PENSE OU DANCE: A FALÁCIA DOS MILHÕES

Certa vez escrevi sobre o Spotify e como o serviço pode ser ótimo pro consumidor final e pra queda da pirataria, ao mesmo tempo que é terrível pros artistas. São velhas práticas em novas tecnologias. Muita gente chiou, principalmente as fileiras que defendem os serviços como algo “moderno”.

Aqui, me atenho a uma particularidade desses serviços, algo que incomoda ainda mais do que os poucos centavos que eles pagam aos artistas por cada execução.

“O Spotify coloca milhões de músicas em suas mãos”, diz o Spotify.

“Descubra um universo musical sem limite! Navegue pelos 30 milhões de títulos, crie e escute as suas playlists, monte a sua própria biblioteca musical e divirta-se!”, assegura o Deezer.

“Toque o que desejar, quando quiser, em uma seleção de 25 milhões de músicas”, garante o Rdio.

Os três grandes do setor vendem como um dos diferenciais o fato de possuir um catálogo de milhões de músicas. Além da tecnologia e do preço, há o diferencial da quantidade de títulos disponíveis. Isso parece ser comercialmente atrativo na hora captar consumidores e o marketing se esmera também nesse ponto.

Ora, se isso é um diferencial de venda, um ponto de destaque na concorrência, parece óbvio que os cérebros que pensam tais produtos acreditam que ter o máximo de artistas e músicas em seu catálogo lhes dará certa vantagem na luta pelo convencimento do consumidor. E eles não estão errados, afinal é exatamente isso que seu maior concorrente, a pirataria, oferece: uma biblioteca infinita de músicas à disposição, é só digitar e baixar.

A despeito do fato que milhões dessas músicas, em plataformas como Bandcamp e Souncloud, estarem disponíveis de forma gratuita oferecidas pelos próprios autores, as pessoas realmente acreditam que assinar um serviço que oferece “x” milhões de canções seja atraente. Isso é, em primeira instância, ótimo, afinal as pessoas criam uma cultura de pagar por música. Do ponto de vista de mercado, é um avanço.

Por outro lado, parece claro que ao usar essa enorme biblioteca como ferramenta da venda do serviço ao consumidor (quanto mais músicas disponíveis no serviço, mais atraente ele se torna, comercialmente falando), esses serviços estão diretamente utilizando a obra de milhares de artistas sem pagar um tostão a eles – e ganhando dinheiro com ela.

Tudo se resolveria se esses serviços pagassem previamente aos artistas um quantia pra deixar tais obras disponíveis no catálogo, independente da execução delas ou não. A execução, como se sabe, resulta numa paga ao artista, que por menor que seja, tal valor não importa no momento, afinal é um acerto feito entre serviços e editoras. Pior pros artistas pequenos, a grande massa dessa enorme biblioteca, que não possuem poder de negociação – mas é um acerto que sempre pode ser renegociado, acredita-se, baseado nas normas práticas de mercado.

Imagine o caminho contrário. Se os artistas começassem a exigir que suas músicas saíssem do catálogo e esse catálogo fosse gradualmente se esvaziando. Qual seria o diferencial desses serviços? O preço, basicamente o mesmo entre eles? A tecnologia, que também é praticamente a mesma? A “facilidade” e legalidade (esse são sempre bons argumentos)? O que o departamento de produtos ofereceria de diferencial pro pessoal do marketing trabalhar, quando a biblioteca desses serviços chegasse e míseras centenas de artistas ou poucos milhares de discos? Você pagaria um quantia mensal, por menor que fosse, sabendo que só poderia ouvir sempre a mesma meia dúzia de artistas, discos ou músicas?

A questão não pode ser relevada.

Um amigo, em começo de carreira jornalística, foi chamado pra contribuir em um grande portal de notícias. Escreveria artigos e pequenas matérias, mas não receberia nada por isso. A contrapartida oferecida pelo site seria só a vitrine. O portal tem lá seus jornalistas e colunistas remunerados, mas eles não produzem o suficiente. Tal site, com o trabalho desse meu amigo e de tantos outros em busca de uma vitrine pro seu talento jornalístico, compunha uma parruda base de conteúdo e acesso que lhe ajudava a vender os espaços publicitários. Quanto mais gente produzindo, mais conteúdo, mais gente divulgando, mais acessos. A lógica é essa, onde o portal ganha seu cascalho e meu amigo fica só com a minúscula possibilidade de ser visto e lido.

Pode-se argumentar que começo de carreira é assim mesmo, que o portal investiu em estrutura e tecnologia, então tem seu direito de ganhar. De fato, tem, mas os iniciantes na carreira precisam trabalhar de graça pra isso?

A analogia vale, pois, pros serviços de música online. Se os artistas hoje aceitam ter suas músicas lá, apostando ser uma boa vitrine, é porque talvez não tenham muito em conta os critérios de probabilidade. Qual a chance de um artista pequeno e desconhecido ser descoberto numa ferramenta dessas? Pelos algoritmos de proximidade e tagueamento, é provável que seja um pouco maior do que ser achado por proximidade e tagueamento em plataformas como YouTube, Bandcamp e Souncloud, mas ainda bem menor do que se ele conseguir uma matéria num pequeno blogue, num site, num grupo de discussão em rede social, ou até mesmo um show num muquifo qualquer, pra um grupelho de amigos. Porque o boca-a-boca pode ainda ser mais eficiente do que qualquer algoritmo.

É uma matemática que ninguém se deu conta de fazer. O mais provável é que, tendo em vista o organismo de mercado hoje, todas as alternativas acima são insuficientes pra qualquer artista viver de música, exclusivamente de música.

Artistas pequenos ainda são agulha nesse enorme palheiro, com ou sem os serviços de música online. Então, não é algo a se pensar?

Se eles viram massa de manobra pra marketing eles deveriam ao menos receber por isso. Não há equívoco nenhum aceitar que sua obra se preste a isso, afinal o artista não ganha nada estando lá ou não estando. “Dá na mesma”, podem argumentar, “ali há uma chance de ganhar uns cascalhos”. Como vimos, nem tanta chance, nem tanta. Cada um faz o que quiser com sua obra, mas é preciso entender que estando ela num desses serviços, ela o está ajudando a compor essa enorme biblioteca que serve como diferencial de vendas pras assinaturas mensais de tais serviços – e sem ter ganho nada com isso, rigorosamente nada.

Ninguém aqui é contra esses serviços, pelo contrário. Vale dizer, mais uma vez, que pro consumidor é uma opção e tanto pra consumir música de forma legal. É divertido. É prático. É eficiente. Que bela ideia poder carregar essas milhões de músicas por aí, num celular ou num tablet, sem precisar fazer download algum!

É ótimo, mas ainda é subprecificado, porque não é justo com os artistas, nem na exposição, nem no pagamento de execuções, nem nessa falácia dos milhões de títulos disponíveis.

Pagar os artistas pra ter a obra deles disponível na biblioteca seria aplicar certa justiça. É preciso estudar a viabilidade disso, mas o produto não pode ser viável passando por cima do direito comercial dos outros. Se pra ter um catálogo com milhões de obras de forma justa, pagando os direitos previamente, o produto acaba se tornando caro, talvez seja preciso repensar o produto.

Deixar do jeito que está é só ratificar o ideal de sucesso comercial de um pequeno grupo, como era na época das grandes gravadoras, em detrimento de quem cria. Ainda estamos no passado.

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