O ROUXINOL DA REVOLUÇÃO NA SÍRIA

Era final de 2010 quando manifestações explodiram na Tunísia, na Líbia e no Egito. Na Tunísia, onde o movimento de fato se iniciou, com uma ação desesperada de um jovem que ateou fogo no próprio corpo, o general Zine El Abidine Ben Ali, no poder desde 1987, se picou pra Arábia Saudita.

No Egito, Hosni Mubarak, também militar, que governou o país de 1981 até renunciar em 2011, tinha perfil conciliador na região, mas era um ditador sanguinário dentro de suas fronteiras e um líder corrupto que enriqueceu enquanto o país seguia com altos índices de pobreza.

Muammar al-Gaddafi foi o chefe da Líbia de 1969, assumindo o governo através de um golpe de estado, até 2011, quando foi deposto e morto. Foi o líder árabe mais tempo no poder.

Um a um, os ditadores e donos do poder de Argélia, Djibuti, Iraque, Jordânia, Omã, Marrocos e Iêmen se viram diante de protestos pacíficos e violentos em suas ruas. A Síria também.

O que juntava toda essa gente, de pessoas insatisfeitas com a falta de direitos humanos fundamentais, de liberdade e de perspectiva, era a Internet, com o fortalecimento das redes sociais.

E a arte. E a cultura pop.

Música, poesia, teatro e até o cinema foram usados pra espalhar a mensagem e aglutinar ideias.

É o caso típico de “Yalla Irhal, Ya Bashar” (“Vamos lá, Bashar, vaza”), a canção-símbolo dos protestos na Síria, contra o ditador Bashar al-Assad, que herdou (e o verbo é exatamente esse) o poder de seu pai, Hafez al-Assad, em 2000. Hafez assumiu o poder com um golpe de estado, em 1971. Já são mais de quarenta anos com a família no poder, até 2011, quando a Síria teve sua cota de Primavera Árabe.

A canção diz “Ei, Bashar, ei, mentiroso. Pro inferno você e seu discurso, a liberdade está batendo à porta. Então, vamos lá, Bashar, vaza”.

Ao contrário dos ditadores dos países vizinhos, Bashar tem (já que ainda é o presidente do país) a seu favor a pouca idade e a promessa de reformas políticas, incluindo maior participação popular. Mas essa promessa feita ao assumir o cargo foi por água abaixo assim que a eleição de 2007 mostrou suas reais intenções: candidato único, foi eleito com 97% dos votos válidos.

Era um “ditador travestido de democrata”. A situação piorou quando as pessoas tomaram as ruas e foram duramente reprimidas pelo seu exército, espalhando morte, terror e mais intolerância pelas ruas do país – tal como seu pai havia feito na década de 1980, quando reprimiu um protesto nas ruas de Hamã, deixando dez mil mortos, na contagem mais otimista.

O refrão da música, então, é direta e objetiva: ninguém acreditava mais naquele rapaz com pinta de bom moço que a princípio foi apoiado pelo Ocidente – leia Europa e Estados Unidos – e que logo se revelou filho de quem era.

Nos protestos de 2011, a música ganhou as ruas. De repente, todo mundo que pedia a saída de Bashar al-Assad entoava essa canção. E logo o governo queria calar aqueles versos, achando que isso seria possível. Mas só piorou a situação.

Diz-se que canção foi escrita por Ibrahim Qashoush. Ninguém sabia quem ele era, até que seu corpo apareceu boiando, com a garganta cortada, no rio Orontes, o maior da Síria, no dia 4 de julho de 2011 (há um vídeo terrível com essa imagem – veja por sua conta e risco). Cortar a garganta e as cordas vocais era um recado e tanto contra a liberdade de expressão.

O caso é que ninguém sabe exatamente quem escreveu a canção. E há teorias e mais teorias sobre a autoria e a morte de Qashoush.

Os apoiadores de Bashar al-Assad dizem que o autor é uma invenção da mídia ocidental, bem como sua morte. Ele era um ninguém, não se conhecia o rosto dele (até o revoltante vídeo lincado acima), e jamais se havia ouvido falar dele. Não há fotos ou vídeos dele cantando.

Nessa teoria, fundamentada com vídeos que também podem ser falsos, as forças de segurança sírias dizem ter prendido um “terrorista” chamado Fadi Zreik, que confessou que Qashoush havia sido capturado e morto pelos “rebeldes” por pensarem que ele era um informante do governo; e que a pessoa que realmente compôs a música estava filmando o corpo dele dilacerado.

A guerra de informações gera uma série de mal entendidos. As redes sociais são terreno fértil pra boatos e certamente muitas mortes são provocadas a partir de falsas acusações, mentiras e jogo de cena.

Não parece ser especificamente o caso de Qashoush, embora sua morte tenha servido pra fazer da música um poder ainda mais forte. Alguns passaram a chamá-lo de “o rouxinol da revolução”. A gargante cortada serviu bem ao discurso explosivo de ambos os lados (se bem que não são apenas dois lados).

Outra teoria diz que há mais dois homens com o mesmo nome, que um era realmente informante do governo e que o outro ainda estava vivo ao final de 2011. O homem que morreu com a garganta cortada nada mais era do que um cantor de segunda categoria de casamentos.

Há quem insista, porém, que a canção foi mesmo escrita por um rapaz à época com vinte e três anos, chamado Abdel-Rahman, ou Rahmani, um estudante que também é eletricista. Desse, há fotos. Ele está vivo e foi à época aclamado por opositores de al-Assad em vídeos e nas redes sociais.

Mais do que isso: foi entrevistado por um jornalista que escreveu sua história pro New York Times. Segundo o artigo de 21 de julho de 2011, no auge dos protestos, as ruas de Hamã eram tomadas por mais e mais gente, dia após dia, e as turbas entoavam palavras de ordem como “paz, paz, cristãos e muçulmanos”, “não haverá medo depois de hoje”, “Deus, Síria, liberdade e nada mais”, com discursos de oradores que não iam muito além disso. As pessoas levavam às ruas carros com sons potentes e tentavam ampliar tais palavras de ordem. Foi aí que Rahmani escreveu sua primeira canção, chamada “Síria Quer Liberdade”.

“Yalla Irhal, Ya Bashar” veio na sequência. Ele e seu irmão discutiram sobre manter os versos mais “pesados” e ofensivos, como “pro inferno você” ou “você e seus apoiadores são bundões”, mas foram duas das mais aplaudidas entre os rebeldes.

“O que eu cantei, todo mundo sentia do fundo do coração, mas não achava palavras pra expressar”, ele disse ao jornalista. “A gente foi criado com medo até mesmo de falar de política”. Perguntado se ele tinha medo de terminar como Qashoush, ele respondeu com uma outra pergunta: “medo do quê?”.

Nas ruas, porém, rola o medo. Ninguém mais resolveu assumir a autoria da música, apesar de tantas teorias sobre quem a escreveu. Pode ser ninguém, pode ser qualquer um. Pode ser Qashoush, pode ser Rahmani. Mas Rahmani não parece ter medo. Tanto que fala a um jornal estadunidense e repete os versos no qual cita outro algoz do povo sírio.

Maher al-Assad, irmão de Bashar, é o chefe do exército oficial, um primata opressor, que não tem dó de atirar em quem quer que seja que ele ache ser contra o governo de sua família. Ele é citado na seguinte passagem: “Maher, você é um covarde, é um agente dos EUA, os sírios não vão ser humilhados”.

A canção em si é de uma simplicidade atroz, baseada na sonoridade folclórica local, com um refrão pegajoso e libertador. E, como se vê, as estrofes são pobres, sem rima, que só servem a um propósito. Quem quer que a tenha escrito não estava preocupado em obter reconhecimento ou apreciação artística.

A música como protesto e forma de expressão na Síria tem muitos bons exemplos (de indie a metal, passando por clássico e hip hop), que vale um artigo a parte, com algumas amostras. Prometo um desse pra breve.

O caso é que “Yalla Irhal, Ya Bashar” ganhou uma proporção maior. Tem uma aura de mistério em torno dela – muito por conta da dimensão entre os protestos de 2011 e 2012 e da morte de seu presumido autor.

E, de 2011 a 2015, muita coisa se deformou. Teve o surgimento do Estado Islâmico, que já controla 60% do país, levando ainda mais terror que o próprio Bashar al-Assad, de modo que a Rússia passou a apoiar o exército oficial sírio contra os criminosos religiosos do EI, e os Estados Unidos não sabem o que fazem (pra entender o que tá rolando lá, recomendo enormemente a leitura desse gigante artigo de Graeme Wood ou do livro “A Origem Do Estado Islâmico”, de Patrick Cockburn, já lançado em português).

A Turquia, sob o comando de um maluco, o presidente Recep Tayyip Erdoğan, resolveu atacar os russos. O jogo mudou, piorou, complicou. No meio disso tudo, o povo sírio se protege como pode, a maioria fugindo pela fronteira turca e vagando pela Europa como gado sem dono e sem valor. Essa pobre gente virou escória, se ficar os bichos pegam (e escravizam ou matam), se correr os bichos comem vivos.

Não há música que dê jeito quando a geopolítica desastrosa e seca por dinheiro e poder massacra o bom senso. Bashar al-Assad pode até vazar, beleza, mas e daí?

Podem dar força e esperança. Podem unir e servir como desabafo. Mas erros históricos, ganância, intolerância e descaso não se resolvem com alguns versos e um refrão pegajoso. Infelizmente.

Ouça a música, com legenda em inglês:

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