seus irmãos Mike e Pete tiveram uma intensa e longa carreira; Pete especialmente.

Cotten foi trabalhar como babá pra uma bem pequena Peggy (nascida em 1935) e depois como governanta dos Seeger. Nessa época, Mike, como o pai um estudioso do folk de seu país, gravava de forma caseira Cotten interpretando suas canções. Tais gravações acabaram depois se tornando o mais famoso registro de Cotten, “Folksongs And Instrumentals With Guitar”, de 1958 (o título original era “Elizabeth Cotten: Negro Folk Songs And Tunes”). Mike tomou o cuidado de assegurar o crédito das músicas a ela. Cotten tinha 65 anos.

Por essa época, quando Peggy teve que sair dos Estados Unidos pra exercer sua profissão de música, por conta da lista negra, ela levou alguma daquelas canções consigo. Foi pro Reino Unido (onde acabou casando e tendo filhos). E foi aí que os britânicos se deram conta da beleza de “Freight Train”.

Foi com a assinatura de Paul James e Fred Williams que Charles “Chas” James McDevitt gravou “Freight Train”, em 1956, e elevou a música a um sucesso nacional na ilha. Começava a onda do skiffle.

O estilo virou uma mania. Uma mistura de folk, jazz e blues, com instrumentos improvisados e que tinham um caráter artesanal. Uma música híbrida, simples e rítmica. Não durou tanto assim, já que logo foi superada pelo rock’n’roll na preferência da juventude.

Mas, até lá, muitos adolescentes formaram grupos skiffle, como laboratório pra futuras lendas do rock. O mais famoso foi os Quarrymen, que logo se tornaram os Beatles. Mas não só: Van Morrison e Mark Knopfler, por exemplo, reconhecem a influência do estilo em suas carreiras.

Mas dois deles realmente fizeram sucesso de imediato: os conjuntos de Lonnie Donegan e o de Chas McDevitt, que com Nancy Whiskey nos vocais chegou a vender mais de um milhão de cópias de “Freight Train”, sem que Cotten ganhasse um tostão.

Em julho de 1957, seis anos antes dos Beatles aparecerem por lá, Chas e seu grupo deram as caras no programa do Ed Sullivan, no mesmo dia em que Everly Brothers apresentou pela primeira vez “Bye, Bye, Love”. A audiência foi de nada menos que de quarenta e cinco milhões – muito por conta da beleza dos Everly, claro.

Provavelmente, nenhum daqueles expectadores sabia quem era a autora verdadeira de “Freight Train”, responsável direto pelo sucesso estrondoso de Chas e sua trupe.

Mas Cotten não era uma pobre-coitada jogada ao relento, apesar de sua posição profissional na virada doa 1950 pros 1960. Graças às gravações, Cotten se viu pequenos concertos nas casas de congressistas e senadores dos Estados Unidos, incluindo pra John F. Kennedy. O disco de 1958, segundo a Smithsonian Institution, “foi um dos poucos de música folk autênticos disponíveis no início dos anos 1960, e certamente um dos mais influentes”.

Foram as revisões que restabeleceram o crédito a quem de direito. Suas canções, como “Oh, Babe, It Ain’t No Lie” e “Shake Sugaree”, foram regravadas por Grateful Dead, Bob Dylan e muitos outros. De fato, a história tem um final feliz. Não é um conto de fadas, mas tem um encerramento que abriria o sorriso de qualquer expectador de uma cinebiografia.

Ela lançou outros discos: “Shake Sugaree” (1967) e “When I’m Gone” (1979), além de coletâneas e reedições, sempre com aclamação da crítica. O disco ao vivo “Elizabeth Cotten Live” recebeu um Grammy de Melhor Gravação Folclórica Étnica ou Tradicional em 1984. Ela tinha 91 anos. Ela foi indicada de novo em 1986 ao mesmo prêmio, mas dessa vez não ganhou.

Cotten continuou a fazer turnês e se apresentar até o fim de sua vida. Ela morreu em 1987, aos 94 anos. Peggy Seeger segue viva: em 2021, tinha completado 86 anos, mesma idade de Chas McDevitt.

Todos eles ainda rendem reverências à autora de “Freight Train”. Eles, o mundo, a história.

O serviço de “Folksongs And Instrumentals With Guitar” (ou “Freight Train And Other North Carolina Folk Songs And Tunes”, ou ainda “Elizabeth Cotten: Negro Folk Songs And Tunes”):

01. Wilson Rag
02. Freight Train
03. Going Down The Road Feeling Bad
04. I Don’t Love Nobody
05. Ain’t Got No Honey Baby Now
06. Graduation March
07. Honey Babe Your Papa Cares For You
08. Vastopol
09. Here Old Rattler Here / Sent For My Fiddle Sent For My Bow / George Buck
10. Run……Run / Mama Your Son Done Gone
11. Sweet Bye And Bye / What A Friend We Have In Jesus
12. Oh Babe It Ain’t No Lie
13. Spanish Flang Dang
14. When I Get Home

Aqui, você pode ouvir na íntegra o disco:

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