ÁCIDAS: O NATAL DE TODO ANO

Eu já havia desistido de escrever sobre música quando o Floga-se me chamou pra esta coluna. Escrever sobre música nunca deu dinheiro e creio que não dá pra ninguém, de modo que quem o faz é por gosto, por teimosia ou por uma ilusão meio masoquista de achar que alguém tá lendo quando na verdade nem mesmo as moscas estão.

Por outro lado, o fato de eu ter um espaço pra escrever sobre o assunto me fez ficar especialmente mais atento sobre o que tá acontecendo. Menos por um receio imaturo de não falar besteira e mais porque acendeu em mim aquela vontade de me inserir no novo século: afinal, o quanto de música há disponível pra gente ouvir de graça e o quão rápido os lançamentos de lá chegam cá, enquanto lembro que na minha adolescência, lá nos anos 1980, o sujeito tinha que ter muita sorte ou conhecimento de garimpagem musical nas grandes cidades pra colocar as mãos num vinil independente que fosse particularmente excitante (um “The Queen Is Dead”, dos Smiths, por exemplo).

Não precisei ir muito longe. Meu sobrinho (já falei dele aqui) segue me dando dicas, mas o próprio Floga-se faz o serviço sujo e coloca no ar uma série de listas de final de ano que ampliam a ansiedade de quem de repente se vê diante de tanta coisa disponível pra consumo sem tempo suficiente pra isso.

Esta lista aqui é insana (mais de mil discos pra ouvir na íntegra? Sério?). Quando eu me der conta de um terço, provavelmente já estarei diante de uma lista equivalente de lançamentos de 2018. E esta outra lista, a das listas de melhores discos?

Às vezes acho que a ignorância é um bom refúgio, mas essas obras estão aí, existem, o mundo moderno as deixou disponíveis, então… por que não? E comecei minha saga de forma aleatória. Não deu muito certo, porque se tornou um exercício enfadonho. Mas não quis desistir, porque é estimulante estar a par de tantas obras criativas e tudo o mais.

É meio óbvio o que vou escrever, mas deu pra entender a importância das tais listas de melhores discos do ano. Elas nos ajudam a filtrar e nos guiam entre os milhares de lançamentos. Mesmo assim, é coisa demais e é um exercício cansativo.

Comecei pelos primeiros das listas e quase nada me chamou atenção. Ou os críticos estão ouvindo as mesmíssimas coisas ou é tudo jabá. Quase não há variação. No meio de tantas opções, é estranho pacas. O “Damn”, do Kendrick Lamar, é até ok, mas só isso. “Melodrama”, da Lorde, é música pra loja de departamento estéril e adolescente, é total dispensável. No meio das listas, outras tantas bobagens sem graça. Porém, veja só, algumas coisas que poderiam escapar até são bem interessantes.

Uma ou outra lista indicou dois EPs de uma coreana-estadunidense chamada Kathy Yaeji Lee, de 23 anos, ou simplesmente Yaeji. Os EPs levam o nome dela, cada um com cinco músicas espaciais, uma house-viajante que não chega a causar conforto, mas também não coloca pra dançar. Não consigo imaginar como eu conheceria a Yaeji se não fossem essas listas.

Numa das listas, me deparei com um disco novo do Oxbow. Não sei ao certo, mas acho que a banda não lançava nada desde 2007 e não fazia ideia que a estranheza estava de volta.

Não sei se vou ensinar o pai-nosso ao vigário, mas o Oxbow é um quarteto californiano que lançou o primeiro disco em 1989, chamado “Fuckfest”, e é uma doideira só. Noise rock, avantgarde, esses rótulos sem parecer cabeção. É pra pirar mesmo.

Esse “Thin Black Duke” é uma preciosidade e pode ser ouvido na íntegra:

Há muita coisa que me chamou atenção, só listar tudo faria o texto ficar enorme, então passo pro disco que mais me balançou: “Just Say No To The Psycho Right-Wing Capitalist Fascist Industrial Death Machine”, do Gnod.

Eu poderia dizer que o título é a melhor coisa publicada em 2017, mas a negativa à mortal máquina industrial de fascistas capitalistas da direita psicótica tinha que ter um conteúdo à altura. E o Gnod oferece isso. A porrada noise-industrial-kraut desses britânicos é tão espetacular – a discografia extensa, desde 2007, é outra aventura – quanto é massacrante sua tonelada de informação em cada música.

Só que, definitivamente, esse não é o meu ponto neste texto. O que eu quero dizer é mais pueril e inocente. É um grande clichê dos tempos modernos, na verdade. Um clichê que pode até irritar o leitor e pelo qual já me adianto e peço perdão. É uma percepção que você, leitor, já deve ter há anos, mas esse é o primeiro Natal que percebo o grande presente disponível a todos. Dá vontade de comprar todos esses CDs, ler os encartes, namorar as capas, decorar as fichas técnicas, como eu fazia vinte, trinta anos atrás. Mas é impossível, sei disso.

No Natal moderno, descobri que posso ouvir o disco que eu quiser, a hora que eu quiser. Não consigo comprá-los, não faço ideia do quanto custaria pra me remeter àqueles natais de antigamente. Não importa, cheguei atrasado nessa brincadeira, mas descobri a tempo o que posso me dar no Natal de todo ano: o prazer de percorrer essa maratona de me manter atualizado. Há algo de bom nisso que chamam de “modernidade”.

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