COSMONAUTA FANTASMA – POR RAZOES LEGAIS O ALBUM NAO TEM MAIS INTRO E NEM TITULO

Não são poucas as histórias que habitam o ideário popular sobre os tais “astronautas fantasmas” do programa russo, durante o início da corrida espacial contra os estadunidenses. Há muitos nomes, como Aleksei Ledovsky, Sergei Shiborin e um misterioso Ivan Istochnikov, personagem de várias teorias da conspiração. Até um manequim entrou nessa. Chamado de Ivan Ivanovich (ou Joe Doe, ou João Ninguém, em russo), o boneco era a cobaia dos primeiros lançamentos, que acabou sendo confundido com uma pessoa real, nas intercepções de rádio realizadas por amadores e rivais.

Os contos de corpos vagando pelo espaço, mortos mas sem se decomporem, perdidos pra sempre, agitam a imaginação, mas infelizmente não têm nada a ver com o que o jovem Murilo Marques Quitério, nascido em Niterói, em 1994, se inspirou pra criar seu COSMONAUTA FANTASMA.

“No começo, no momento em que eu tava pensando em como iria batizar o projeto, até pensei em usar essa referência quando digitei no Google pra ver se já existia uma banda com esse nome, mas na real não. Eu tinha um caderninho e escrevi uns quinze nomes de banda e fui riscando os que eu achava péssimos, até chegar nesse. Não soava tão bobo na época”, diz Murilo, em conversa com o Floga-se.

O Cosmonauta Fantasma começou a ser esboçado em 2014, não faz muito tempo. Era um momento em que Murilo nem sabia tocar direito. “Eu sempre quis ter banda e tal mas mal sabia toca guitarra, então ficava na pira de arrumar um pessoal, mas ninguém curtia esse mesmo rolê que eu; fui vendo uns tutoriais, pesquisando, ‘aprendi’ a fazer bateria virtual no FL Studio e fui juntando dinheiro pra montar um home studio“.

“Esse rolê” a que ele se refere é algo raro na geração pós-90. Nada de grunge, nada de Pavement, nada Guided By Voices, nada de post-rock ou shoegaze, nada desses “clichês” que impregnam a produção subterrânea de guitarras brasileira nas duas primeiras décadas do novo século. Murilo se fiou mesmo foi em Cramps, Mummies, Gories e, numa estranha condescendência, em Ty Segall. Mas principalmente no “Raw Power”, dos Stooges. “O disco foi um grande leme pra mim no que diz respeito ao jeito que toco guitarra, de como me relaciono com a estética do rock sujo e agressivo”, diz.

A primeira vez que ele ouviu “Raw Power” teve um impacto imediato. “Acho que foi uma experiência quase religiosa, ele soava exatamente como o título sugeria, era forte, brutal, atemporal, porque imagino que naquela época era um choque muito maior esse tipo de conteúdo, e ele conseguir despertar isso anos depois mostra a força bruta que ele tem mesmo, eu fiquei obcecado e quando vi o vídeo do Iggy Pop passando do palco pra platéia, jogando creme de amendoim nas pessoas. Eu fiquei… ‘caralho, é isso!'”, conta.

E é exatamente assim que o Cosmonauta Fantasma soa em seu primeiro disco, “Por Razões Legais O Álbum Não Tem Mais Intro E Nem Título”, que foi publicado no Bandcamp dia 18 de outubro de 2017.

São nove músicas tão sujas quanto qualquer uma que possa ser encontrada no rol de lançamentos do grande selo Hozac Records (conheça aqui), todas compostas, produzidas, gravadas e mixadas pelo próprio Murilo no esquema faça-você-mesmo-seja-o-que-deus-quiser (a masterização é de João Casaes, onipresente nos lançamentos da Transfusão Noise Records).

O disco começa com a empoeirada “Eu Não”, cuja letra é uma autocrítica bem humorada: “eu não sei cantar / minhas canções / eu não sei gravar / minhas gravações / eu não sei compor / minhas composições / eu não sei tocar / meus instrumentos / não espero que entenda / eu faço mesmo assim / eu quebro guitarras / e desperdiço o meu tempo / é o que melhor eu sei fazer”, embora você não vá entender nada o que ele cante. Grande música!

“Utopia Irrelevante” é uma balada suja, mas cuja letra reflete a rápida maturação pessoal de Murilo. O disco começou a ser feito em 2015 e foi sendo construído no decorrer desse período. Dois, três anos nessa fase da vida fazem muita diferença. As letras de “Utopia…” e “Canção Sobre 2013”, por exemplo, refletem um Murilo que nem existe mais. A segunda é uma lista de versos deprê-suicidas, que o autor nem morre de amores.

“Acho que é deprê-adolescente, de ficar reclamando das coisas, odeio todo mundo etc. Eu não as detesto, mas a maioria delas eu acho bem bobas porque, como eu disse, dado o processo lento de conclusão do álbum, muitas delas perderam o sentido pra mim e eu tava de saco cheio pra reescrever, tinham coisas novas acontecendo das quais eu preferia falar, então elas representam um momento específico mas muitas eu não me identifico mais”, diz.

Essa sinceridade é cativante, pra falar a verdade. Murilo, em nenhum momento do papo, pareceu inseguro com o que faz e nem preocupado em renegar produções passadas – e de um tempo nem tão distante assim, ao contrário do que as pessoas normalmente fazem; eu mesmo tenho vergonhas inomináveis de vários textos publicados na seção “Pense Ou Dance” pelas ingenuidades ali contidas, pelas linhas de raciocínio pueris e eu nem sou um recém pós-puber.

“Resolvi lançar um álbum cheio no fim do 2015, mas passado um tempo achei que elas destoavam bastante, eu era mais inexperiente e tinha menos equipamentos (eu gravava com um violão ligado num pedal de fuzz porque não tinha guitarra), então em 2016 resolvi lançar as duas tracks que tinham sobrado, e que deram origem ao EP ‘Ansiedade​/​Tragédia Em 1ª Pessoa’ (você pode ouvir aqui); a partir dai foi toda uma novela pro álbum de estreia sair, foram quase três anos do início até o conclusão do projeto”, ele conta, com naturalidade.

Pra se ter ideia da inocência, o título do disco vem de uma piada um tanto infantil. “O álbum original iria se chamar ‘Não É Obrigado A Me Ouvir Quem Não Quiser Escutar’ e a intro seria um sample da musica da versão da Elis Regina de ‘Roda’, só que total fodido e destorcido num loop, na época eu tava cheio de pretensões com o álbum e de fazer (formato) físico, comercializar etc. Daí, fiquei pensando se podia me meter em algum processo legal por usar obra de terceiros sem autorização, eu não queria descobrir e ter todo o trabalho pra conseguir isso, e já tava na pira de por um nome grande no álbum, então eu e a Gabriella (Balestrero, responsável pela identidade visual do projeto e pela foto que abre este artigo) fizemos um brainstorm pra decidir e…”, ri.

Ouça na íntegra:

As canções que Murilo mais se identifica hoje em dia são “Plano Imbecil/Vingança Imbecil” e “Cavando Minha Cova Com As Unhas Em Carne Viva”, que são tão sujas e pesadas quanto as anteriores e adicionam à lista de referências a brasileira Giallos, se a Giallos ainda conseguisse ser mais garageira e ruidosa.

“Uma vez no esgoto / todos fedem igualmente”, canta ele na primeira, e “sinceramente que se foda o altruísmo / vamos apontar indicadores pra quem tem o cu mais fedido”, canta na segunda, mostrando que realmente amadureceu nesse meio tempo, expondo a desejada raiva jovem em forma de arte, como tem que ser.

O Cosmonauta Fantasma ainda é um projeto incipiente. Não sabe os rumos que a vida vão dar a Murilo e como ele vai encarar a música daqui pra frente. Nem show ele fez ainda. Mas “Por Razões Legais…” é um belo exemplo de como empunhar a guitarra ainda é uma forma de expressão fulminante.

1. Eu Não
2. Utopia Irrelevante
3. Esquizofrenóia
4. Canção Sobre 2013
5. E/F# (Interlúdio)
6. Quinta-Feira
7. Plano Imbecil/Vingança Imbecil
8. Cavando Minha Cova Com As Unhas Em Carne Viva
9. Interferência

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