A LENDA DAS SEREIAS, RAINHAS DO MAR

Os sambas de enredo quase sempre recorrem às origens africanas, às quais estão ligados muitos dos compositores. Da mitologia Iorubá (africana, principalmente da Nigéria), abundam nomes como Olorun (o pai supremo), Exu, Obá, Ogum, Oxóssi, Xangô, Oxumarê, Oxum, Obatalá (Orixá), Olokun e, claro Iemanjá. Fácil achar músicas sobre, com e para esses orixás.

Iemanjá é uma das preferidas. Hoje, dia 2 de fevereiro, é seu dia. Os festejos, claro, se fazem presente por quase toda orla do Brasil. E não é difícil imaginar o motivo da preferência das pessoas (de qualquer religião), ou de carnavalescos e compositores, extrapolando o caráter religioso. É que a lenda dela parece sob medida pra teatralização carnavalesca.

Yemojá “Iemanjá” era filha de Olokum, reconhecido como o Deus do mar. Na antiga cidade de Ifé, na Nigéria, tornou-se a esposa de Olofin-Oduduá, com quem teve dez filhos, todos Orixás. Cansada de morar em Ifé, Yemojá fugiu na direção do entardecer da terra, como os Iorubás chamavam o oeste. Chegando a Abeokutá, Yemojá conheceu o Rei Okerê, e se apaixonaram. Okerê a pediu em casamento e ela só fez uma condição: que ele jamais ridicularizasse o tamanho de seus seios (é sério).

Só que é aquele negócio: Okerê enfiou o pé na jaca, tomou todas e começou a fazer galhofas com os enormes seios da esposa. Yemojá não gostou da quebra da promessa e fugiu. Okerê mandou seus guerreiros pra procurá-la e trazê-la de volta. Seu pai havia lhe ofertado uma poção, em uma garrafa, que deveria ser usada nesses momentos de apuros. Mas Yemojá tropeçou na fuga, o líquido se esparramou e acabou se transformando num rio de águas revoltas, em direção ao oceano. Okerê tentou impedir a fuga da esposa, e se fez colina pra barrar o curso das águas. Yemojá vendo bloqueado seu caminho, pediu ajuda ao seu filho Xangô, orixá do fogo e trovão, protetor da justiça, que lançou um raio sobre a colina e a abriu no meio, dando passagem ao rio. Yemojá foi pro mar e nunca mais voltou pra terra. Virou orixá feminino dos lagos, mares e da fertilidade, bem como a mãe de todos os orixás de origem iorubana. Ainda existe na Nigéria uma colina dividida em duas, de nome Okerê, que dá passagem ao rio Ogun, que corre pro oceano.

Por causa do sincretismo, Iemanjá tem outros muitos nomes, como Sereia do Mar, Princesa do Mar, Rainha do Mar, Mucunã, Dandalunda, Janaína, Marabô, Iemowo, Iamassê, Iewa, Olossa, Ogunté assabá, Assessu, Sobá, Tuman, Ataramogba, Masemale, Awoió, Kayala, Marabô, Inaiê, Aynu, Susure, Iyaku, Acurá, Maialeuó e Conlá.

É baseada nessa lenda que Vicente Mattos, Dinoel e Arlindo Velloso compuseram pro Império Serrano, em 1976, um dos sambas mais bonitos da história do carnaval carioca, “A Lenda Das Sereias, Rainhas Do Mar”. O carnavalesco era Fernando Pinto, também autor do enredo. A música originalmente foi cantada e puxada por Roberto Ribeiro e Sobrinho, mas ganhou interpretações famosas de Marisa Monte e, principalmente, a mais icônica, de Clara Nunes.

Ouça a versão de Marisa Monte, que está no primeiro disco dela, “MM”, de 1988. Note que Marisa, por ser portelense, não canta a estrofe que cita o Império Serrano “enamorado”.

E, aqui, o original, de 1976. Um primor de samba:

O mar, misterioso mar
Que vem do horizonte
É o berço das sereias
Lendário e fascinante
Olha o canto da sereia
Ialaô, Oquê, Ialoá
Em noite de lua cheia
Ouço a sereia cantar
E o luar sorrindo
Então se encanta
Com a doce melodia
Os madrigais vão despertar

Ela mora no mar
Ela brinca na areia
No balanço das ondas
A paz ela semeia

Toda corte engalanada
Transformando o mar em flor
Vê o Império enamorado
Chegar à morada do amor

Oguntê, Marabô
Caialá e Sobá
Oloxum, Inaiê
Janaína e Iemanjá
São Rainhas do mar

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Comentários

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2 comentários

  1. Olá Fernando e pessoal que acompanha o site (será que todo mundo acaba lendo os comentários – ou só o texto mesmo? Enfim…),

    A versão da Clara Nunes é, com certeza, sensacional. Ao mesmo tempo, veja só, penso que a Marisa Monte também faz um lindo papel na gravação dessa canção. De resto, tão lindo quanto qualquer mito grego (e, sim, eles são maravilhosos), essa lenda africana é de uma beleza e inteligência extraordinária. O samba é lindo demais – e eu fiquei muito feliz de ler esse artigo. Enriquece culturalmente demais quem pretende escutar atentamente essas histórias.

    Abraços.

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