PENSE OU DANCE: O BUSTO, A MEMORIA, A VERDADE E UM DOCE

Quando levei minha esposa pela primeira vez à minha cidade natal, uma saga inesperada e frustrada, pela memória do meu avô, aconteceu.

Falecido em 1994, ele havia sido um homem e tanto. Negro, nascido em 1910, enfrentou toda sorte de dificuldades por conta dessa condição – se os negros enfrentam a discriminação hoje, em pleno 2012, como não deveria ser no início do século XX? Não sei quase nada sobre sua ascendência, mas é bem provável que seu pai tenha sido escravo e que as marcas da escravidão tenham passado adiante. Mas meu avô foi um caso raro de alguém que “venceu”: se tornou advogado, desembargador, presidente do Tribunal de Justiça e, por um brevíssimo momento (coisa de dias), governador do estado.

Há um auditório no Tribunal de Justiça do Pará com o nome dele, Agnano Monteiro Lopes. Pelo o que me disseram, fizeram um busto dele, pra ser colocado em frente ao Tribunal, mas que acredito ter sido feito pra ser colocado em frente ao auditório.

Fomos um dia lá no Tribunal pra ver o tal busto, que considero uma homenagem bacana – mas que talvez ele mesmo pudesse achar exagerada. Só que o Tribunal estava em obras, dessas obras públicas que nunca terminam, porque quanto mais tempo demoram mais os contratados pra realizá-la ganham. E ninguém sabia onde estava o busto – ou se havia de fato um busto. Bom, há, porque me disseram que por conta das obras algumas peças do acervo do Tribunal tiveram que ser levadas pra outro lugar, que era bem mais longe e, como era o último dia de férias (e ficar de calça jeans em Belém, leitor, não é moleza), preferimos deixar pra outra oportunidade.

Quando voltamos pra cidade, anos depois, o Tribunal ainda não sabia o destino do tal busto. Não me surpreendi por nunca ter visto tal busto, nunca ter sequer localizado depois de tanto tempo tantas e idas e vindas ao Tribunal; e, pra ser sincero, é uma busca que não vale tanto esforço assim. O que vale é que há uma homenagem (o auditório) e uma outra que prefiro acreditar ser verdade (sempre me contaram que é), porque é a memória do meu avô, que não posso deixar, pra mim mesmo, arrefecer, já que ele sempre foi considerado um bom homem, na vida e no exercício da função – essa outra homenagem é deliciosa, você entenderá no final deste texto.

Lembrei dessa saga por conta da Comissão da Verdade, que o Governo Dilma Rousseff criou dia 16 de maio de 2012, pra elucidar alguns casos da ditadura.

Minha família não sofreu muito com a ditadura. Meu pai e meu tio foram presos, mas nada de violências físicas, só morais e individuais e por pouco tempo. Mas teve muita gente que sofreu um bocado, mesmo que sem ligação alguma com oposição formal e articulada ao regime. Gente que foi presa, torturada, morta e desaparecida por motivos que ninguém sabe ao certo.

Gente que foi presa, torturada, morta e desaparecida por animais como esses que o Forastieri descreve aqui, e o Marcelo Rubens Paiva, aqui. Ignóbeis soltos por aí, como senada tivesse acontecido, escondendo uma verdade que pode trazer conforto pra muitas famílias.

Oficialmente, o regime e a truculência acabaram em 1985, com a eleição (indireta) que transformou Tancredo Neves num mero trampolim pro Sarney herdar de bandeja a presidência da República. Lá se vão vinte e sete anos – longe na folhinha do calendário.

Essa distância do tempo traz uma preocupação. Começo a me incomodar com os rumos que esse fato toma na cabeça dos jovens até vinte anos. Pra maioria deles, é só mais um capítulo a estudar nos livros de história, pra passar no vestibular, essas coisas. Não há dor, nem há sangue envolvidos. Pior, teme-se que não haja mais nem memória.

Discutindo com alguns deles por esses dias, ninguém achava o assunto relevante – acham que o que passou passou, bola pra frente, é melhor esquecer. Veja que grave: anistiar pelo esquecimento. A Comissão da Verdade vai ser usada politicamente, eu sei (infelizmente), mas os princípios, segundo expôs Dilma, são nobres: “a comissão não abriga ressentimento, ódio nem perdão. Ela só é o contrário do esquecimento. (…) Essa não é uma ação de governo. Estamos celebrando um ato de Estado”.

Que assim seja, um ato de Estado, que tem por obrigação consertar seus erros do passado. E, mais do que isso, tem que combater o esquecimento aparentemente imposto por um distanciamento político que a juventude cada vez mais se impõe. “Alguém que fala de política é chato, melhor falar de festas e sei lá mais o quê”, parece ser o recorrente na roda de 90% dos universitários e ginasiais (num exagero forçoso).

Da mesma forma que me caiu bem a sensação de que uma singela homenagem ao meu avô afastou o esquecimento dos seus feitos em vida, não se pode esquecer as barbáries dos vilões da ditadura (veja aqui uma matéria sobre e esse vídeo chocante aqui). Não se pode negar memória a uma gente que ainda sofre com aquilo, sem saber onde foram parar os corpos dos seus familiares. Não se pode levar pra um lugar desconhecido e distante a memória do que aconteceu. É preciso que essa memória e, principalmente, a verdade esteja à mão de quem quiser visitá-la e conhecê-la. Não é papo de “esquerdinha”, que essa catalogação já nem cabe mais. É uma questão de respeito. É obrigação das gerações atuais e futuras zelar por essa memória e refutar o esquecimento.


Foto tirada desse site.

Porque essas pessoas não terão a mesma sorte do meu avô. Ele, além do busto, ainda bem, teve uma deliciosa homenagem, que se imagina mais eterna e impossível de se esconder. Ele virou doce.

“O biscoito é delicado e simples: água, manteiga, farinha de trigo, açúcar, uma calda de chocolate coberta com açúcar cristal. Deve derreter na boca, mas ser denso o suficiente para não quebrar no manuseio, e manter o gosto de trigo assado. Por trás dele, negros e brancos”, é assim que Ana Diniz descreve um doce bastante conhecido dos paraenses de Belém, o Monteiro Lopes.

A memória de toda pessoa de bem tem que ser saborosa pra seus entes queridos. Negar isso é um crime tão hediondo quanto o próprio crime.

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Comentários

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2 comentários

  1. Cara, eu sempre me surpreendo quando pessoas que eu conheço virtualmente revelam um pouco de suas vidas pessoais. Talvez por isto eu goste tanto dos pods do ReR. Esta história de seu avô é lindona e me bateu a mó vontade de provar este docinho.

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