ÁCIDAS: A MELHOR BANDA QUE NUNCA EXISTIU E COMO ELA SERIA HOJE

Pra minha geração (nascidos na década de 70 e começo dos 80), a Internet rápida foi uma benção. Já há uma geração que nasceu com essa maravilha e nem se dá conta de que um dia ela foi discada. E lenta, muito lenta. E cara, bem cara. E rara, só pra quem podia pagar. Nada de celulares, dispositivos móveis, navegação na rua, ônibus e até avião. Era um negócio legal, mas não era pra todos e não era pra tudo. Hoje é.

Principalmente pra conseguir toda e qualquer música e disco que você pode imaginar e queira conhecer. Blablablá, né? Você já leu essas teorias e preâmbulos pra falar sobre como é o nosso tempo e a relação com a música e todas essas coisas. Não é exatamente o caso aqui.

Antes de ter que ganhar dinheiro, pagar contas e ser um cara responsável (que nunca fui, afinal), tentei ser responsável escrevendo sobre música. No começo da década de 90, trabalhei num pequeno jornal do interior do Rio de Janeiro e consegui convencer meu editor a escrever uma coluna semanal de música. Queria imitar na cara-dura o Caderno B do Jornal Do Brasil e fazer umas matérias in loco, daí que propus acompanhar por um final de semana inteiro, em estúdio, uma pequena banda chamada Nada Tudo, de dois irmãos de ascendência japonesa.

O som dos caras era como se os Strokes, que surgiriam quase dez anos depois, e os irmãos Reid tivessem tido filhos no Japão e eles resolvessem fazer música com amplificadores esculhambados e pedais defeituosos. Os dois tocavam guitarra. Não tinha baixo. A bateria era eletrônica, num desses teclados de churrascaria. A música soava incrivelmente ácida, caótica e boa. Eles cantavam em inglês, como era de praxe naquela época em que o Pin Ups era uma referência, e em japonês. Ou em algum idioma que não sei bem.

A dupla planejava gravar uma demo com um pouco mais de profissionalismo. A demo que eu recebi de um amigo era realmente sofrível, quase inaudível, e não tinha muita certeza se aquilo era um defeito de gravação ou se a banda era daquele jeito mesmo por mais cristalino que viesse a ser o processo de gravação.

Daí que resolvi fazer a matéria. A pauta era: “a aventura profissional do rock amador”. Não sei porque cargas d’água o editor comprou a ideia, mas comprou. Naquela época, era caro e raro ir a estúdio e uma banda que ninguém conhecia daria um passo e tanto. Parecia uma boa história. O jornal me deu uma grana curta pro ônibus até Volta Redonda, pra uma noite de hotel e um pouco pro rango.

Os dois rapazes da Nada Tudo eram gente boa pacas. Foram me receber na rodoviária. A pé. E fomos caminhando até a casa deles, uns quarenta minutos andando. Nada de hotel, ficaria por lá e economizaria a grana da hospedagem, de modo que no caminho pudemos comprar um tanto da marijuana que diziam os rapazes era a melhor que eu encontraria naquela região do Rio de Janeiro.

Os dois pareciam ter saído da capa de algum disco inglês: se vestiam com calças jeans surradas e pretas, camisetas pretas envelhecidas, não tiravam os óculos escuros de camelô e tinham um cabelo que parecia não ver água desde a maternidade. De alguma forma, aquela imagem deu-me uma certa esperança de que eu estava diante de dois gênios da música que ninguém jamais iria descobrir, a não ser eu mesmo, porque tirando os cariocas, ninguém ligava pra Volta Redonda.

Antes de ir ao estúdio, deixei minhas coisas na casa deles, que era uma casa bem decente, com jardim bem cuidado na frente, mureta baixa e um portão amarelo recém-pintado. A geladeira estava cheia. Havia frutas e verduras e não pizza adormecida e leite estragado, como preconceituei ser compatível com aquelas figuras. Certamente não eram eles que cuidavam daquela casa.

Fumamos aquele prumo comprado e apertado. Não é muito a minha praia, mas preciso admitir que aquele era muito bom. E forte. Em pouco tempo, sentia que aquelas horas no estúdio seriam bem produtivas. Eu estava certo quanto a isso. A não ser pelo fato de que a dupla não gravou uma nota sequer.

Chegamos lá com duas garrafas de uma vodca não muito considerada nas melhores mesas, entre bons papos e risadas e viagens, o máximo que consegui fazer foi tirar umas fotos deles posando com as guitarras no estúdio. Eles pagaram o estúdio e não gravaram. Mas conversamos muito sobre música e sobre o que eles esperavam da carreira deles, que basicamente não era nada: os dois não tinham a menor vontade de viver de música, de fazer shows, de nada. Só tocavam guitarra de vez em quando, faziam algum barulho e era isso. Um queria ser engenheiro e outro queria ser biólogo (fiquei com essa informação na cabeça. não sei o porquê).

Eles chegaram a tocar as músicas da demo. Não sei se pelo efeito dos neurônios afetados ou se pela vodca, mas aquela ruidosa luta de guitarras desalinhadas me pareceu sinfônica, uma doce e eufórica obra dos céus. Em transe, desejei naquele momento que as letras se materializassem na minha frente e o jornal chegaria aos ouvidos de todos os jovens desse país pra que todos entendessem que aquilo, sim, ora bolas, era música!

Fiquei sem minha matéria e tomei um esporro homérico do editor – mas ganhei uma das noites mais divertidas da década, num inferninho do qual não me recordo o nome, em algum cafundó da cidade. Um deles acabou expulso por passar uma cantada num dos garçons e nem vi a cena.

Com a chegada da Internet e dos programas de compartilhamento de MP3, fui atrás da Nada Tudo e talvez seja esse um caso ímpar de zero arquivos encontrados. Ou eles jamais gravaram alguma coisa, como esperei que eles fizessem, pra honrar aquela tarde que não podia ser em vão – uma tarde de não-música, não-arte, só de apreciação à música e à arte. Ou eles gravaram e jamais alguém ficou sabendo.

Os dois do Nada Tudo talvez se espantassem com a qualidade de dois discos que cruzaram meu caminho nesses dias. São discos opostos e ambos criados de uma maneira que seria impossível naqueles dias.

O trabalho absurdo de Fernanda Branco Polse, ladeada pelos músicos do Congo Congo (ouça o trabalho dos caras lançado esse ano) e do Iconili (ouça aqui), é de se espantar no modo como as coisas avançaram nesse quarto de século.

Ela vendeu o carro dela pra bancar a produção e gravação desse disco excepcional. Seria facilmente protagonista daquela minha pauta pro jornal. “Bicho Branco Polse” é de outubro de 2016, se não me engano, mas só fui ouvir agora. Sensual, potente, cheio de estranhezas sonoras (baixo, guitarra, bateria e sopros se encaixam como amantes em fúria) e melodias que lembram desde o Picassos Falsos de “Supercarioca” até um cabaré de quinta, passando por alguma trilha do “Twin Peaks”.

Fiquei viciado em “Erótica”, com Polse sendo tão poética sobre os dias de hoje: “Eu sou toda dividida / Em parte vazias de algo / Que me complementa”. Fiquei alucinado pelos pavões twinpeaksianos de “Oxossi”. As guitarras perfurantes do fim de “Deserto”, os sopros de “Laranja Neon”, o sambinha downtempo “Pillow Fight”, a letra da inocente “Wet For Her” e a ode a Gal Costa em “Gal”: Polse é o retrato do profissionalismo que usa Internet e os meios facilitados de produção, divulgação e distribuição pra explodir sua criatividade.

O que teria conseguido hoje os irmãos do Nada Tudo?

Uma boa resposta talvez seja uma outra banda, tão minúscula quanto a dupla de Volta Redonda: a Bials Speech. O grupo é de Maringá e é um quinteto, ao que parece. São todos jovenzinhos, como eram os irmãos do Nada Tudo à época. Devem conhecer o melhor prumo pra queimar daquela região do Paraná, porque só isso explica a doideira sem nexo do incrível “Agora Não Tem Volta”, o primeiro disco que o grupo lançou – esse é mais recente, de 5 de abril de 2017.

São oito músicas com colagens bizarras e guitarras que fariam sorrir o My Bloody Valentine. Tem referências fantásticas, como a deslumbrante “If You’re Looking For Me Better Check Under The Sea”, tirada do tema de “Laboratório Submarino 2021”; e a versão shoegaze do clássico natalino “Quero Ver Você Não Chorar”, quase um recado direcionado à própria banda.

Os títulos das músicas mostram uma postura oposta à de Polse: o Bials Speech parece estar brincando. Piadas internas, exercícios, risadinhas entre eles. Os títulos não deixam mentir: “Desculpa Mas Um Gato Comeu Minha Língua”, “A Época Que Eu Mais Ouvi Música Gótica Coincidiu Com A Época Que Eu Mais Usei Chapéu De Palha” e “Abordando Temas Como Amor, Drogas E Alienação Social”.

Mas as microfonias de “Lincoln”, a bateria punk de “Socorro” e os temas lentos são caminhos de uma estética que pode ser matadora se for melhor desenvolvida – alguns temas parecem acabar do nada, como a ótima canção “Desculpa Mas Um Gato Comeu Minha Língua”.

A gravação suja, baixa e de má qualidade ainda é melhor do que fizeram os caras do Nada Tudo, mas tem a mesma característica. Talvez o Nada Tudo existisse hoje como existe o Bials Speech, como uma brincadeira ou um passatempo. Mas poderiam, como o quinteto de Maringá, fazer um disco maravilhoso – e alguém iria ouvir e se encantar.

Com a Internet farta de hoje, todos cedo ou tarde passam pelo radar de alguém. Basta um search. E entram pra história dessa pessoa. O Nada Tudo faz parte apenas da minha memória e dos dois rapazes. É a melhor banda que nunca existiu.

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