PENSE OU DANCE: GUERRA DE GIGANTES

Em 2016, o jogador de futebol americano Colin Kaepernick se ajoelhou durante a execução do hino dos Esteites, antes de uma partida. A opressão racial que o Estado, via forças policiais e Justiça, demonstrava ao executar negros pelas ruas, motivou o jogador e desencadeou uma polêmica que dura até agora.

É impossível ficar contra as atitude do atleta. Se o Estado está exterminando pessoas baseado na sua condição social e na sua raça, todo apoio deveria aparecer naturalmente e os governantes deveriam morrer envergonhados, em posição fetal, num canto escuro e esquecido da história.

Mas nos dias de hoje, não é bem assim. A marcha dos insensatos levou idiotas ao poder (note que não faço uso do termo “conservadores”, mas “idiotas” mesmo, gente que ignora avanços e conhecimentos científicos, que trata a oposição como alvos a serem eliminados, que despreza direitos civis e humanos, que usa a religião e a família como escudo pra desfilar seu discurso de ódio etc.), na Turquia, nos Esteites, no Leste Europeu, nas Filipinas, no Brasil.

O gesto de Colin Kaepernick foi um protesto silencioso e inofensivo, desarmado e pacífico, mas simbólico, brutal e contundente. A NFL, a bilionária empresa que cuida do campeonato de futebol americano, não curtiu. Donald Trump, o truculento presidente do país, ficou furioso. A turba de acéfalos seguidores de Trump se sentiu desrespeitada. E o jogador acabou sem contrato. Não joga mais o esporte que escolheu pra sustentar sua família.

No SuperBowl 2019, a final do campeonato, o protesto surtiu um efeito já esperado: muitos artistas se recusaram a se apresentar no tradicional “show do intervalo”, uma bobagem que acontece entre um tempo e outro da partida, mas que é transmitida pra mais de uma centena de milhões de pessoas só nos Esteites. Entre eles, Rihanna, Cardi B, Run The Jewels e Jay Z, que até cita a recusa na música “Apeshit”, com a esposa Beyoncé, assinando como The Carters.

No Louvre, ele canta “I said no to the Super Bowl: you need me, I don’t need you / Every night we in the end zone, tell the NFL we in stadiums too”:

Usar o Louvre como locação pra “Apeshit” é mais um recado: uma expansão dramática do tipo de cultura normalmente apresentada neste espaço de elite, onde as pessoas de cor há muito se sentiam excluídas, não eram bem-vindas e muito menos eram representadas. Mas, como sublinha a PhD em História na Universidade de Ohio, Lauren A. Henry, “o próprio Louvre acabou sendo um ato similar de inclusão radical. Originalmente residência oficial dos reis franceses, o Louvre tornou-se um local da coleção de arte real depois que Luís XIV moveu a corte pra Versalhes, em 1682. Durante a maior parte do século XVIII, o acesso público a galerias de arte era extremamente limitado, sujeito aos caprichos dos príncipes e das sociedades reais que possuíam as obras de arte. Mas em 1793, no primeiro aniversário da derrubada da monarquia francesa e do estabelecimento da República, o Louvre foi declarado um museu estatal, propriedade do povo e de livre acesso a todos, sem qualquer ônus – uma nova instituição democrática pro povo”.

O SuperBowl até poderia, forçadamente, usar essa correlação, tal como o futebol é uma saída pra ascensão social dos pobres brasileiros sem perspectiva alguma. Mas não. A empresa, como bem lembrou o Run The Jewels, é uma “empresa privada, racista e está em busca do maior lucro possível, mascarada como uma empresa sem fins lucrativos”.

No dia 2 de fevereiro de 2019, quando ocorreu a edição número cinquenta e três do SuperBowl, o Twitter viu subir as etiquetas #I’mWithKap e #7Challenge, milhares de pessoas se solidarizaram com o agora ex-jogador Colin Kaepernick, e se recusaram a assistir ao evento. Claro, a NFL não mudou sua postura contra os jogadores que se ajoelham durante os hinos nacionais, e Kaepernick não conseguiu de volta sua carreira no futebol. Desligar a TV foi uma maneira fácil de ajudar a causa, assim como evitar o show do intervalo.

Muitos nomes de envergadura ajudaram a subir as etiquetas, como Common, Angela Davis, LeBron James, Kevin Durant e os artistas citados, que se recusaram a atuar no palco da final.

Eis que a NFL partiu pra Maroon5, Travis Scott e Big Boi (metade do Outkast). Como diz o Daily News, o trio escolhido é como se você acabasse indo pro baile com a oitava opção de companhia, já que as outras sete recusaram porque te acham um pulha.

Enquanto Rihanna simplesmente mandou um “obrigado, mas não, obrigado”, Cardi B foi direta na recusa: “perdi muito dinheiro com essa escolha, mas há um cara que perdeu seu emprego por nós, então eu tenho que ficar ao lado dele”.

É uma guerra de gigantes. De um lado os conservadores e idiotas NFL e Trump, além de uma boa massa de acéfalos. Do outro, artistas famosos o suficiente pra poderem dispensar o SuperBowl e os cem milhões de audiência.

Como bem lembra Amanda Petrusich, em seu artigo do dia seguinte à final, pra revista The New Yorker, “pode não haver shows menos desejáveis ​​do que o show do intervalo do SuperBowl. Não é remunerado e é loucamente trabalhoso, e os artistas escolhidos possuem geralmente carreiras tão prósperas que a única cenoura a atraí-los – uma audiência de televisão de cerca de cem milhões – parece desnecessária. A NFL parece provocadora, mas proíbe qualquer provocação real, garantindo assim, com raras exceções, um espetáculo profissional, mas em grande parte sem derramamento de sangue (depois que MIA alegremente mostrou o dedo do meio durante sua colaboração com Madonna, em 2012, a NFL processou-a em mais de dezesseis milhões de dólares; o processo acabou sendo resolvido em termos não revelados). A coisa toda parece estressante – um medley psicótico realizado sem espontaneidade. Porque, então, se importar?”.

A resposta é uma só: a música é e deve ser sempre um instrumento político, mesmo que feita pra entreter, dançar e desanuviar a cabeça. Mais: mesmo que o artista não se proponha a ser político – e existe mal maior do que o famoso “isentão”? – a sua música, de alguma forma, é um ato político. É uma determinação inescapável. Os artistas partiram pra guerra contra uma das maiores empresas do país e, de tabela, contra o governo. Mas há quem prefira o conforto da distância, evitando o conflito.

“O principal show deste ano”, segue Petrusich, “o Maroon5, um grupo de pop-rock básico de Los Angeles, foi recebido com polêmica antes mesmo de sua participação ser confirmada pela NFL. Em entrevista ao ‘Good Morning America’, Mark Geragos, advogado de Kaepernick, comparou a aparição do Maroon5 a furar uma greve, e caracterizou Adam Levine como coverde”. Levine disse em outra entrevista uma frase típica do isentão medroso: “vamos continuar fazendo o que nós estamos fazendo, e espero que sem nos tornar políticos”. Apoiar a NFL em pleno 2019 parece ser algo bastante imoral.

O resultado, na percepção crítica de Petrusich, é que o Maroon5 saiu perdendo. “É difícil saber o que fazer com o Maroon5, musicalmente. A banda é tão inócua que parece irrepreensível. Levine tem um falsete confiável, mas carece de temperamento ou vigor sedutor. Levine uma vez disse que admira Mick Jagger; ambos são vigorosos. Mas a presença de Jagger sugere perigo, ou pelo menos indecência, como se algo imoral e carnal pudesse acontecer com você se você apenas mantiver o olhar por tempo o suficiente. Levine pode ser magnético no palco, mas suas canções parecem benignas e geradas por computador, suavizadas ao ponto da incompreensibilidade”.

“A bem da verdade, é que o show deste ano estava amaldiçoado mesmo antes de começar. (…) Mas ainda me surpreendo que o Maroon5, se não estivesse disposto a assumir um risco político, não demonstrasse, pelo menos, um pouco de astúcia sobre a maneira como as pessoas se comunicam agora – oferecendo pelo menos uma lembrança digna de meme”.

Colin Kaepernick, ao menos, assinou um bom contrato com a Nike (a empresa também sofreu sanções dos setores idiotas da sociedade estadunidense por isso, mas manteve a posição firme). O que dará ao Marron5 essa participação inócua é quase certo que seja ganho algum.

Quando você se diz apolítico, você está sendo político. Ok, não podemos esperar que todo mundo se posicione – muito menos que se posicione da maneira que concordamos -, essa não é uma regra do negócio, mas está cada vez mais sendo uma regra exigida socialmente. Ficar em cima do muro, com medo do confronto, como muitas vezes Anitta faz aqui no Brasil (e ela é o nome mais cobrado pra qualquer posição), com medo de perder audiência e dinheiro, pode ser um risco ainda maior. Definitivamente, não vale tudo por dinheiro e fama, não nos dias atentos de hoje.

Aquela velha máxima “se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor” não só é uma verdade, como deveria ser lembrada diariamente.

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