CIVIL DISOBEDIENCE – UMA COLETÂNEA EM PROL DE MIANMAR

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Em 1º de fevereiro de 2021, Mianmar (ex-Birmânia), a Conselheira de Estado Aung San Suu Kyi, o presidente Win Myint e outros líderes do partido foram detidos exército (o Tatmadaw). No mesmo dia, o comandante-chefe das forças armadas, Min Aung Hlaing, assumiu o poder e o terror começou.

Suu Kyi e Win Myint haviam sido eleitos em novembro de 2020, em eleições que foram contestadas, mas agora estão presos. A comunidade internacional, encabeçada pelo novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, não reconhece o governo militar e já fez duras críticas.

Na comunidade artística internacional, há também um ou outro movimento em apoio ao país. C-drík Fermont (nascido no Congo, quando ainda era Zaire) organizou a coletânea “Civil Disobedience”, com quatro volumes, em protesto contra a situação do país asiático.

Após várias trocas de e-mail com ativistas e artistas do país, ele decidiu criar a compilação, a fim de coletar dinheiro pra oferecer assinaturas VPN a jornalistas e demais ativistas baseados em Mianmar, “pra permitir que eles contornem facilmente a censura e se comuniquem com o mundo exterior”. “Os benefícios também serão transferidos pra um amigo em Rangun (cidade mais populosa de Mianmar) que sabiamente usa o dinheiro pra ajudar e apoiar manifestantes e ativistas que lutam pela liberdade, bem como pela igualdade social, étnica, sexual, filosófica (…) e respeito”, ele escreveu.

São artistas de quarenta e dois (além de Mianmar) países que participaram, no espaço de uma semana, do projeto. No total, oitenta e nove artistas, da Tanzânia, Reino Unido, Cingapura, Bélgica, França, EUA, Uganda, Espanha, Itália, Eslovênia, Índia, Alemanha, Canadá, Togo, Suíça, Colômbia, Grécia, Malásia, Indonésia, Argentina, Peru, Polônia, República Tcheca, África do Sul, Japão, Sri Lanka, Irã, Turquia, Vietnã, Noruega, Índia, Nigéria, México, Chile, Holanda, Espanha, Bielo-Rússia, Ucrânia, Cingapura, Hong Kong, Mianmar, Eslovênia e Sérvia. Note que não há um só brasileiro.

“Mianmar é um lugar especial pra mim ou pelo menos o pouco que sei sobre. Tive a oportunidade de tocar duas vezes lá em fevereiro de 2014, solo e colaborações com músicos locais e internacionais. Assisti a algumas palestras, conheci vários ativistas (pró-LGBT, pró-democracia, artistas, feministas etc.), alguns estavam otimistas com as mudanças que pareciam positivas, a maioria dos presos políticos havia sido libertado, havia menos censura, mas outros foram levantando algumas dúvidas e a situação atual infelizmente provou que eles estavam certos”, escreveu Fermont.

Mais do que um ato de resistência, a coletânea é um dicionário da música mundial. Uma música provocativa e, por que não dizer?, revolucionária.

O destaque que o Floga-se dá é pro Thisquietarmy, um dos preferidos da casa, que participa da coletânea com “Three-Finger Salute”, gesto que está na capa dos quatro volumes.

A “saudação dos três dedos” é um gesto polêmico. É comumente conhecido como a saudação sérvia expressando a Santíssima Trindade, usado para fazer juramento, e um símbolo da ortodoxia sérvia, que hoje é simplesmente uma expressão, um gesto, pra etnia sérvia. Há um forte tom nacionalista.

Segundo a cientista política Anamaria Dutceac Segeste (em texto na Wikipedia), o significado da saudação é diverso: embora tenha sido usada por nacionalistas, não pode ser monopolizada como tal; foi usado sem conotações nacionalistas agressivas, ou seja, em eventos esportivos, por oponentes de Slobodan Milošević (ex-ditador da Sérvia) e pelo presidente Boris Tadić durante os Jogos Olímpicos de 2008, em Pequim, por exemplo.

A saudação é usada por membros e apoiadores de quase todos os partidos políticos sérvios em seus comícios durante as campanhas eleitorais. Pode ser visto em todos os tipos de manifestações de rua e celebrações.

Porém, croatas, bósnios e albaneses do Kosovo, que estiveram em guerra com os sérvios no passado, consideram a saudação provocativa. Mas há quem ache que o gesto está no rol daqueles largamente compreendidos, com o punho fechado, a palma da mão estendida e o sinal de V.

Desde que os militares de Mianmar tomaram o poder em 1º de fevereiro, houve um aumento dos protestos civis no país do sudeste asiático contra o golpe. Uma característica marcante dos protestos é a saudação dos três dedos feita por ativistas pró-democracia, visto ali como um símbolo de resistência que também foi usado em outubro do ano passado em manifestações contra a monarquia do rei Maha Vajiralongkorn, da vizinha Tailândia.

Na cultura pop atual, o gesto que remonta aos livros e filmes “Jogos Vorazes”, de Suzanne Collins. E passou, assim, a ser difundido de uma forma menos dura (ou “radical”, um termo a ser usado entre aspas). Ele foi usado pela primeira vez por profissionais da área médica em Mianmar em protesto contra o golpe. Em seguida, foi adotado por jovens manifestantes e, subsequentemente, foi visto nos protestos massivos em Rangun.

Na franquia “Jogos Vorazes”, a saudação, na qual três dedos médios são levantados e o polegar cruza sobre eles para alcançar o dedo mínimo (no gesto, original é o polegar, indicar e médio que se levantam), é exibida por pessoas oprimidas pra expressar solidariedade em um mundo distópico governado por um tirano chamado Presidente Snow. O gesto foi popularizado por uma personagem chamada Katniss Everdeen, interpretada por Jennifer Lawrence nos filmes (são quatro: o primeiro de 2012 e os seguintes, de 2013, 2014 e 2015).

A saudação se tornou um símbolo anti-golpe no sudeste da Ásia em 2014, quando jovens na Tailândia se reuniram em frente a um shopping center pra sinalizar sua oposição a uma tomada militar que ocorreu naquele ano. Quando um dos ativistas levantou a mão em uma saudação de três dedos, outros que participaram da manifestação o seguiram.

A nova forma de protesto silencioso ressoou em todo o país por sua mensagem anti-autoritária. Foi imitado em mais comícios, e os militares tailandeses reagiram proibindo a saudação. Apesar da proibição, a saudação ocorreu em vários protestos na Tailândia desde 2014. O símbolo também foi visto na Revolução Umbrella de Hong Kong em 2014.

Em Mianmar, que viu as reformas democráticas começarem em 2010, um rápido aumento no acesso à Internet fez com que a nova geração do país tivesse acesso à cultura popular global, e jovens ativistas estão usando seus símbolos, como memes populares, em protestos.

Nada mais justo, então, que C-drík Fermont usar a música, mesmo a alternativa, subterrânea, não popular e não acessível, pra protestar e tentar ajudar a população local.

A coletânea, porém, vai além da própria proposta e entrega ao ouvinte uma deliciosa viagem pelos quarenta e três países (incluindo Mianmar) e sua produção musical subterrânea e ativista.

Nota: vale lembrar ainda que a vida de Aung San Suu Kyi já foi levada aos cinemas, por Luc Besson, em 2011, no filme “The Lady”, que recebeu o título em português “Além Da Liberdade” (Michelle Yeoh interpreta a ativista-agora-mandatária-deposta do país).

Aqui, você ouve o primeiro volume da coletânea:

Aqui, o segundo (o que tem o Thisquietarmy):

O terceiro volume, na íntegra, está aqui:

E o quarto:

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