A PRIMEIRA GRAVAÇÃO SONORA DA HISTÓRIA

A declamação do poema “Mary had a little lamb” ficou por muito tempo sendo considerado o primeiro som humano gravado da história. Ele foi dito por Thomas Alva Edison em 21 de novembro de 1877, no seu recém-inventado fonógrafo. Essa era mais uma das suas muitas invenções – Edison vivia de ser inventor, literalmente, patenteando mais de trezentas criações por ano; algumas dando um bom dinheiro pro seu laboratório.

O fonógrafo tinha fins comerciais, como tudo o que Edison projetava – inclusive a lâmpada elétrica, que ele inventou anos depois, em 1879.

O que ninguém imaginava é que cento e trinta anos mais tarde, em 2008, um grupo de estudiosos faria uma descoberta que tiraria o ineditismo das mãos de Edison.

No segundo semestre de 2007, um grupo de historiadores de áudio partiu em busca do “santo graal” das gravações de áudio, que possivelmente encontrava-se na França. Eram eles: David Giovannoni (historiador), Patrick Feaster (professor da Universidade de Indiana, Esteites), e Richard Martin e Meagan Hennesey (esses dois donos da Archeophone Records, um selo especializado em gravações remotas, a maioria datada do fim do século XIV e começo do século XX – vale dar uma fuçada no site deles pra se maravilhar).

O time é responsável por uma série de títulos do selo e já concorreu a cinco Grammy na categoria “Best Hitorical Album”, ganhando um, em 2007, com “Lost Sounds: Blacks And The Birth Of The Recording Industry, 1891-1922”; e a seis na categoria “Best Album Notes”, sem vencer nenhum deles.

Eles já sabiam o nome de um francês um tanto desconhecido, chamado Édouard-Léon Scott de Martinville, o inventor do fonoautógrafo.

Giovanni viajou a Paris a fim de visitar o escritório local de patentes, o Institut National De La Propriété Industrielle. Lá, encontrou registros que datavam de 1857 e de 1859 e faziam parte do pedido de patente de Scott de Martinville pro seu fonoautógrafo. Ali, fez cópias digitais em alta resolução, autorizadas, desses registros.

Outros registros do aparelho inventado por Scott de Martinville foram encontrados no Academia Francesa de Ciências. Foi ali que Giovanni diz ter acontecido a grande descoberta: uma folha de papel de nove por vinte e cinco polegadas meticulosamente preservada feita em abril de 1960.

As cópias desses registros – que nada mais eram do que ranhuras em papel – foram enviadas pro Lawrence Berkeley National Laboratory, na Califórnia, onde os cientistas Carl Haber e Earl Cornell trabalharam pra converter em sons, a partir de uma linguagem desenvolvida vários anos antes num computador.

O arquivo de 1860 foi separado em dezesseis faixas, nas quais o time dos quatro pesquisadores debruçou-se com esmero pra juntar tudo e fazer as adaptações de velocidade, já que a gravação num fonoautógrafo, assim como no fonógrafo de Edison, era feita girando uma manivela que torce o cilindro onde a agulha vibra e faz os sulcos.

A grande dificuldade se deu porque, ao contrário de Edison, Scott de Martinville não estava preocupado em reproduzir o som, mas apenas estudar as ondas sonoras impressas no papel enrolado no cilindro. Por incrível que nos pareça agora, o fonoautógrafo não foi idealizado pra reproduzir o que gravava. Já o fonógrafo de Edison foi pensado justamente pra isso – e mais: foi pensado não como um artefato de estudo científico, mas como um produto que tivesse apelo comercial e, pra isso, precisava reproduzir os sons.

Eis que é possível imaginar a loucura dos historiadores de tentar reproduzir algo gravado mais de 150 anos atrás (quando da descoberta, em 2008, eram 148 anos atrás) que não era feito pra ser reproduzido. O que iriam encontrar? O que iriam ouvir?

“Há uma enorme lacuna epistemológica entre nós e Léon Scott, porque ele achava que a maneira de se chegar à essência do som é olhando pra ele”, disse Jonathan Sterne, professor da Universidade McGill, em Montreal, e autor de “The Audible Past: Cultural Origins Of Sound Reproduction”, ao New York Times, em 2008.

“Olhar pro som”, numa época em que o som não havia sequer sido captado, era uma intenção científica, de fato, o que pra nós hoje não faz o mínimo sentido – e, a bem da verdade, como já dito, vinte anos depois já não fazia, quando Edison resolveu ganhar uma grana com isso.

Vale lembrar que o francês Édouard-Léon Scott de Martinville era um homem de letras e não um cientista propriamente dito. Ele era gráfico, trabalhava com impressão, e também era bibliotecário. Achava que seu invento auxiliaria na prática da estenografia. Em 1878, num livro de memórias, o francês reclamou do estadunidense Edison por se apropriar dos seus métodos e “desconstruir os propósitos da tecnologia de gravação”. O objetivo, argumentou Scott, não era reprodução de som, mas “escrever a fala, que é o que a palavra ‘fonógrafo’ significa”.

Mas a acusação de Scott de Martinville não parece ter fundamento. Ao que consta, Edison não tomou conhecimento dos avanços do francês e construiu seu fonógrafo por conta própria, partindo de uma lógica própria. O fonógrafo perdeu o posto de primeiro aparelho a gravar sons, mas segue sendo o primeiro a reproduzi-los.

Sabe-se, porém, que antes de Scott de Martinville, o inglês Thomas Young inventou o vibroscópio, que se tornou o primeiro aparelho a traduzir as vibrações sonoras em uma representação gráfica, em ondas, já se utilizando de um cilindro. E um outro francês, Hortensius-Emile Charles Cros, em 30 de abril de 1877, ou seja, antes de Edison falar “Mary had a little lamb” em seu fonógrafo, chegou a descrever o paleofone, um artefato que pretendia não só capturar o som e fazer sua representação gráfica, como reproduzir o resultado disso depois, como comparativo e demonstração da eficiência da captação. Mas Cross jamais chegou a produzir tal aparelho, já que logo ficou sabendo da invenção de Edison, do outro lado do Atlântico.

Scott de Martinville patenteou o fonoautógrafo em 25 de março de 1857. Thomas Edison patentou seu método de reprodução de sons em 15 de janeiro de 1878 – invenção cujo pioneirismo, apesar da descoberta dos registros de Scott de Martinville, preserva-se intocável em relevância até hoje. Do fonógrafo de Edison aos serviços de streaming atuais é tudo o mesmo processo evolutivo de reprodução sonora.

Mas em 9 de abril de 1960, dezessete anos antes de Thomas Edison declamar seu poema, Scott de Martinville girou sua manivela e cantou por dez segundos, a seu modo e desafino, a canção popular francesa “Au Clair De La Lune”. Ele mesmo não ouviu o resultado. Morto em 1879, um dia após completar 62 anos, estava desgostoso de não ser reconhecido.

Mas a história tratou de, por ora, dar-lhe o devido crédito. Até novas descobertas serem feitas.

Ouça o resultado do trabalho dos pesquisadores e dos cientistas:

É recomendável também ouvir os três áudios disponibilizados pela Wikipedia.

O primeiro é o som sem tratamento algum:

Depois, com a correção de velocidade, revelando a voz com mais clareza:

E, por fim, diminuindo a velocidade, o que, enfim, revela a voz masculina, a que se atribui, claro, a Scott de Martinville:

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