DEVO: A TEORIA QUE SE MOSTRA ATUAL QUASE MEIO SÉCULO DEPOIS

Gerald Casale foi um dos fundadores do Devo, em 1973. O grupo era duas duplas de irmãos, os Mothersbaughs (Mark e Bob) e os Casales (Gerald e Bob, que faleceu em 2014), além do baterista Alan Myers, que também já morreu, em 2013.

Casale escreveu pra Vice gringa um relato de como ele se sente tão deslocado no mundo atual quanto naquele cenário que o inspirou a montar a banda, quase cinquenta anos atrás. Os governos conservadores mundo afora mostram que o mundo “de-evoluiu” ao invés de evoluir. Emburreceu. O Devo de Casales tentou pela via das artes e do sarcasmo mostrar isso. Mas, pelo visto, voltamos à estaca zero. E qualquer semelhança com o Brasil de agora não é mera coincidência, mas é um terrível espelho a se fitar.

Texto de Gerald V. Casale
Tradução livre: Floga-se

Em 2018, quinze anos depois de se tornar elegível, o Devo foi nomeado pro Hall Da Fama Do Rock’N’Roll (pra se tornar elegível, o principal critério de uma banda ou artista é que seu primeiro álbum tenha sido lançado pelo menos há vinte e cinco anos). Fiquei imediatamente impressionado com o momento do nosso súbito reconhecimento: quando a Devo se formou há mais de quarenta anos, nunca sonhamos que, na segunda década do século XXI, tudo o que havíamos teorizado não só seria comprovado, mas também seria pior do que imaginamos. Pra mim, o Devo tem sido uma longa jornada repleta de sonhos desfeitos, mas a indicação me levou a colocar as coisas em perspectiva. Eu sei que muitos são chamados, mas poucos são escolhidos.

Quarenta e oito anos atrás, em 4 de maio de 1970, como membro da Estudantes Pra Uma Sociedade Democrática (SDS, na sigla em inglês), eu estava no fogo cruzado dos meus compatriotas americanos da Guarda Nacional de Ohio, na Kent State University, protestando pacificamente contra a expansão do Presidente Nixon na Guerra do Vietnã, cancerosamente impopular, sem sequer pedir autorização do Congresso. Tive sorte e evitei a bala, literal e figurativamente, mas quatro estudantes foram mortos, e outros nove ficaram gravemente feridos pelas tropas armadas, na maioria adolescentes, da Guarda Nacional. Dois dos quatro estudantes mortos, Alison Krause e Jeffery Miller, eram conhecidos meus. Menos de um ano antes, como conselheiro de admissão dos alunos que chegavam, eu os tinha admitido no programa.

Aquele 4 de maio mudou minha vida, e eu realmente acredito que o Devo não existiria se não fosse aquele horror. Isso me fez perceber que todas as TVs coloridas, jantares, Corvettes e sofás-cama no mundo não significavam que estávamos realmente progredindo. Significava que o futuro poderia ser não só tão bárbaro quanto o passado, como provavelmente seria bárbaro demais. Os romances distópicos “1984”, “A Revolução Dos Bichos” e “Admirável Mundo Novo” subitamente pareceram menos como contos de advertência sobre a invasiva fusão de avanços tecnológicos com o poder centralizado e autoritário do Estado, e mais como mapas de estradas subversivos pra condicionar a intelligentsia ao que estava por vir.

Quando comecei a trabalhar com meu amigo da universidade, o poeta Bob Lewis, surgiu uma ideia, alimentada pelas revelações de que o progresso linear em uma sociedade de consumo era uma mentira. As coisas não estavam melhorando. Não havia carros voadores e cidades abobadadas, como prometido na revista Popular Science; em vez disso, houve um emburrecimento da população arquitetada por políticos de direita e televangelistas. Eu chamei o que vimos de “De-evolução”, baseado na tendência à entropia em todos os esforços humanos. Tomando emprestadas as táticas da era Mad Men de nossa infância, encurtamos o nome da ideia pra “Devo”, algo mais fácil de falar. Não éramos políticos de esquerda. Fomos mais baseados nos princípios junguianos de dualidade na natureza humana, e percebemos falhas humanas espalhadas por todo o espectro político. Por isso: “We’re All Devo”, uma ideia da qual não nos excluímos.

Então, e nas décadas seguintes, testemunhamos um país onde a capacidade de pensamento crítico e raciocínio estava se desgastando rapidamente. Pessoas repassando repetidamente slogans de propaganda política e campanhas publicitárias: “America, Ame-a ou Deixe-a”; “Não pergunte o motivo, beba Budweiser”; “You’ve Come A Long Way, Baby” (referindo-se à propaganda dos cigarros Virginia Slims); slogans até mesmo inocentes, como “Dê uma chance à paz”. Eis aqui um estado feudal corporativo emergente.

A rebelião parecia irremediavelmente obsoleta. Se a mensagem não fosse sexo, drogas e rock’n’roll, seria um inferno. Mais e mais, parecia que a única ameaça real à sociedade de consumo à nossa disposição era transformar slogans em sua cabeça de maneira sarcástica ou subversiva, e fazer as pessoas perceberem que elas estavam sendo movidas e manipuladas pelo marketing, não por bem-intencionados amigos disfarçados de mamãe e papai. E a subversão criativa parecia o único curso viável de ação. Nós misturamos nossa indignação com partes iguais de sátira e humor negro. O que mais um pobre garoto poderia fazer?

Antes da renúncia do nefasto Richard M. Nixon, fiz uma parceria com um novo colaborador, Mark Mothersbaugh, e com sua proeza musical encontramos a alquimia sonora pra estética Devo. Nós formamos um grupo em torno da filosofia da Devolução, apenas pra provarmos que estávamos certos.

Atualmente, o tecido que mantinha a sociedade unida foi destruído pelo vento. Todo mundo tem suas próprias certezas, se mundo particular armazenado em seus caros telefones celulares. Os fones de ouvido estão dentro, os loops de feedback estão travados e os frappuccinos estão fluindo livremente. A mídia social fornece a estrada de volta à “Alegoria Da Caverna”, de Platão. Os nativos inquietos reagem às sombras digitais na parede, reduzidos a medo, ódio e superstição. Há negadores da mudança climática, e há ainda mais pessoas que acham que o clima está sendo manipulado por conglomerados corporativos pertencentes ao Banco Central pra conseguir o controle global de recursos e riqueza. Se apenas essa fantasia a la James Bond fosse verdade, eu ficaria muito mais animado com o futuro, que temo ser mais uma conspiração de morte lenta de burros como no filme de Mike Judge, “Idiocracia”, a película que o Devo deveria ter feito.

Estamos nos afogando num mundo delegado como se fosse do WWF Smackdown, com comentaristas de TV de “The Left” e “The Right” distraindo a audiência sem noção, enquanto nosso vil Mafioso-em-Chefe Trump (que faz o personagem Macho Camacho de “Idiocracia” parecer apto pro cargo) e seus asseclas corruptos roubarem os cofres da nação em uma cleptocracia descaradamente cruel. Eles refletem a mentalidade predominante do eleitorado. É como se Christopher Nolan escrevesse o roteiro pra América, onde Trump é o Coringa entregando as posições do Gabinete ao Esquadrão Suicida: “Ei, Betsy! Você odeia a educação pública? Como você gostaria de administrar o Departamento de Educação? Scott, você não dá a mínima pra envenenar o ambiente pra seus filhos e netos, certo? Aqui está seu novo escritório, Pal. Não se esqueça da cabine telefônica à prova de som!”.

A ascensão da liderança autoritária em todo o mundo, alimentada pelo populismo mal informado, está bem documentada neste ponto. E com isso, vemos o feio espectro do aumento do racismo e do anti-semitismo. É uma temporada aberta pra aqueles que votam de bom grado contra seus próprios interesses. O aumento exponencial do sofrimento pra mais e mais parcelas da população é de cortar o coração. “Freedom of choice is what you got / Freedom from choice is what you want”, aqueles palhaços de Devo cantaram em 1980.

Portanto, vamos falar sem frescuras agora; a hora está passando. Talvez a razão pela qual o Devo tenha sido nomeado após quinze anos de elegibilidade seja porque a sociedade ocidental parece estar imersa num desejo de morte. Devo não trafega mais fora da caixa. Talvez as pessoas sejam um pouco nostálgicas pela nossa originalidade e essência faça-você-mesmo. Nós éramos os canários na mina de carvão alertando nossos fãs e inimigos das coisas que viriam sob o disfarce do Bobo da Corte, exemplos de conformidade in extremis a fim de alertar contra a conformidade. Não éramos certamente as maravilhas de um sucesso apenas que a crítica do rock gosta de dizer que éramos. Nós sempre fomos os (comediante) Rodney Dangerfields do Rock’N’Roll. Nós estávamos por fora porque não “jogávamos o jogo” com a máxima do sexo, drogas, e rock ‘n roll.

Mas hoje o Devo é apenas a banda local no Titanic. Com três gerações de fãs, dez álbuns de estúdio, cinco álbuns ao vivo, dezenas de singles, vários videoclipes (um formato do qual fomos pioneiros) e oito turnês mundiais comprometidas com a história desde nosso álbum de estreia de 1978, “Q: Are We Not Men? R: We Are Devo”, todos nós temos resistido ao teste do tempo. O ano de 2020 será o do quadragésimo aniversário do nosso disco “Freedom Of Choice”. Não fique surpreso em nos ver em turnê, em seguida, em nossos icônicos e vermelhos Domes de Energia, em direção às próximas eleições presidenciais. Falar a verdade ao poder é uma batalha sem fim. Na melhor das hipóteses, evitamos afundar no abismo e, como sociedade, voltamos à estaca zero.

Existe alguma dúvida de que a “De-evolução” é real?

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