FELIPE NEIVA – FILHO

“O ‘Filho.’ é ‘radical’ porque eu tô apelando mesmo pra micropolítica… Desisti de ir pras ruas pra lutar pelo que eu acredito, fui estudar harmonia em conservatório de música e o ‘Filho.’ sou eu completamente aceitando que a música, a harmonia, as melodias têm poder curativo e revolucionário, porque a música é algo que te invade praticamente sem filtros (diferente da literatura, por exemplo). Você tem a possibilidade de desenvolver uma forma artística que é basicamente umas frequências rolando no ar e indo lá pra dentro dos seres humanos… se isso não é potente, sei lá”.

Felipe Neiva apresenta seu primeiro disco depois do igualmente potente “Jornal Anos 20” (leia e ouça aqui) como algo imaterial que a arte se propõe. É algo químico, físico e também extraordinariamente carnal, de sentimentos e impressões pra vida. Ao ouvir “Filho.”, seu sexto disco, de imediato senti a impressão de que aquelas letras falavam pro meu momento indigesto de vida, a separação depois de quinze anos de casado e um novo espelho mostrando-me quem eu sou e que estava escondido atrás do ser-casal.

Neiva até passou por momentos parecidos (talvez todo ser humano que ouse arriscar um relacionamento passe), mas me surpreendeu que “Filho.” não tinha tanto a ver com isso: “tem as letras mais pessoais e abertas da minha carreira ao lado de paisagens sonoras de dez minutos, eu também tinha passado por um relacionamento traumático…”, ele conta, “mas sempre é traumático pra mim, então eu nem penso muito sobre, acho que é pra todo mundo, terminar é uma merda, acho que se relacionar tem sido uma merda, viu? Parece que as pessoas querem mais te controlar do que te amar”.

Só que vai além disso. O disco começa com “Petômetra 1”, que “é pra conscientização das pessoas em relação ao uso de drogas (o sample de ‘Cocaine Is A Hell Of A Drug’ é do Rick James, naqueles programas do Dave Chappelle no Comedy Central)… A questão é só se cuidar, se hidratar, em vez de tentar combater o uso em si; eu tenho ficado muito preocupado com a quantidade de drogas (até de maconha) que as pessoas consomem”.

Daí, segue por um caminho inesperado. “Sem Critério”, segundo Neiva, “expande esse conceito pela motivação do que nos leva a esses vícios e ela parte das relações afetivas mais fundamentais… (uma referência espiritual aqui é a ‘Crack Baby’, da Mitski). É como se as nossas relações fossem nos deixando vazios até o ponto de chegarmos numa fase adulta desesperados pra recuperar algo que já tivemos, provavelmente na infância, mas perdemos”. Com “Inês”, ele continua, “em meio ao desespero e levando em consideração as questões anteriores, dou dicas sobre como abordar a vida, aceitar, encarar o abismo de frente”. Já “Instagram”, “vem meio que pra pontuar o principal problema da contemporaneidade, pra mim, que é o jogo de espelhos da sociedade do espetáculo, que tem a sua síntese no Instagram; então, é um processo de cura de todas as questões de vício, depressão e espelhamentos através de som”.

Veja o clipe de “Inês”:

Ao caminhar por esse terreno, Neiva conota uma pessoalidade ao trabalho pra além das paisagens sonoras que insere no meio, como grude pra cada uma das suas imaginações e que se afastam totalmente do sentido apreciativo de uma canção, digamos, popular. “Filho.”, que pode-se ser imaginado como, numa leitura bem livre, um Flaming Lips tropicalista, bem mais radical do que o próprio Flaming Lips poderia imaginar, acabou sendo um caminho natural após o “Jornal Anos 20”: “acho que o tanto de fãs que se aproximaram depois do disco e essa percepção de que eu tenho mais apoio do público que consome as mesmas coisas que eu (basicamente música contemporânea), me deixou mais confortável pra colocar num disco tudo que me viesse… se eu lancei tantos EPs nos últimos anos era por estar cortando a parte essencial do processo criativo, que normalmente são instrumentais”.

As instrumentais, ou paisagens sonoras, como Neiva se refere a elas, são “Instagram”, “Casa” e “Icaraí” e todas possuem uma explicação que segue o roteiro determinado na criação. Enquanto “Joguinhos” fala “efetivamente sobre como esse espetáculo e jogo de espelhos entra no início das relações através dessa coisa do flerte, do chegar no outro e de como as pessoas se permitem aprisionar pelas questões de gênero dentro disso, ‘Stalker’ leva a potência do joguinho, da perseguição, do jogo do flerte, da conquista ao ápice, no final do relacionamento… Porque o micro reflete o macro, o que se deu no início acaba se materializando no final também”, e “‘Casa’ é meio que o ponto central do disco (…) e ela dá conta de expressar pra mim o que é a sensação de casa e que é o que nos deixa viciados nas nossas relações e é muito do que me impediu de me libertar de certas relações”. Por fim, “Icaraí” fecha o álbum “diluindo essas questões todas (…), é o bairro (de Niterói) onde eu moro atualmente, depois de sair da casa dos meus pais e simboliza essa renovação pra mim, essa libertação da casa”.

Antes de “Icaraí”, que fecha o álbum, Neiva nos presenteia com um charm ao melhor estilo Chic Show, com “Pra Si”: “é a canção do empoderamento… as relações não são tanto sobre o amor em si mas isso de se jogar nas relações pode ser muito sobre fuga, assim como as drogas”.

Veja o clipe de “Pra Si”:

O disco tem lançamento dia 23 de agosto de 2019, em parceira com a Cavaca Records. Ele é a primeira parte do que seria um disco duplo, por assim dizer. “Tanto.” sai em 2020 e completa “Filho.”: “eu tava tão solitário e, claro, tão produtivo (risos) que quando me dei conta tinha dezoito músicas ‘prontas’ na mão (as músicas do ‘Tanto.’ já fazem parte do meu atual repertório ao vivo, que é o ‘Karaokê Neiva’, onde eu só muto as tracks de voz e canto por cima dessas músicas todas que eu mixo, mixei, estou mixando) e percebi que elas tinham muitos elos entre si por terem sido finalizadas todas no mesmo ano, na mesma época”.

Assim, “Filho.” é o primeiro disco do que o artista chama de “Guerras Íntimas” (a união de “Filho.” e “Tanto.”). Os dois discos tiveram as bases gravadas no Estúdio Terra (“estúdio da casa do Daniel Duarte, baterista da MOS, ex-Oruã e técnico de som da Audio Rebel aqui no Rio”), com produção de Neiva, durante o ano de 2018.

Daniel ainda gravou a bateria em “Sem Critério” e “Inês”, e PH Rocha, o baixo em “Inês”. “Todo o resto, sou eu sozinho, em casa de novo”, ele diz.

Ouça na íntegra:

“Esse disco é meio que meu retorno pra casa (risos). É um disco caseiro. Mesmo o que é de estúdio, é o estúdio da casa do Daniel. Os arranjos todos eu fiz no meu antigo home studio da casa dos meus pais, lo-fi de elite, caseiro gourmet, doutorado em mixagem caseira solitária nem parece… Ele é meu filho porque foi tudo bem sozinho (…), acho que foi o ano mais solitário da minha vida”.

É como dizem os clichês impetrados pelas avós em todo o mundo: o melhor relacionamento ainda é consigo mesmo; sozinho, talvez, ainda se viva melhor, se produza melhor. Nessa sociedade aí que temos à disposição, é melhor consumir os relacionamentos com parcimônia.

1. Petômetra 1
2. Sem Critério (clique aqui pra ver o vídeo)
3. Inês
4. Instagram
5. Joguinhos
6. Stalker
7. Casa
8. Pra Si
9. Icaraí

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