BARBED WIRE KISSES – A HISTÓRIA DO JESUS & MARY CHAIN

Foi com “Psychocandy”, de 1985, que os irmãos Jim e William Reid deram mais uma guinada no sempre altercado rock’n’roll. O estilo já havia passado pela tenra infância, com Chuck Berry e Elvis; pela segunda infância, com os Beatles, Rolling Stones e Beach Boys; pela pré-puberdade, com o Led Zeppelin, o Pink Floyd, o Yes; e atingido a adolescência com os punks, Ramones e o início da farofada, antes dos anos 1980 profissionalizarem a coisa toda em várias mídias, de rádios e revistas a televisores, vídeo-cassetes, CDs, tocadores portáteis de fita e até os primeiros celulares. Toda hora havia uma chacoalhada sendo dada. As distorções de “Pyschocandy” unidas à doçura herdada do Velvet Underground davam ao mundo uma banda totalmente sem paralelos. Um baterista que tocava em pé. Shows ensurdecedores de no máximo quinze minutos. Óculos de sol e jaquetas pretas de couro, calças pretas, olhar baixo e depressivo, letras sobre sexo desastroso, amor, motos e coisas do tipo. O Jesus & Mary Chain não tinha uma referência só, era uma união de várias no nascimento de uma só.

Mais de quarenta anos depois, olha-se pro passado como uma visão que só o passado e a história feita podem dar: aquilo não era uma aventura adolescente efêmera e tresloucada. Aquilo era importante pra valer – talvez até por ser também uma aventura adolescente e tresloucada.

A história dessa banda, que ficou conhecida pelas microfonias, pela mutação disco após disco, por sucessos como “Something Always”, “Just Like Honey”, “Happy When It Rains”, “April Skies”, “Blues From A Gun”, “Head On”, “Almost Gold”, pelas constantes brigas e idas e vindas dos irmãos-núcleo do grupo, tem tudo isso e tem algo que poucas conseguem ter: um lugar de honra nesse mercado e no coração e memória das pessoas (como não se divertir com esta história?)

O furacão provocado por cada passo dado pelo Jesus & Mary Chain renderia muitos causos que mereciam ser contados e é isso que Zoë Howe fez em “Barbed Wire Kisses, A História do Jesus And Mary Chain”, que está sendo lançado agora no Brasil, neste mês de junho de 2019, pela novíssima editora Sapopemba (vale acompanhar aqui). A escritora também é autora de “Typical Girls? The Story Of The Slits” e “Stevie Nicks – Visions”, lançados em 2009; “How Is Your Dad? – Living In The Shadow Of A Rock Star Parent”, de 2010; e “Dreams And Rumours”, de 2014.

O texto da jornalista escocesa, nessa edição brasileira, ganha o importante prefácio exclusivo escrito por Douglas Hart, baixista da banda no início da trajetória: “foi duro ter deixado o grupo. Na época das gravações do ‘Automatic’, eu já estava fazendo vídeos, então acho que todos nós sabíamos que era hora de seguir em frente. Ainda assim, foi como se eu estivesse perdendo o amor da minha vida. E ver a banda pela primeira vez com outro baixista foi como ver o amor da sua vida beijando outro homem! (…)”.

Segundo o informe oficial da editora, “Zoë penetrou no mundo quase indecifrável dos irmãos Reid, ouviu as principais figuras que orbitaram ao redor de Jim e William desde 1983, quando a semente do Jesus And Mary Chain começou a germinar, e apresenta a história de uma banda que tinha tudo pra dar errado, mas que se tornou um dos nomes mais influentes do rock desde o lançamento do primeiro single, ‘Upside Down’, um ano antes do debut em LP, pela mítica Creation Records, de Alan McGee – a mesma que descobriu, na metade dos anos 90, outros dois irmãos-problema, Noel e Liam Gallagher, e com eles saiu da falência. Das fotos ‘ao vivo’ fabricadas dentro do quarto dos Reid pós-adolescentes aos problemas enfrentados no festival itinerante Lollapalooza em 1992; do enfrentamento a hooligans nos primeiros shows pela Inglaterra em 1984 à ressaca encarada durante a participação no programa do apresentador David Letterman, também em 1992, da briga e separação no palco do House of Blues, em Los Angeles, em 1998, à volta arrebatadora da banda, em abril de 2007, no palco do festival Coachella, acompanhados pela atriz Scarlett Johansson, Zoë não poupa ninguém nem deixa de fora histórias que teriam potencial pra arrasar a reputação de qualquer outra banda – não a do Mary Chain”.

É uma dessas histórias que separamos aqui, como petisco oferecido pela Sapopemba, um trecho do capítulo 24 do livro, que descreve exatamente a passagem tensa da banda pela edição do festival Lollapalooza de 1992.

É uma amostra rápida de como a passagem do Jesus pela Terra arranhou a percepção de muita gente sobre música. Nada mais seria como antes.

William estava cada vez mais irritado com a sempre presente e impertinente gangue de puxa-sacos de Ice Cube que, lembrou Jerry, de vez em quando, entrava batendo o pé na tenda do bufê, jogando a comida das pessoas no chão, como valentões de escola. O que mais deixou Jerry chocado não foi William ter perdido a paciência com aqueles caras, foi ninguém mais ter ousado dizer nada. “Não foi maldade do William, com certeza não teve nada a ver com racismo”, disse Jerry. “Foi só uma reação tipo: ‘Me deixem em paz'”.

Infelizmente essa grosseria se juntou à confusão mal-humorada de sempre do Jesus And Mary Chain e liberou algo em William, como um gênio muito irado que saísse de uma lâmpada. “Foi quando a loucura do William começou a virar um problema”, disse Jim. “A equipe do Ice Cube estava correndo com pistolas d’água, molhando todo mundo. Era irritante, mas todos os caras das gravadoras que estavam lá não diziam nada, porque não queriam aborrecer a banda de rap“.

“Molharam o William ou a Rona (namorada dele à época), e o William puxou briga. Só que os caras não eram de brincadeira. Um deles acertou o William com uma garrafa, e o William veio me dizer, coberto de sangue: ‘O cara do Ice Cube fez isso’. Eu disse: ‘O.k., então vamos pegar aqueles caras’. Eu não consigo bater em um saco de papel, mas, quando você está bêbado, você é o Super-Homem. Fomos procurar o cara que tinha feito aquilo e aí nos disseram que estavam todos no ônibus, armados, esperando por nós. Então pensei: ‘Bem, talvez…'”.

Essa não foi a única ocorrência relacionada a Ice Cube naquela turnê. Ben Lurie não se lembra, mas foi apontado como o responsável por garantir a veracidade da história a seguir. Ele contou: “A gangue do Ice Cube usava armas falsas no palco, tipo rifles feitos de borracha. Dizem que eu andei com uma dessas armas e fui parar no escritório da produção, onde os managers da turnê, por acaso, estavam fazendo o caixa do dia”.

Atordoados com a visão de um lunático cabeludo, de olhos selvagens, empunhando o que parecia ser um rifle, todo mundo entrou em pânico, e Ben quase levou um tiro de alguém que tinha sacado uma arma de verdade. “Um dos managers dos Estados Unidos estava armado”, murmurou ele pesarosamente.

A turnê terminou em 28 de agosto de 1992, e o Jesus And Mary Chain voltou para casa exausto e traumatizado. Teriam dois meses até retornar aos Estados Unidos para a segunda parte da Rollercoaster Tour, dessa vez acompanhados das bandas Spiritualized e Curve. Mas os dois meses estariam longe de ser uma oportunidade para descansar e se recuperar. “Eu ainda não tinha começado a me embriagar em casa, mas, quando voltei daquela turnê, fui atrás de cocaína”, disse Jim. “Diria que, mais ou menos na metade da década de 1990, a cocaína ditava todas as minhas decisões”.

Ben Lurie também estava aspirando copiosas quantidades de cocaína naquela época, o que sacramentou ainda mais firmemente o laço entre Jim e ele. Já William preferia maconha. Inevitavelmente, isso dividia a banda. “Eram dois lados: um que gostava de cheirar e outro que gostava de fumar”, disse Jim. Aparentemente, William tinha começado a se ressentir da presença de Ben e se referia a ele como “o Smithers” de Jim – Jim sendo “Mr. Burns”, de Os Simpsons, segundo contou Douglas.

“O William e o Ben se amavam”, disse Jim. “Mas minha opinião é que, naquele ponto, o William não estava sendo nada sensato, e acho que qualquer um com a cabeça no lugar concordaria comigo. O Ben via as coisas do jeito dele, mas o William achou que o Ben escolheu o meu lado. E não foi isso o que aconteceu”.

Quando a Rollercoaster voltou a rodar, a depressão reinava suprema, e o vício em maconha de William atingiu o ápice. O voo entre Nova York e Filadélfia foi cheio de ação, para dizer o mínimo. Naquele dia, William levou um saco de maconha de tamanho considerável e que, compreensivelmente, não quis jogar fora antes do embarque. Então, antes de saírem do hotel, ele fumou tudo. O saco inteiro.

William ficou bem quieto pelo resto do dia, mas isso ia mudar logo. Ben se sentou ao lado dele no avião, e, conforme o tempo foi passando, todo mundo foi dormindo ou ficando quieto, enquanto um vídeo era exibido. Tudo calmo. Até que: “‘Fogo!’, William começa a gritar”, disse Ben. Não é uma coisa boa de gritar em um avião. O que aconteceu foi que William acordou em um estado semipsicótico, e no vídeo estavam mostrando uma história – um incêndio que tinha acontecido no Castelo de Windsor. Começou a acordar todo mundo no avião. Jim, sentado algumas fileiras à frente, pensava: ‘Graças a Deus, não sou eu sentado do lado dele. O William não cala a boca'”.

Depois de uma educada, mas firme, solicitação da aeromoça para “acalmar seu amigo”, Ben finalmente conseguiu convencer William de que o fogaréu ardendo em frente aos olhos dele não estava incinerando o avião, mas apenas uma das muitas residências da família real. A paz foi restaurada.

A turnê Rollercoaster também foi notável porque, pela primeira vez, Douglas Hart viu o Jesus And Mary Chain da plateia, junto com Bobby Gillespie e Bill Drummond, do KLF. De várias maneiras, foi uma experiência estranha para Douglas: ver outra pessoa no baixo com os Reid foi uma alfinetada, mas ele experimentou ainda, pela primeira vez relativamente como um estranho, o clima funéreo do backstage do Jesus And Mary Chain.

“Foi como ir a um velório”, disse ele. “Se colocassem uma venda nos seus olhos, levassem você para aquele lugar, tirassem a venda e alguém perguntasse: ‘O que acabou de acontecer aqui?’ Mesmo que lhe dessem 150 chances, você não adivinharia que aqueles caras tinham acabado de tocar em um show de rock”.

“Em muitas turnês era assim mesmo. Às vezes, eu dizia: ‘O show foi muito bom’, e a resposta era: ‘Ele me humilhou!’. Não era sempre assim, às vezes era muito legal. Isso mostra a diferença entre aqueles caras e muitas outras bandas, mas eu só tenho um puta de um ‘muito obrigado’ a dizer sobre isso”.

“Barbed Wire Kisses, A história Do Jesus And Mary Chain” é o lançamento de estreia da Editora Sapopemba.
Escrito por Zoë Howe
Tradução: Letícia Lopes Ferreira
348 páginas
Lançamento: junho de 2019
Pra comprar: vá à Amazon, clicando aqui

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