ÁCIDAS: O NATIONAL E AS MUITAS OU POUCAS BELEZAS

Monique era linda. Exalava tanta sofisticação que passei a chamá-la de Moniquê, um afrancesado acento que a divertia. Não era uma beleza padrão. Era um tanto “acima do peso” (acima do peso de quem, cara-pálida?) e andava com tanta graciosidade que faria aquelas modeletes robóticas e esqueléticas do padrão desfile de moda parecerem elefantes desengonçados. Apaixonei-me de imediato.

Mas nunca chegamos a namorar. Ela gostava de aproveitar a vida e transava com quem queria. Sorte minha que queria com frequência comigo. Era o que chamam de amizade colorida. Passar tempo juntos era divertimento com sexo divertido.

Só que o mundo é implacável. A gente acha que pessoas bem resolvidas estão imunes às maldades do mundo. Não estão, claro. Moniquê não estava. Apesar das risadas, do constante bom humor demonstrado, dos muitos amigos, do carinho, ela sofria. Ninguém imaginava que ela tinha depressão. Bom, a maioria imagina a depressão como algo nada além de “frescura” ou tristeza passageira. Eu tenho e monitoro constantemente. Há graus. Não é brincadeira.

Moniquê me ensinou muita coisa. Não só a viver bem, curtir o dia a dia a partir do mínimo, mas sobre música. Ela era fascinada por um tipo de música que se vê nas páginas desses sites descoladinhos como o Pitchfork e o Consequence Of Sound, site que vivem mais de pautas cavadas por assessorias do que de jornalismo de fato – e que um bocado de sites no Brasil imita. Apresentou-me uma cacetada de artistas e alguns deles acabaram na minha lista de favoritos diários.

Um deles foi o National, grupo que já vi aqui no Brasil e que virou uma espécie de queridinho dos descoladinhos pelo som de fácil assimilação e elegante apresentação.

Em 2017, o quinteto de Ohio lançou seu sétimo disco, “Sleep Well Beast”, tentando exorcizar alguns dos demônios que, afinal, nem são só deles.

Nos últimos dias, Moniquê andava mais furtiva, pensativa, calada. Ouvia “Sleep Well Beast” com frequência no seu aparelhinho minúsculo de MP3. Era uma das suas bandas preferidas, afinal de contas. Foi o disco que adotei depois que tudo aconteceu.

Semana passada, Moniquê se jogou da janela décimo-quinto andar no prédio onde morava sozinha, no Rio de Janeiro. Os amigos dizem que ela morreu antes do corpo se espatifar na traseira de um carro estacionado lá embaixo: o coração talvez tenha parado antes, tal a descarga de emoção pelo ato final. É um modo de tentar amenizar a dor de quem fica. A dor dela devia ser insuportável. Silenciosa, mas insuportável.

A última vez em que estive com ela, amante e amigo, foi no mês passado. O trabalho de nós dois andava naquela exigência que não nos permite encontros constantes. Ela era maquiadora. Naquele dia, foi trabalhar normalmente. Sorriu, almoçou, parecia se divertir como nunca no trabalho que nem considerava um trabalho de tanto que gostava. Voltou de carona com duas amigas, que a deixaram numa padaria perto de seu prédio. Ali, comprou pão, requeijão light, um chá verde em caixa, pagou em dinheiro e foi pra casa. Trocou de roupa e foi correr pelas ruas do bairro – havia conquistado o prazer da corrida há pouco tempo e vinha perdendo peso, algo que nem parecia uma obsessão pra ela, apesar das piadinhas que sempre ouviu.

Sua família refez os passos dela naquele dia. Durante todo o tempo, parece, só ouviu “Sleep Well Beast”, mas isso sou eu quem está dizendo. A família deixou o tocador de MP3 dela pra mim. Quando foi encontrado, estava tocando ininterruptamente o disco, já que só havia esse disco ali. Na primeira música, “Nobody Else Will Be There”, Matt Berninger canta “Goodbyes always take us half an hour / Can’t we just go home?” (“Despedidas sempre nos tiram meia hora / Não podemos só ir embora?”). Era essa a frase que estava no bilhete, não carta, de “despedida”. Despedida que, como se vê, ela não queria ter. Sua ideia era que as pessoas ficassem com uma mensagem positiva de sua passagem por aqui.

É a sensação que tenho ao ouvir o disco. Ele me dá uma tristeza absurda pela lembrança de minha “amiga colorida” que se foi sem um tchau, menos até do que pela temática, sobre a solidão, com picos de cafonice dramática (como na ótima “Day I Die”, que também trata bullyng no relacionamento e ciúmes), mas não só. O próprio vocalista Berninger admitiu que há cutucadas em Trump, o presidente que o mundo adora odiar e que tem por obrigação esculhambar (só ouvir “The System Only Dreams In Total Darkness”, com sua guitarra palpitantemente estridente, e a incrível “Turtleneck”, talvez a mais feroz e ácida canção do National, algo velvetiana).

Fui atrás e vi numa entrevista que Berninger disse que “as letras são de livre associação, algumas com referências óbvias a ‘certas’ pessoas nos dias de hoje que não conseguimos evitar. Muita coisa é sobre moda, algumas são sobre sexo, mas muitas delas são misturadas com a política e a confusão total e a frustração”. Mas é meio que uma afirmação que se pode fazer de todo disco do National ou até mesmo de toda a produção musical popular, numa medida ou outra.

Moniquê pode ter ouvido o disco por apoio, por identificação, ou pode só ter gostado da obra por ser do National, sem se atentar às letras (ela não tinha no inglês seu forte). Pode ainda ter tomado a decisão fatal minutos antes dela acontecer. A gente não sabe como nosso cérebro funciona e que estalo deu pra desencadear o ímpeto.

“Sleep Well Beast” não foi à primeira audição meu disco preferido do National. Talvez nunca se torne, por tudo o que aconteceu. Meus preferidos são o “Boxer” (2007) e o “High Violet” (2010), que eram os preferidos dela também. Porém, é inevitável que esse trabalho fique pra sempre como uma marca trágica na minha vida.

Longe também de culpar a obra. Moniquê não pulou com ele. Deixou pra trás. E tocando. E, ao final de tudo, deixou pra mim.

Há músicas muito tristes (algumas passáveis), como “Empire Line”, “Guilty Party” (com uma batida radioheadiana), “Dark Side Of The Gym” e “Carin At The Liquor Store”, que faz alusão a uma das músicas preferidas dela, “Karen”, de “Alligator” (2005). Carin e Karen são a mesma personagem, só que Carin é a grafia certa. E é nessa música que eu creio que ligamos Moniquê e o disco: “So blame it on me / I really don’t care / It’s a foregone conclusion” (“Então, me culpe / Eu realmente não me importo / É uma conclusão inevitável”).

Ninguém pode culpar ninguém por estar doente. Depressão, vale aqui a lembrança, é uma doença cruel e implacável. Ao contrário, creio que “Sleep Well Beast” deu mais algumas semanas de vida a ela. Gosto de pensar nessa alternativa. Talvez Moniquê fosse expulsar toda a crueldade silenciosa do mundo preconceituoso e exigente sobre ela de qualquer jeito, com ou sem a obra. Ao ouvir a voz de Berninger remetendo a Leonard Cohen na faixa-título, a derradeira do álbum, talvez ela tenha achado que não podia ir embora sem viver um pouco com tal beleza.

Só que há pouca beleza no mundo. Ou há muita. A visão sobre essa afirmação é que nos diz se estamos conseguindo conviver bem nele ou não.

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Comentários

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4 comentários

  1. Cara, que texto! Mexeu muito comigo.
    Comecei a ler por ser admirador da banda, mas como também sofro com a depressão (em maiores ou menores níveis, a depender da época), a identificação foi imensa, ainda que inevitavelmente algo incômoda.
    Muito bom texto, como escrevi por aí, a (não) resenha mais bonita que leio em muito tempo.
    Obrigado.

  2. Obrigado, Ricardo. É um problemão mesmo, que as pessoas tendem a achar “frescura”, como repara o autor do texto.

  3. Nossa, fiquei sem palavras… Me fez lembrar da minha noiva, ela tem depressão também e ultimamente estamos passando por uma crises bem fortes, e The National é uma das trilhas sonoras mais marcantesde nosso relacionamento. Me deu vontade de pegá-la no colo e nunca mais soltar. Belíssimo texto.

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