LINDER STERLING: VICIADA EM CRIAR

Linda Sterling nasceu em 1954, em Liverpool, terra dos Beatles. Mas não foram os Beatles que a ligaram com a música.

A família de Linda é o retrato da desigualdade que todo brasileiro conhece bem. Até aquele momento, nem todo britânico tinha acesso à educação, de qualidade ou não. Linda foi o primeiro membro dos Sterlings a conseguir cursar faculdade. Em 1973, ela mudou-se pra Manchester pra estudar arte.

Ela disse certa vez: “quando fui à escola de arte, eu era a única pessoa da minha família a conseguir estudar depois dos quatorze anos de idade. Quem chegasse nessa idade já tinha que estar ralando de sol a lua. Então, eu tinha que provar que o esforço valia a pena. Mas, já em 1976, eu estava bem entediada em desenhar e acabei destruindo toda a minha produção. Foi um ato bem punk aquilo – destruir o passado por tédio. E assim, de repente, meu cotidiano me colocou em contato com pessoas que pensavam o mundo de modo semelhante: Jon Savage, Pete Shelley, do Buzzcocks, Howard Devoto, do Buzzcocks e Magazine etc.”.

O punk abriu as portas pra ela. E a mente. Ela resolveu se reinventar. Mudou o nome de Linda pra Linder, sem o Sterling, “uma palavra… germânica, misteriosa”.

Nessa época, junto com jornalista Jon Savage criou o fanzine “The Secret Public”, um dos primeiros ligados à estética punk em Manchester. Savage é o autor de “England’s Dreaming”, o livro definitivo sobre o punk, lançado em 1991. Ela já havia iniciado seus trabalhos com colagem dois anos antes, mas o zine foi o primeiro produto impresso e comercializado.

Os dois publicaram o fanzine em janeiro de 1978, através do selo criado pelo Buzzcocks, o New Hormones. O zine foi o segundo número do catálogo – o primeiro foi o sete polegadas “Spiral Scratch”, do Buzzcocks, lançado em janeiro de 1977, com produção de Martin Hannett, antes dele se enfiar com o Joy Division; diz-se que esse foi o primeiro disco punk independente (você pode ouvir na íntegra no vídeo abaixo).

Logo, Linder estava fazendo cartazes e flyers pra shows do Buzzcocks, Joy Division, Magazine e da Factory Records, de Tony Wilson.

As colagens eram uma forma de arte que tinha tudo a ver com o punk, segundo ela: “era o caminho mais palpável. Pra mim, era sobre dar sentido ao mundo. Com a colagem, você transforma as coisas. Eu usava fotografias de utensílios domésticos – aspiradores, ferros, liquidificadores etc. – e fotografias de pessoas. Com as colagens, tudo fica em aberto, literalmente. Os corpos de transexuais são colagens por natureza, uma mistura cirúrgica e biológica de homem e mulher. Eu acrescento imagens da natureza – cobras, aves de rapina, lagartos, fungos – e crio um furacão hormonal”.

Quando ela começou a fazer suas colagens, as lojas de fotocópias se recusavam a copiá-las. Havia só dois lugares em Manchester que faziam fotocópias e nenhum deles aceitava o trabalho. Ela enviava os trabalhos a Savage em Londres e lá ele conseguia fotocopiar e, então, imprimir.

Nesse meio, ela logo se deparou com o trabalho que literalmente mudaria sua vida. John Robb, o jornalista malucão que entrou pra história como o autor da primeira entrevista da história do Jesus & Mary Chain (leia aqui o delicioso caso) decretou num artigo de 2007 pro The Guardian que a capa do single “Orgasm Addict”, do Buzzcocks, lançado em 1977, era a “melhor capa de um single em todos os tempos, nem precisa de concurso”.

“O single de sete polegadas era o veículo pop perfeito”, escreveu. “A era punk coincidiu com uma súbita explosão da arte das capas. Todas as semanas, uma imagem fantástica e selvagem acompanharia a última missiva da linha de frente do punk rock. Embora houvesse uma enxurrada sem fim de trabalhos de colagens, o de Linder foi perfeito”.

A capa do single chocou porque trazia uma mulher nua num fundo amarelo impactante (graças ao designer gráfico Malcolm Garrett, que também assina capas do Duran Duran, Simple Minds e Peter Gabriel, entre outros). A cabeça da mulher foi substituída por um ferro de passar roupa. No lugar dos mamilos, duas bocas sorridentes e cheia de dentes, com um batom destacado. A pose era sensual. E o título do disco, todo desconstruído. “Era difícil, sexy, perigoso, engraçado e reforçava um ponto feminista corajoso e poderoso. O fundo amarelo brilhante tornou-se ainda mais rígido”, apontou Robb.

O que ela fez foi fundir os dois mundos, o que as revistas masculinas vendiam como sendo “de homem” – carros, mulher pelada, pornô – e o que as revistas femininas vendiam como sendo “de mulher” – moda, beleza e utensílios domésticos. Linder disse “não” a isso. Não existe “mundo de mulher” e “mundo de homem”. E uma música cujo título é “viciado em orgasmo” falava com todo mundo, era o veículo perfeito, afinal homem ou mulher, não importa, todos, se pudessem e não fossem castrados por determinadas morais impostas, gostariam de viver só do intenso prazer que um orgasmo proporciona. Há toda essa informação naquela capa pra quem quiser perceber.

Além do mais, Pete Shelley, que anos depois assumiu ser bissexual, não especificava gêneros em suas canções, o que acabava corroborando com a premissa de Linder.

Linder não ficou só nas colagens. Ela vivia rodeada de música, saía com Howard Devoto, líder e fundador do Buzzcocks e depois do Magazine, e teve também sua banda, a Ludus. O grupo de pós-punk lançou dois álbuns, “The Seduction” (1981) e “Danger Came Smiling” (1982), misturando jazz, avant-garde, punk e uma enorme dose de pretensão.

Em 1982, se apresentou com um vestido feito de carne, no famoso Haçienda, em Manchester. Décadas depois, Lady Gaga faria o mesmo, sem dar o devido crédito. A banda acabou um ano depois.

Ela também se tornou uma das melhores amigas de Morrissey. Em 1976, Linder conheceu Stephen Patrick Morrissey, um aspirante a jornalista, que foi à passagem de som do show onde o Johnny Thunders & The Heartbreakers e o The Clash abririam pro Sex Pistols. Ele se apresentou como escritor de um jornal de Nova Iorque. Ela é cinco anos mais velha que ele e mesmo assim a conexão foi instantânea. “É difícil de definir, mas houve uma química imediata entre nós. Ele parecia ótimo, com uma grande camisa branca e jeans velhos, e ele era muito engraçado”, ela disse. Os encontros dos dois, pra conversar sobre literatura, aconteciam no lúgubre Southern Cemetery em Manchester. Foi pra ela que ele escreveu “Cemetery Gates”, um dos muitos clássicos dos Smiths. Ela publicou em 1992 “Morrissey Shot”, um livro de fotografias com Morrissey em ação.

Curiosamente, essa personagem tão intrigante quase não é conhecida ou aparece nas biografias e filmes da época. Robb destaca que “quando contaram a história de Manchester, em ’24 Hour Party People’, esqueceram dela. É como se a história tivesse sido reescrita. Se o punk se tornou a história do Clash, perdendo todas as partes estranhas e interessantes, então a história de Manchester foi reduzida a uma série de idiotas tomando drogas e fazendo discos. É um crime. Linder merece seu lugar na história só pela capa de ‘Orgasm Addict'”.

É um reducionismo, por certo. Ela merece por mais: é uma artista instigante que não teve ou tem medo de se aventurar em qualquer expressão artística (colagens, música, pintura e até balé), feminista atuante, bem humorada pra contar a sua história e daquela época e uma criadora provocativa.

Linder é viciada em criar.

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