CARNE DOCE – PRINCESA

“Princesa” era esperado com certa expectativa, depois que “Carne Doce”, o disco de estreia, lançado no ocaso de 2014, fez a literatura independente se alvoroçar na Internet, contaminando também as publicações mainstream. Ninguém consegue tal burburinho só com network ou trabalho de assessoria. É preciso algo mais, certo talento destoante da média, e um destaque artístico qualquer.

Os goianos da Carne Doce têm isso, não só na proeminência que vem conquistando a vocalista e compositora Selma Jô (em parceria com Macloys Aquino), mas na temática bem afinada com certa preocupação e grita das redes sociais, e principalmente pela banda bem condimentada e minimamente incomodada com a acomodação que pode advir da bolha das babações de ovo da atual crítica musical.

É uma banda especialmente dos tempos atuais, que tenta sobreviver aos tempos atuais. Fala o que foi fomentado nas redes sociais (e eventualmente nas ruas) e não promove uma provocação a todo momento no seu som, embora provoque.

A distância de “Carne Doce” a “Princesa”, de dois anos, foi, na verdade, bem menor. O disco começou a ser composto no primeiro semestre de 2016 e foi gravado durante um mês, no Red Bull Studios, em São Paulo (produzido por João Victor, sob cuidados de Rodrigo Funai e Alejandra Luciani, e mixado por Funai – a masterização é de Felipe Tichauer e Guilherme Kastrup).

“Não é tão distante assim”, conta Aquino ao Floga-se, “a considerar que ainda hoje pessoas descobrem e se envolvem com o primeiro disco. E 2015 foi um ano pra shows. Eu sinto que, como não existe um circuito estruturado pra artistas independentes, casas, público, estrutura, nos vemos nessa quase obrigação de ocupar mídias, que são outros produtos – discos, clipes, reportagens – não só shows. Ou seja, tiramos 2015 pra trabalhar o primeiro disco”.

E continua: “nossa agenda de shows não é pesada, não nos vimos compondo em turnê, tivemos tempo de nos encontrar em casa pra produzir, mas tem dois fatores: um, que a gente não é de fato tão produtivo assim, é uma coisa nossa, não somos tão férteis talvez, tipo um Mac Demarco, que no meio de uma agenda de cento e cinquenta shows por ano tirou um mês e gravou um disco incrível; dois, como temos de cuidar de tudo, produção executiva, assessoria de imprensa, contatos, booking, movimentar a empresa (a Carne Doce é uma MEI – microempreendedor individual), sobra menos tempo pra ser ‘artista’, acabamos dedicando mais tempo como ‘executivos da música independente’ do que propriamente como artistas”.

Esse é um dos grandes dilemas desse tempo: ser artista e empreendedor cultural ao mesmo tempo. Em “Açaí”, Selma canta os novos tempos: “Ainda dá / Pra eu acordar amanhã / E fazer tudo certo / Se eu ralasse / Como os meus pais / Se eu fizesse o que é certo / Mas a masturbação / E essas reportagens / E a opinião que eu tenho que dar”.

O feminismo e o machismo histórico e encrustado são a base da temática cantada em “Princesa”.

Exemplo significativo está em “Falo”, o duplo sentido onde a mulher procura sua voz acima desse doentio “poder fálico”: “Já tá cansado da minha voz porque / O tempo todo um timbre feminino é / Pra maioria algo enjoativo (…) Pois aproveitando essa hemorragia / Vou me dar o luxo de ser verborrágica / Com você não basta que eu seja prática (…) Meu sexo sempre é um impasse / E a razão pra me acusar / Que é por isso que eu sô histérica, eu não sô histérica eu só tô histérica / Que é por isso que eu sou neurótica, eu não sou neurótica eu só tô neurótica”.

Em “Artemísia”, ela fala de aborto (veja mais aqui); em “O Pai”, de abuso; em “Princesa”, de machismo direto. O discurso tem uma lógica e certamente encontrará eco nos conturbados tempos atuais.

Mas é na sonoridade que a Carne Doce se desprende da bolha imposta pelo “poder do elogio” que rege as ligações sociais atuais. Duas faixas ilustram o poder de encontrar uma saída pra mesmice.

“Cetapensâno” é uma pseudo-MPB regionalista, que adentra-se num balanço malemolente, a canção que vira e desvira, expondo o melhor do vocal e da interpretação de Selma Jô, até as guitarras tomarem o protagonismo.

E “Carne Lab”, com seus ilustres dez minutos praticamente instrumentais (“dez minutos de fritação”, eles brincam), é essência da capacidade da Carne Doce em ser uma banda inventiva. Aderson Maia (baixo), João Victor (guitarra e sintetizador), Ricardo Machado (bateria), Macloys Aquino (guitarra) e Salma Jô (voz) passeiam pelos limiares do dub e do progressivo e entregam uma viagem lisérgica que por si só já vale o disco.

Segundo Macloys, “é a única música feita ao vivo, foi um momento em que a gente se soltou pra fazer o que fosse do momento, a gente tinha uma base e o resto foram efeitos, barulhinhos, improviso, a gente fritou muito mesmo. Ela acaba virando um ponto fora da curva, o processo é completamente diferente. A gente se sentiu à vontade de colocá-la no disco, porque não temos uma pretensão de atingir o mainstream, ela taí porque a gente é isso aí, a gente faz tudo o quê e por quê gosta”.

É um “não” à facilidade de aceitação e de imediatismo que predominam nas relações cotidianas – e as relações de mercado. A banda pede pra ser escutada e “percebida”. Carne Doce não tá aqui só por obrigação de ter que dar uma opinião.

Ouça na íntegra:

1. Cetapensâno
2. Princesa
3. Sereno
4. Sombra
5. Amiga
6. Eu Te Odeio
7. Carne Lab
8. O Pai
9. Artemísia (clique aqui pra ver o vídeo)
10. Falo
11. Açai (clique aqui pra ver o vídeo)

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