ÁCIDAS: UMA VOZ NA QUARENTENA PEDE LIBERDADE

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Tá difícil pra todo mundo. Ninguém aguenta. Ficar em casa por tanto tempo tem sido um sacrifício, mas é um sacríficio valioso: você evita de morrer e evita matar pessoas, ou ao menos contaminar.

Mas não é assim pra todo mundo. Tem gente que insiste em menosprezar a maior crise que o ser humano já viveu em, sei lá, cento e vinte anos. Tudo culpa do presidente idiota que o brasileiro colocou no poder, mas culpa do brasileiro médio também (vale ler este texto).

Fico eu imaginando o quão imbecil devo parecer por insistir em me manter guardado, enquanto o pessoal lota bares, restaurantes, salões de beleza, faz fila em academias, festas de ruas e tudo o mais, como se a vacina fosse uma realidade.

E tenho um exemplo de peso. Meu vizinho é um desses brucutus bolsonaristas. Parece um armário e não cumpriu um só dia de quarentena. Vejo ele sair de carro todo dia.

Já tomou multa do prédio por circular pelas áreas comuns sem máscara.

Pelo visto, vai trabalhar. Não faço ideia do que ele faz, se é empregado ou um desses pequenos empresários que se ferraram na fase mais aguda de isolamento social, se é que existiu isso em algum momento no Brasil.

Entendo a raiva de quem não gosta de ser obrigado a ficar em casa. Entendo principalmente o empregado forçado a se meter em ônibus, trens e metrôs lotados pra trabalhar. E entendo o pequeno empresário que não recebeu um só tostão do governo e teve que fechar as portas. Entendo as angústias de todo mundo, mas não entendo o descaso.

O vizinho é casado, ou juntado, sei lá, com uma moça de mais ou menos a mesma idade, por volta de trinta, trinta e pouquinhos. Como ele, deve ser adepta de academias e tals, corpaços dos dois.

Eventualmente, pela janela, ouço os dois discutindo. Sempre à noite, quando ele resolve sair pra encontrar amigos no meio da pandemia. Ela resiste, não quer ir, não vai. Ele sai sozinho à noite. Lá vai seu carro saindo da garagem. Várias noites.

As brigas foram se tornando cada vez mais intensas. Ouço uma quebradeira. Devem voar copos, pratos, vasos, imagino. Ela o chama de insensível, mas em termos pouco diplomáticos. Ele a chama de puta e cadela medrosa e imagino que seja porque ela não quer se aventurar com ele nessa mania de furar quarentena.

Certa vez a encontrei no saguão do elevador. Eu de máscara, ela de máscara. “Bom dia”, “bom dia” de resposta. Tudo protocolar.

Fiquei reparando o quanto de raiva ou infelicidade havia por debaixo daquela máscara.

Até que descobri recentemente. Três meses enclausurados e todas as fissuras da união se ampliaram por entendimento do que é viver em sociedade. Assim gosto de imaginar.

Uma pancada fortíssima de porta se fechando. Alguns berros de “filho da puta” e “canalha” ecoaram praticamente dentro do meu apartamento. Abri a porta e lá estava ela, de máscara. Ele abre a porta, já a chamando de “puta” e outros adjetivos. “Tá olhando o quê, ô viadinho?”, apontou pra mim.

Fiquei parado. “Entra, seu puto!”. Fiquei parado. A mulher olhou pra mim, espalmou a mão cheia como dizendo “calma, espera!”. O cara lá, me xingando e xingando ela. O elevador chegou. Ela colocou duas grandes malas pra dentro, sem muito esforço. Ele segurou no braço dela e, então, aconteceu o que me pareceu o ato mais libertador que vi uma pessoa ter em muito tempo; ela facilmente se desvencilhou do fortão e meteu-lhe uma porrada nas fuças, que o cara tombou pra trás e bateu a cabeça no vidro que guarda o extintor de incêndio.

“Você nunca mais encosta em mim, seu escroto!”, ela gritou, meio soluçando, enquanto a porta do elevador se fechava. Ele ficou lá, segurando o nariz sangrando, ajoelhado no chão. Fechei a porta. A última vez que a vi foi justamente ao olhar pra garagem. Assim que ela chegou, ligou o carro que ele sempre usava pra sair e foi-se embora.

Um momento libertador. Havia tempo que não via algo do tipo.

Faz pouco tempo, não sei se haverá reconciliação, que fim o casal levou. Nunca mais o vi também. Nem a vi. Nem vozes vindo do apartamento deles.

Gosto de achar que a moça se encheu de um relacionamento estúpido e vai ter uma vida melhor. Torço pra isso.

Até porque um dos meus discos preferidos nessa quarentena fala justamente sobre isso: libertação. É “The Greatest Part”, de Becca Mancari.

Ela disse que “foi a coisa mais difícil que já teve que escrever”. E é, “ao mesmo tempo, a mais libertadora”.

É essa dicotomia, esse atrito entre tristeza e alegria, dor e perdão, tristeza e libertação, que está no coração do disco (li essa frase em algum lugar e fiquei pensando o tempo inteiro na situação dos vizinhos). Porque o disco é sobre isso.

É meio sobre o socão que a vizinha deu no ex estúpido dela. O nariz sangrando dele é o disco pronto, rodando o mundo, ganhando elogios.

Becca Mancari sofreu numa família fundamentalista cristã. Gay, ela não era bem recebida dentro de casa. Seu pai não a abraçava de volta e isso ela conta explicitamente na melhor música do disco, “First Time”. Que porra a religião tá fazendo com as pessoas? As convicções das pessoas não podem machucar outras. É simples.

“Hey did you find your way out?”, ela pergunta insistentemente no refrão, numa música que é essencialmente feliz.

Encontrar uma saída, a sua saída, é algo mais importante na sua vida do que a vida em si. Porque viver preso em alguma pseudo-verdade criada pra você maquiar seus problemas é nada mais do que isso: viver numa prisão. E isso não é viver.

Becca se livrou. Como minha vizinha. E como espero que todo mundo consiga.

Ela nasceu em Nova Iorque, de uma família meio italiana, meio porto-riquenha, mas totalmente fundamentalista. Conseguiu zanzar o mundo. Foi à Índia, Flórida e aquietou-se em Nashville, a capital do country.

Mas ela passou a vida ouvindo indie e shoegaze, que não passa perto de ter em “The Greatest Part”, e música country não tinha nada com ela.

O que tinha a ver com ela, que a libertasse, eram justamente os sentimentos dela. Falar sobre ela, de uma maneira que a livrasse das assombrações.

Seu primeiro disco, “Good Woman”, de 2017, foi um sucesso, por assim dizer (ouça aqui). Ela, finalmente, conseguia viver da sua música.

E foi mais longe. Juntou-se à vocalista do Alabama Shakes, Brittany Howard, e ao colega compositor Jesse Lafser pra formar o Bermuda Triangle, que a imprensa chamou de “supergrupo” e recebeu críticas entusiasmadas.

Ela viajou. Solo ou com o Bermuda Triangle. Podia viver de sua música, não precisa estar ligada a preceitos familiares que nada tinha a ver com ela, embora aquilo a atormentasse.

“Cheguei a um ponto em que parecia que não podia continuar, onde queria entrar em turnê apenas para fugir de tudo”, disse Mancari numa entrevista. “Mas toda essa memória e verdade voltou à tona, me dizendo que eu tinha que escrever sobre isso. Então foi isso que eu fiz”.

E assim nasceu “The Greatest Part”.

Com “Good Woman”, “eu estava assustada, estava protegendo a mim e a minha família. Mas percebi que dizer a verdade é realmente uma maneira de me amar e amar ainda mais minha família”.

“Na maior parte, este álbum é apenas duas pessoas se divertindo juntas no estúdio, sem absolutamente nenhuma restrição”, explica Mancari referindo-se ao Carlos De La Garza, produtor e engenheiro de som mais ligado ao Paramore e que trabalhou também no “Petals For Armor”, primeiro disco-solo de Hayley Williams, vocalista do Paramore, lançado em 2020.

“Duas pessoas se sentem totalmente à vontade pra se expressar, e é isso que foi tão libertador pra mim”, disse.

As belas canções se sucedem. “Lonely Boy” é de tocar o coração, embora musicalmente não pareça:

“Stay With Me”, praticamente um apelo choroso. Porque vale lembrar que se libertar não resolve tudo na sua vida.

Ao contrário, é o passo mais importante, mas diante de si há apenas folhas em branco, esperando você começar do zero a escrever sua própria história.

Dá trabalho, requer muita responsabilidade, compreende frustrações, talvez até mais do que vitórias, um bocado de solidão, mas momentos magnificamente exuberantes.

Essa liberdade é óbvia desde o início do disco, que começa com “Hunter”. Mancari canta pra um fantasma de seu passado, prometendo: “You’re never gonna track me down / You’re never gonna find me out”.

Como grande parte do álbum, é uma música de desafio e autoconfiança, marcada por solidão e arrependimento.

“A maior parte da vida, pra mim, é ser um humano real que ama as coisas e as perde”, ela disse. “A maior parte da vida é vivê-la”.

Não dá pra ser mais objetivo do que isso.

Espero que todo mundo, de Mancari à minha vizinha, passando, talvez, por você que me lê, encontre sua saída e vá viver sua vida.

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