KLAMMKLANG E AS FITAS CASSETE QUE VIERAM DO FRIO

Oymyakon é conhecida como “a cidade mais fria do mundo”. Com apenas quinhentos habitantes, sua rotina inclui um único posto de gasolina, carros que não podem ser desligados e um bar sempre vazio. As temperaturas por lá, durante dezembro e janeiro, facilmente chegam aos 45ºC negativos.

A cinco mil e tantos quilômetros dali, Lesosibirsk não é tão gelada (seus invernos apontam temperaturas de 25ºC negativos) e, talvez por isso, haja bem mais gente morando por lá. São mais de sessenta mil habitantes, embora seja uma população que vem diminuindo censo a censo.

É nesse ambiente gélido que nasceu Stanislav Sharifullin, o fundador do Klammklang, um selo especializado em música eletrônica, avantgarde, minimalismo, dark ambient e experimental.

Ele é um típico siberiano, habitante da maior região russa, que abrange de norte a sul toda a faixa central do país, expandido-se até o leste, acima das Coréias, onde fica Oymyakon. Acostumado com temperaturas insanamente frias, veste aquelas peles características (que aqui é questão de sobrevivência e não de moda), mas difere dos demais conterrâneos por seu cotidiano não se limitar apenas ao trabalho na rica região industrial: ele faz e promove, afinal, uma música estranha pra qualquer canto do mundo que você pensar, mas na Sibéria, apesar das paisagens serem ideais pro tipo de som que lança, as pessoas estão acostumadas à música folclórica local, com o Svirel ou o Kugikly (instrumentos de sopro), o Gùsli ou a Balalaika (instrumentos de cordas), ou ainda a Gudòk, uma espécie de violino.

Não foi em Lesosibirsk que Sharifullin engatinhou seu selo, mas na cidade vizinha, trezentos quilômetros de distância, a capital do território de mesmo nome, Krasnoyarsk. A capital é um centro urbano bem maior. São mais de um milhão de pessoas morando numa efervescente comunidade por onde passa a Transiberiana, a maior estrada de ferro do mundo, e que é casa de algumas boas universidades.

Sharifullin assina como Hmot, seu alter-ego artístico. Mas seu trabalho mais importante é o selo mesmo, fundado em 2013, e que já ganhou expansão pra além da Rússia.

Sempre lançando os trabalhos do selo em fita cassete – ele alega não ter dinheiro nem público que valha a pena se aventurar pelo vinil – conseguiu chegar a Berlim, São Petersburgo, Moscou, Los Angeles e Paris. Apesar de cada uma das tiragens ser bem pequena (algumas em torno de trinta unidades), o trabalho de acabamento artístico das capas e encartes é primoroso.

O primeiro lançamento foi “Dysphoria”, do Kontext, que é como assina o músico de São Petersburgo Stanislav Sevostyanikhin. Era novembro de 2013. Os título das músicas e o encarte em inglês apontam as intenções internacionais do selo. O conteúdo apresenta um techno-dark-ambient um tanto soturno. Deve funcionar que é uma beleza em pistas descoladas, com cérebros aditivados.

Ouça na íntegra:

A trajetória de Sharifullin por esse meio começou um pouco antes, em 2009, quando lançou um blogue especializado em garimpar música eletrônica russa, o Gimme5 (infelizmente, fora do ar). Foi assim que ele começou a catalogar e conhecer muitos desses músicos do subterrâneo de seu país.

Logo, em 2011, junto com o selo alemão Error-Broadcast, lançou a coletânea “Fly Russia”, projetando alguns nomes que fervilhavam fora do alcance do conhecimento do grande público (baixe aqui a coletânea).

À primeira vista, não há nada de tão especial na história do Klammklang e suas Klammtapes, como são chamados seus lançamentos. Mas pense na Sibéria, um lugar onde a música parece não sobreviver ao frio, onde não é muito comum achar gente que se aventure por música, ainda mais por uma música tão universal quanto essa.

Ao The Calvert Journal, ele disse: “amadorismo é o que define o provincianismo. Por outro lado, é difícil se manter profissional quando você está cercado por estereótipos. As pessoas pensam que você é uma pessoa estranha, se a sua felicidade não depende do tamanho da sua conta bancária. Não é tão ruim, se você tem algumas pessoas que pensam da mesma maneira, ao seu redor, apesar de tudo”.

Krasnoyarsk é grande, mas não é o mundo. E Moscou fica muito longe (bem como São Petersburgo) , mais de quatro mil quilômetros de distância. Se cada passo de uma vez é recomendável, mesmo depois do blogue ter atingido a Alemanha e feito nascer a coletânea, Sharifullin pensou num alvo bem mais próximo, Novosibirsk, oitocentos quilômetros a oeste de Krasnoyarsk. É a terceira maior cidade da Rússia, com um milhão e meio de habitantes. Nada mau.

“A principal característica deste lugar”, diz Sharifullin na mesma entrevista, “é o seu isolamento – geográfico, psicológico, cultural e político. E uma vez que a infra-estrutura de mídia na Sibéria não é muito bem desenvolvida, ficamos meio que por conta própria. Embora a gente tenha conseguido contrariar este estado de coisas recentemente, é difícil afastar a sensação de que o tempo parou por aqui. De certa forma, a vida na Sibéria é uma imigração interna perpétua rumo ao vácuo. A Sibéria é como uma lousa em branco, você pode desenhar o que quiser ali. É realmente interessante tentar alguma coisa nova aqui”.

Mas não só na Sibéria. O terceiro lançamento da Klammklang foi de um grupo de Denver, Colorado, Esteites, o Hippies Wearing Muzzles, com “Egyptian Paralysis”. É um eletrônico estranhíssimo e experimental.

Ouça na íntegra:

Tratar os Esteites com carinho faz todo o sentido. O catálogo do selo é distribuído em formato digital mundo afora pela Alpha Pup Records, de Los Angeles.

Mas o parceiro de Los Angeles não pode reproduzir o cuidado de uma obra como a de Galina Ozeran, outra música de São Petersburgo.

Seu belíssimo trabalho “Seasons”, quatro longas canções ambient, com uma guitarra perfurante, lançado em 2014, podia ser a trilha sonora que Angelo Badalamenti gostaria de ter feito em “Twin Peaks”, mas chama atenção o trabalho gráfico: pra cada estação do ano, as fitas cassete receberam um tratamento – amarela pro verão (foto abaixo), laranja pro outono, azul pro inverno e verde pra primavera. Cada cassete ainda segue com cartões postais de imagens da região em cada estação. É um trabalho belíssimo.

Ouça na íntegra:

O trabalho mais ambicioso e experimental da Klammklang é “Kosichkin Tapes”, uma curiosíssima obra de colagens feita por Egor Klochikhin, de Berdsk (a menos de cem quilômetros de Novosibirsk), que juntou as gravações da família durante dez anos e deu uma ordem musical ao material. Há muita música folclórica ao fundo, conversas cotidianas, barulhos caseiros etc. Um retrato interessante da família siberiana.

É aqui que a essência da Klammklang se fortalece, misturando o moderno do experimentalismo eletrônico com o folclórico e o cotidiano daquela região. O resultado é de arrepiar, como se estivéssemos ouvindo fantasmas de um ontem muito próximo. Não são: os Klochikhin estão vivíssimos, felizes, numa boa. Mas a distância do tempo parece permanecer, não só a distância física.

Ouça na íntegra:

O trabalho da Klammklang não é único. O coletivo Echoturist, também de Novosibirsk (veja aqui), realiza festas, lança discos (físicos e digitais), promove pequenos festivais e apresentações de seus artistas, e movimenta essa cena que já nem é tão pequena assim. E há outros selos.

Mas as Klammtapes, as fitas cassete da Klammklang, pelo cuidado e esmero, pela experimentação e pelo simbolismo, podem fazer as pessoas derreterem o gelo do desconhecimento sobre a Sibéria, um lugar tão fascinante e musicalmente efervescente, que os termômetros só podem estar enganados ao mostrar tais temperaturas negativas.

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