FIRE IN LITTLE AFRICA: DISCO LEMBRA OS 100 ANOS DO MASSACRE DE TULSA

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Tulsa fica no meio dos Estados Unidos. Localizada no pequeno estado de Oklahoma, ao norte do ultra conservador Texas, a cidade está a mais de dois e duzentos quilômetros de Nova Iorque, o centro financeiro do país. Em 2021, a cidade voltou a ser lembrada por conta dos cem anos do massacre racista que destruiu o que seria a Wall Street Petra, um local de pretos ricos e prósperos, que foi dizimado por uma turba branca racista.

São mais de quatrocentos mil habitantes em Tulsa e nem todo mundo conhece essa passagem, mesmo ela não morando nas catacumbas da história do país e ser recorrentemente lembrada.

“Por gerações, poucas pessoas – mesmo em Tulsa – sabiam sobre o fato. Agora, a comunidade de rap de Tulsa está se unindo pra mudar isso, com o novo álbum ‘Fire In Little Africa'”, sublinha a revista The New Yorker.

É alarmante que um dos piores capítulos da saga racista estadunidense não seja tão amplamente conhecida, cem anos depois. Uma recente matéria da BBC Brasil lembra o ocorrido: “em 31 de maio de 1921, na cidade de Tulsa, no Estado de Oklahoma, uma multidão de pessoas brancas invadiu e destruiu o distrito de Greenwood, que na época era uma das comunidades negras mais prósperas do país, apelidada de ‘Wall Street Negra’. A violência se estendeu por dezoito horas, durante as quais mais de mil casas e estabelecimentos comerciais foram saqueados e incendiados. Alguns historiadores calculam que até trezentas pessoas tenham sido mortas. Cerca de dez mil ficaram desabrigadas”.

“O episódio, ausente de livros escolares durante décadas, voltou a ganhar atenção quando foi tema do capítulo inicial da série ‘Watchmen’, da HBO. Muitos espectadores confessaram que não sabiam do que se tratava”, reforça a BBC. O massacre simplesmente não era ensinado nas escolas do país.

Se os atritos raciais nos Estados Unidos são o que são hoje, com policiais matando e prendendo simplesmente baseando-se na cor da pele do cidadão, o que dizer de cem anos atrás? Em 1921, nos EUA leis segregacionistas brotavam em quase todos os estados, especialmente os mais atrasados, como era Oklahoma.

Mas ali também tinha um bocado de petróleo e Tulsa enriqueceu com o “ouro negro”, incluindo os pretos que tinham terras e também surfaram na onda.

“Esse era um período de violência racial, com linchamentos e rígidas leis de segregação, que proibiam que negros frequentassem os mesmos ambientes que a população branca”, segue a BBC. “Assim como em várias outras cidades americanas, os trilhos da ferrovia marcavam a separação entre a parte negra e a parte branca da cidade. O distrito de Greenwood ficava ao norte dos trilhos. A partir de 1905, a área começou a atrair comerciantes e empreendedores negros, dando início ao que ficaria conhecido como a ‘Wall Street Negra’, uma das mais bem-sucedidas comunidades negras em um país que somente poucas décadas antes havia abolido a escravidão”.

Era em Greenwood que os pretos da cidade moravam. Eles eram em torno de dez mil, ou dez por cento da população de Tulsa à época.

“Os 40 quarteirões que formavam a chamada ‘Wall Street Negra’ eram pontuados por hotéis, restaurantes, joalherias e cerca de 200 estabelecimentos comerciais de pequeno porte, como farmácias, armarinhos, lavanderias, barbearias e salões de beleza. Havia até um cinema”, diz a BBC. Era uma comunidade bastante próspera, em um país não exatamente igualitário. A Ku Klux Klan ainda era forte.

“Muitos brancos tinham inveja do sucesso dos afro-americanos, faziam comentários do tipo ‘como esses negros ousam ter um piano de cauda em sua casa se eu não tenho um piano na minha?’. Também acreditavam que os afro-americanos estavam roubando seus empregos”, disse à BBC a diretora de programação do centro cultural de Greenwood, Mechelle Brown.

O episódio que provocou o massacre em Greenwood ocorreu em 30 de maio de 1921. Um engraxate preto chamado Dick Rowland, de 19 anos, pegou o elevador no Drexel Building, prédio onde ficava o único banheiro que os negros tinham permissão para usar no centro da cidade. A ascensorista, uma jovem branca chamada Sarah Page, deu um grito.

“Segundo Ellsworth, não se sabe o que causou a reação da moça, mas ‘a explicação mais comum é que Rowland pisou no pé de Page ao entrar no elevador, fazendo com que ela gritasse'”, ela contou à BBC. “Rowland foi detido e, no dia seguinte, o jornal Tulsa Tribune noticiou que ele havia tentado estuprar Page. ‘Além disso, segundo testemunhas, o Tribune também publicou um editorial, hoje perdido, intitulado ‘Negro será linchado esta noite”, escreveu Ellsworth”.

“Uma multidão de brancos se dirigiu à cadeia, mas o xerife se recusou a entregar o prisioneiro. Ao ficarem sabendo disso, dezenas de homens negros de Greenwood, muitos deles veteranos da Primeira Guerra Mundial que estavam armados, também se dirigiram até a cadeia, para ajudar a proteger Rowland. A ajuda foi recusada pelo xerife. ‘Quando (os negros) estavam indo embora, um homem branco tentou desarmar um veterano negro, e um tiro foi disparado. O tumulto começou’, relatou Ellsworth”. Os brancos se viram frustrados de fazer sua bizarra “justiça” com as próprias mãos. Queriam linchar Rowland.

No dia 1º de junho, a turba branca foi pra Greenwood começar o massacre. Destruíram e incendiaram casas, saquearam lojas, bateram em todo e qualquer preto que encontraram, roubaram objetos de valor e toda sorte de atrocidades. Nem bombeiros, nem polícia atenderam aos chamados dos moradores atacados de Greenwood. É possível que membros dessas forças do Estados estivessem participando, a paisana, dos ataques.

“‘Quando o reforço da guarda nacional chegou a Tulsa, às 9:15 da manhã, a maior parte de Greenwood já havia sido destruída’, escreveu Ellsworth à BBC. “‘Quando a violência finalmente chegou ao fim, a cidade estava sob lei marcial, milhares de cidadãos haviam sido detidos por guardas armados e a segunda maior comunidade afro-americana do Estado havia sido reduzida a cinzas'”.

O ataque racista continuou pelas instituições geridas por brancos. Os pretos sobreviventes tentaram receber o seguro de suas casas e pertencentes, mas as seguradoras simplesmente se recusaram a pagar. Depois, veio o esquecimento, com nenhuma punição severa.

Stevie Johnson, conhecido como Dr. View, é o produtor do álbum “Fire In Little Africa”. À NPR, ele se lembra da primeira vez que ouviu falar do massacre. “Era 2013; ele tinha 24 anos e trabalhava na Universidade de Central Oklahoma, em Edmond. Durante uma excursão ao Centro Cultural de Greenwood, ele descobriu a história. Johnson ficou pasmo. ‘Eu terminei duas graduações. Duas! E tinha acabado de descobrir sobre isso, e estava no meu quintal’, lembra ele. ‘O que eu sou? Qual é a minha responsabilidade como educador e o que estou fazendo se não conheço essa história? Foi um alerta'”.

Oito anos e um doutorado mais tarde, Johnson é o Gerente de Educação e Divulgação de Diversidade nos Centros Woody Guthrie e Bob Dylan de Tulsa – conhecidos como os “Arquivos da Canção Americana” (vale ir aqui). O álbum foi lançado pelo selo Black Forum, da Motown Records. É uma forma de homenagear o passado de Tulsa, enquanto constrói um futuro com os artistas de hip-hop da comunidade.

No disco, além de cantores, há poetas e fotógrafos, porque é um projeto multimídia (veja a conta no Instagram e os vídeos no YouTube), incluindo também um podcast e um documentário. É muita gente envolvida (se liga em todos os nomes clicando aqui).

Segundo a NPR, “Johnson começou contatando os músicos locais Steph Simon e Dialtone, pioneiros na cena hip-hop de Tulsa. ‘Levei algum tempo pra ajudá-los a entender que eu não estava lá para me colocar em um pedestal’. Johnson diz. ‘Estou realmente aqui pra fazer o trabalho e tornar isso o mais incrível que pudermos’. Eles buscaram talentos que se encaixassem na mentalidade da ‘Black Wall Street’ – músicos que pudessem deixar o ego de lado pra celebrar seus ancestrais. Johnson ficou emocionado com o que o grupo realizou durante um ano tão desafiador. ‘Unimos sessenta artistas independentes de Tulsa, Oklahoma City e Lawton pra gravar cento e quarenta e duas músicas em cinco dias em uma pandemia, particularmente pra homenagear nossos ancestrais’, disse Johnson. ‘Se pudermos nos reunir em alguma história que está escondida por tanto tempo e fazer algumas coisas incríveis, imagine como será quando realmente conseguirmos algum fortalecimento econômico e formos capazes de mudar e mudar nossa cultura'”.

O assassinato de George Floyd, em 25 de maio de 2020 (cinco dias antes do massacre de Tulsa completar noventa e nove anos), estrangulado pelo policial branco Derek Chauvin, e que deu força ao movimento Black Live Matter, mostra que o problema não é tão distante de 1921. Floyd também era rapper, assinando com o nome de Big Floyd, no Screwed Up Click, o que dá ainda mais embasamento ao projeto de Dr. View.

As canções foram gravadas em Greenwood ao longo de um período de cinco dias em março de 2020, pouco antes da pandemia fechar a cidade. Os estúdios foram criados no Centro Cultural Greenwood e em outros locais, incluindo a antiga “Mansão Brady”, agora propriedade do nativo de Tulsa e veterano da NFL Felix Jones. Ela foi a casa histórica de Tate Brady, um proeminente empresário branco e homem da Klan na virada do século. Vinte e uma canções foram feitas de forma remota.

“Fire In Little Africa” é o primeiro material novo a ser lançado pelo selo Black Forum, da histórica Motown, desde o relançamento da gravadora no início deste ano – o selo estava adormecido desde 1973; Martin Luther King era um dos artistas sob contrato do Black Forum. Pra Johnson, lançar este álbum através do Black Forum representa um começo: “é como se a Motown tivesse assinado com o estado de Oklahoma”, disse ele à NPR.

A versão “padrão” do disco tem onze faixas. O processo de escolha das faixas a esse produto foi complicada, mas mais importante é salientar a missão do álbum, que é recondicionar a mente dos ouvintes. Em vez de focar apenas no passado, o disco é uma espécie de retrato de um Estados Unidos preto atual. Igualmente poderoso e oportuno, o álbum é centrado em torno da injustiça racial, ativismo, riqueza geracional, educação, reparações e empreendedorismo.

Ayilla, uma das rappers do projeto, disse que gostaria que o projeto, “definitivamente, inicie um diálogo. Quero que as pessoas sintam o desejo de procurar as informações. E quase quero que as pessoas se ofendam. Porque as pessoas ficarão ofendidas. E eu sinto que realmente é pra aquelas pessoas que se ofendem. Quero que essas pessoas [digam a si mesmas] ‘ok, por que estou ofendido?’, porque acho que é realmente importante deixar isso pra trás ‘ok, por que estou me sentindo assim? Por que isso me ofendeu?’. Definitivamente, eu queria alcançar esse mercado, bem como a próxima geração. Acho que é um ótimo catalisador também pra geração mais jovem porque é hip hop e soa bem. E acho que as crianças podem sentir a autenticidade. Acho que este álbum é muito autêntico e vai empurrá-los a querer saber o que aconteceu”.

Steph Simon afirma que “o próximo passo pra construir é ampliar nossa comunicação. Porque temos as ferramentas pra ampliar nossa comunicação. Construímos o ‘Black Wall Street’ em nosso cenário musical. E destrancamos uma porta fazendo isso. Eu direi que tivemos sucesso ao fazer porque desbloqueamos algo que nos levou à próxima etapa. Agora que descobrimos isso, é hora de implementar isso no Brooklyn, Nova Iorque ou em Omaha, Nebrasca, ou em todos esses lugares que podem parecer não ter uma comunidade”.

Pra ouvir o disco na íntegra, é só acessar este link e escolher sua plataforma preferida.

“Greenwood foi o mais próximo da pátria-mãe nos Esteites que já tivemos”, disse Dr. View em entrevista. Portanto, temos que começar a agir como os reis e rainhas que dizemos incorporar. Se você vai ser um rei ou uma rainha, mova-se assim. E é isso que estamos fazendo em Tulsa. Todas as coisas internas com as quais temos que lidar pessoalmente, como ir à terapia, cuidar de nossos corpos, compreender nossa história, ficar mais em sintonia com nossa arte. Temos que fazer tudo isso individualmente. E quando nós os pretos coletivamente nos reunimos e estamos todos fazendo isso, ninguém será capaz de negar quem somos. Levamos 100 anos pra acordar, mas estamos aqui. E esperamos que isso inspire outras ‘Black Wall Streets’. E não apenas Black Wall Streets – pessoas brancas também”.

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