KARL MUCK, THE STAR-SPANGLED BANNER E A XENOFOBIA MOLDANDO A MÚSICA DOS EUA

O ano de 2019 vai entrar pra história do Brasil como o ano em que a idiotia assumiu de vez o protagonismo. A idiotia pautada nas linhas do bom-mocismo que odeia o politicamente correto; da anti-corrupção que abraça a quebra de lei; de religiosos que pregam o ódio; da negação da ciência e de dados lógicos; da negação de dados históricos; da luta pela educação cortando investimento em educação; dos pobres lutando por pautas dos mais ricos; a lista é interminável. É um processo de imbecilização coletiva.

Como o Brasil chegou a esse ponto? Seguindo a mesma cartilha de todo e qualquer sistema ditatorial reconhecido pela história: apelando pra moral, família, religião e patriotismo. Pensar e agir fora dessa cartilha é assinar uma autorização pra ser linchado moralmente por aqueles imbuídos de sua defesa. Vale tudo.

A história nos ensina muito sobre esse modo de operar. Não é novo, foi usado centenas e centenas de vezes e não só em larga escala. Há casos como o do maestro Karl Muck, que se recusou a tocar o hino estadunidense “The Star-Spangled Banner”, quando era condutor da Orquestra Sinfônica de Boston, em 1917. Alex Ross, autor do livro “O Resto É Ruído” e colunista da revista The New Yorker, conta como essa história carregada de ódio, xenofobia e desinformação buscou acabar com a carreira de Muck nos Esteites.

“Muck, uma figura elegante com um estilo friamente disciplinado, chegou a Boston em 1906”, escreve Ross, em artigo publicado em 2 de julho de 2019, “tendo liderado por muito tempo a Berlin Court Opera. Ele era um dos pilares do Festival de Bayreuth (pequena cidade alemã, na região norte da Baviera, a poucos quilômetros da fronteira com a atual República Tcheca), presidindo apresentações de verão de ‘Parsifal’, de Wagner. Seu status exaltado na música alemã correspondia aos gostos predominantes em Boston, uma cidade com uma considerável comunidade de língua alemã. Mas a atmosfera mudou drasticamente depois que os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha, em abril de 1917. Em outubro daquele ano, Muck e a Orquestra Sinfônica de Boston deram um concerto em Providence, Rhode Island. Manifestações patrióticas em concertos haviam se tornado rotina, e a Henry Lee Higginson, o patrono fundador e chefe-executivo da orquestra, foi solicitada a inclusão de ‘The Star-Spangled Banner’ no programa. Por várias razões, Higginson se recusou. Um arranjo do hino não estava imediatamente disponível, e Higginson sentiu que as músicas patrióticas ‘não tinham lugar em um concerto de arte'”.

A despeito de Muck só ter tomado conhecimento daquela recusa após a apresentação, a culpa recaiu sobre ele, simplesmente porque eles era alemão – nasceu em Darmstadt, mas tinha passaporte suíço. Muck já havia conduzido a orquestra da Boston por dois anos e meio, entre 1906 e 1908, quando ser alemão simplesmente não importava pros nascidos nos Esteites. Elegante e aristocrático, tanto na vida pessoal quanto com a batuta nas mãos, Muck chegou a pedir demissão do comando da orquestra, assim que o país declarou guerra aos alemães. Ele sabia que por ter nascido na Alemanha e ter simpatia declarada pela cultura e pelo Império Alemão não seria bem visto pela comunidade local. Foi Higginson quem o convenceu a ficar, com mais um contrato vantajoso financeiramente e de longa duração. “Sendo um homem das artes e não da política, não há com que se preocupar”, dizia Higginson.

Mas quando se enfia interesses comerciais nessas questões, quem se sente confrontado luta com as armas da cartilha: moral, família, religião ou patriotismo. Naquele momento, o patriotismo era a melhor das armas de convencimento.

Ross conta que “John Rathom, o editor do Providence Journal, inventou uma história que Muck se recusou a tocar o hino (…). Rathom fez seu nome protagonizar histórias sensacionais e frequentemente fictícias de espionagem alemã nos Estados Unidos. Uma vez que a guerra começou, essa conversa paranoica foi encorajada pelo Comitê de Informação Pública de George Creel, que provocou uma onda nacional de histeria anti-alemã. Rathom seguiu sua falsa história de Muck com absurdas acusações de que o regente estava envolvido em atividades subversivas”. Essas atividades tocavam o nível do absurdo, com mentiras diversas, como ele sendo acusado de conspiração pra explodir depósitos de munições; que ele havia sabotado armas americanas; que ele havia despachado prostitutas pra bases militares pra infectar soldados com doenças venéreas; que ele tinha enviado mensagens de rádio pra submarinos de sua casa de férias em Seal Harbor, no Maine.

Enquanto no Brasil, se elege presidente com entidades mais psicodélicas que “atentam à moral”, como uma prosaica mamadeira fálica pra bebezinhos, Muck se viu preso numa corrente histérica anti-germânica.

Antes de um concerto marcado pra Baltimore, no estado de Maryland, o governador Edwin Warfield fez um discurso inflamado dizendo que o regente merecia estar em um campo de concentração; que ele não deveria ter permissão pra insultar a cidade onde “The Star-Spangled Banner” tinha sido escrita; que “a violência da multidão o impediria, se necessário”; e que ele mesmo lideraria a massa contra o concerto. Uma multidão de dois mil ensandecidos aplaudiu descontroladamente o governador e gritou comentários inacreditáveis, como “Muck deveria ter sido baleado” e “Um caixão de madeira seria um lugar melhor (pra ele)”. Houve um canto de “Matem Muck! Matem Muck!”. Tais ameaças não não eram da boca pra fora. Havia exemplos reais desse sentimento inflamado anti-germânico: em abril de 1918, os cidadãos de Collinsville, Illinois, forçaram um mineiro de carvão germano-americano a cantar “The Star-Spangled Banner” caminhando nu sobre cacos de vidro. Depois, sem dó, lincharam o infeliz. Não foi surpresa saber que o concerto de Muck em Baltimore foi cancelado.

Há ainda o caso de Lucie Jay, membro do conselho executivo da Filarmônica de Nova Iorque. Ross escreve: “a Orquestra Sinfônica de Boston era amplamente considerada a orquestra preeminente da América, e a Filarmônica esperava igualar ou superar sua rival do norte. Jay entrou numa missão de derrubar Muck, e que já em 1915 ela estava agitando com a inclinação pró-alemã de Muck. Na verdade, ela viajou pra Boston naquele ano pra exigir que a orquestra parasse de tocar música alemã, embora tal medida não fosse considerada necessária pra Filarmônica. Se ela teve alguma coisa a ver com a cruzada de ‘The Star-Spangled Banner’ de Rathom, não está claro, mas ela certamente aproveitou a indignação”.

A cruzada “patriótica” de Rathom e Jay levou ao extremo de Higginson ter que mostrar pra plateia, após um concerto, os documentos suíços de Muck.

Mas não teve jeito, como mostra Ross. “Alguns dias depois das aparições de Carnegie Hall, em março de 1918, Muck foi preso, no meio de um ensaio da ‘St. Matthew Passion’ de Bach, em Boston. O procurador-geral de Massachusetts e o FBI descobriram que Muck estava tendo um caso com uma jovem mezzo-soprano chamada Rosamond Young. Esse relacionamento permitiu que os investigadores pintassem Muck como subversivo e imoral – um golpe duplo de xenofobia e puritanismo. A casa de Muck foi invadida e seus bens foram apreendidos. A polícia se debruçou sobre sua pontuação da ‘Paixão de São Mateus’, acreditando que suas marcas continham um código secreto. Observações anti-americanas nas cartas com Young foram consideradas provas suficientes de sedição. Muck passou o restante da guerra em campos de concentração, onde conduziu as orquestras dos acampamentos”. As mentiras e as notícias falsas venceram, apoiadas pela xenofobia, o moralismo e o patriotismo de araque.

Vale lembrar que durante uma guerra mundial, os ânimos realmente se exaltam mais. Há quem justifique toda essa histeria anti-germânica por conta da guerra, enquanto no Brasil a idiotia não encontra paralelo – o patriotismo aqui é ferramenta pra trucidar quem contraria o que pensa o governo, numa guerra imaginária “contra o comunismo”.

Ross lembra que nessa história, porém, não há mocinhos: “o regente era ferozmente antissemita e, quando voltou pra Alemanha, no início dos anos 1920, se aproximou da direita ultra-nacionalista, tornando-se um admirador de Hitler. Higginson, por sua vez, foi preconceituoso contra os judeus e apoiou medidas pra restringir a imigração. Jay, por outro lado, fez campanha contra as leis punitivas de imigração, até porque elas eram contrárias aos interesses do transporte marítimo e ferroviário onde ela investia. As relações de Muck com mulheres jovens foram discutíveis, embora ele tenha sido um dos poucos músicos do período que apoiavam as aspirações femininas de dirigir e compor. Uma de suas protegidas, Antonia Brico, dirigiu a Filarmônica de Berlim em 1930 – a primeira mulher a fazê-lo”.

O curioso dessa história toda, como aponta Ross em seu artigo, é que o escândalo que levou à prisão de Muck teve consequências significativas na cultura musical dos Esteites. “Em 1914, música clássica tinha uma posição de ponta na vida americana, apelando não só para as audiências da elite, mas também pra um público amplo. O caso Muck ajudou a marcar a tradição européia como suspeita e antipatriótica. O historiador E. Douglas Bomberger, em seu livro ‘Making Music American: 1917 And The Transformation Of Culture’, argumenta que as tradições musicais domésticas, tanto clássicas quanto populares, se beneficiaram da demonização da música e dos músicos alemães durante a guerra. O ano de 1917 viu a rápida ascensão do jazz, que tinha credenciais impecáveis como uma cem por cento americana. Bomberger escreve: ‘o desafio pra autoridade musical tradicional pode ser visto como um símbolo do desafio militar americano à autoridade européia tradicional’. O fascínio nacionalista do jazz ajuda a explicar por que ele se tornou tão popular em uma população branca que estava impregnada pelo racismo. O livro de Bomberger deixa a sensação desconfortável de que a Primeira Guerra Mundial estimulou a ascensão de um chauvinismo musical americano, que restringiu a composição poliglota da cultura nacional na virada do século passado”.

Karl Muck morreu no meio da II Grande Guerra, em 3 de março de 1940. Ele já não conduzia uma orquestra havia sete anos. Mas meses depois de morrer, aos oitenta anos, havia recebido uma honraria de Adolf Hitler em pessoa. Do outro lado do Atlântico, o sentimento anti-germânico já havia aflorado novamente. Mesmo assim, ao lamentar sua morte, o jornal New York Times reconheceu sua importância pra artes em ambos os países, num texto reverencial e elogioso.

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