PENSE OU DANCE – PESQUISA MOSTRA QUE MÚSICA NÃO TEM VALOR

O mercado de música no Brasil vai bem, obrigado – mas isso se você for (na segunda década do terceiro milênio) sertanejo universitário/romântico, funqueiro ostentação ou fizer música pop descartável. Isso ainda vende de uma forma ou de outra, seja em cachês pra shows, direitos pra publicidade/cinema/televisão, merchindising, eventos etc.

Mas o que acontece quando se olha abaixo da linha do mainstream ou mais abaixo ainda, no subterrâneo da música? Falta orientação, falta pesquisa, falta um norte. A Midsummer Madness, etiqueta brasileira que nasceu zine em 1989 e está na ativa até hoje, resolveu se mexer pra compreender esse mercado e chegou a algumas conclusões que podem ser lidas aqui.

No final de 2016, o selo fez uma pesquisa sobre os hábitos de consumo de música, que infelizmente foi muito mal divulgada na Internet. Sabendo que, como qualquer pessoa, o selo vive numa bolha nesses tempos líquidos, o resultado é interessante, embora distorcido e válido apenas pra bolha – mas oferece luz a uma ou duas questões de extrema relevância.

De acordo com o enunciado oficial, mil e quarenta e quatro pessoas responderam o questionário. O selo não tem certeza do perfil dessas pessoas porque não perguntou pra elas, mas entende que “está dentro da nossa bolha: fala do Brasil, tem entre 20 e 40 anos, unissex (na falta de um termo melhor) e deve ser ABC (referindo-se às três faixas de renda mais altas da população)”.

Apesar de não ter nenhum critério científico, o questionário é engenhoso (a “pesquisa” é, a bem da verdade, uma “enquete”) ao levar as pessoas por um caminho desejado, que se não aplica a luz da compreensão em muita coisa, dá uma boa ideia de como pensa esse grupo consumidor “nichado”.

De fora, a primeira observação que se pode fazer é que o grupo que respondeu deve ser na sua grande maioria participante de alguma forma do que o brasileiro insiste chamar de “cena”. São bandas, amigos de bandas, outros selos, blogueiros, jornalistas, músicos em geral e, claro, público. Se apostarmos que um pedaço do perfil do público é esse, dá pra traçar algumas impressões (infelizmente, como bem fez a mea culpa o selo, não dá pra ter certeza da idade, região, sexo etc.).

A pesquisa tateia o perfil de consumo desse pessoal. Aponta que ele prefere streaming ao CD e ao vinil; que mais da metade paga por um serviço de streaming (a preferência é pelo Spotify); que quase metade não compra mais nenhum CD, e mais da metade não compra nenhum vinil; que quase 80% simplesmente não compra música digital e os poucos que compram preferem o Bandcamp e o iTunes; e que quase 70% se informa sobre música em blogues e por sugestão dos amigos – eis aqui a maior indicação de como esse público deve ser participante da tal “cena”.

É um público essencialmente digital. Além de preferir blogues e amigos como fonte de informação, toma contato com lançamentos através de serviços de streaming (o investimento nos algorítimos comportamentais, afinal, não é um investimento vão), pelo YouTube, sites das bandas (eis mais uma falha da pesquisa/enquete, já que muitas bandas usam como página oficial o Bandcamp ou o Facebook, ou seja: estamos falando basicamente de redes sociais ou o quê?) e até mesmo podcasts.

A maioria conversa sobre música e compartilha música pelas redes sociais mais potentes no Brasil: o Facebook (88,1%) e Twitter (30,7%), tendo playlists do seu serviço de streaming preferido com 36,7%.

E um público que não sai da frente do computador ou do celular é um público que provavelmente circula pouco. A pesquisa não pergunta a quantos shows (de bandas nacionais ou gringas) a pessoa vai por ano, nem mesmo quanto estaria disposta a pagar em média por cada evento (seria interessante perceber que esse pessoal da “cena” não quer gastar um centavo com bandas nacionais que “deveria” apoiar, enquanto paga mais de cem pra bandas gringas). Mas pergunta que tipo de produto consome nesses shows: 50,3% das respostas afirmam adquirir CDs, camisas, pôsteres e adesivos em shows (37% compram qualquer coisa menos CD; 26% disseram que preferem comprar o CD nos shows; 25% compram CD e outros produtos; e 19% compram vinil e outros produtos).

Esse seria um dado a se comemorar, afinal merchandising é uma fonte importante de receita de qualquer artista iniciante, ou até mesmo de médio porte. Entretanto, a pesquisa desalenta qualquer otimista com duas questões que valem por todo esforço até aqui gerado por ela.

A primeira delas foi: “se você não encontra a banda ou o álbum que procura, você ainda baixa da Internet?”. Incríveis 79,9% disseram que “sim”, contra apenas 20,1% dizendo que “não”, o que sugere, de alguma maneira, que esse pessoal do “não” vai buscar os meios “legais” ou pagos pra conseguir o que procura.

Apesar da pesquisa falhar em detalhar sobre que tipo de artista estamos falando – se um megaultrapop, como U2 ou Kanye West ou Beyoncé, ou se um artista subterrâneo, que tem menos de cem curtidas na sua página no Facebook, o que certamente influenciaria na resposta – os entrevistadores foram bastante hábeis em direcionar a próxima questão a uma pegadinha sapeca: a quem respondeu “sim”, como se consegue música (“onde você baixa?”).

O resultado foi surpreendente – ainda mais se levarmos em conta que o perfil do público pode ser esse “apoiador da ‘cena’, de qualquer ‘cena'”: 46,3% disseram que baixam via torrent, enquanto 36,2% dizem que apelam ao Pirate Bay e 22% ao Soulseek. A opção “outros” (sabe-se lá o que isso quer dizer) conseguiu 23,8%; e aqui vem o dado que espanta, apenas 11,2% afirmaram “não acho certo baixar (gratuitamente)”.

Sendo uma pesquisa/enquete de respostas anônimas, é de se imaginar que não há jogo de cena dos entrevistados: 11,2% acham que baixar música na Internet é algo errado. O diacho é que na pergunta anterior, como vimos, 20,1% disseram que “não baixam da Internet”, de modo que há quase 9% aí incorrendo em erro.

Como caráter é algo difícil de se medir com perguntas desse naipe – e nem é essa a intenção aqui – é assustador ver o despudor do brasileiro (ainda mais se ele for mesmo “apoiador da ‘cena'”) em baixar música pelos canais “ilegais”.

Mas isso é só o reflexo da segunda questão que vem dar enorme valor a essa pesquisa/enquete: “você acha que o acesso à música deve ser gratuito?”. Sim, 60,1% dos entrevistados acham que “sim”. “Música virou ar, água. Mesmo sendo fonte de diversão e prazer, a grande maioria acha que música tem de ser gratuita”, diz o texto do relatório final da pesquisa.

Mesmo que a gente se esforce em acreditar que os entrevistados não façam de alguma forma parte da “cena”, ainda assim é uma resposta que expõe uma característica cultural de consumo do brasileiro: o que foi de graça um dia de graça pra sempre deve ficar. Até a música, o que é alarmante pra construção de qualquer mercado ou “cena”. Como alguém pode sobreviver num mercado em que os consumidores não enxergam valor no produto a ponto de pagarem qualquer quantia?

O grande serviço desse grande trabalho da Midsummer Madness foi escancarar aquilo que parecia óbvio: o brasileiro não vê valor na música, embora consuma quase nada de teatro e literatura também (exibir cinema ainda parece ser um mercado sustentável). O brasileiro médio não gosta de cultura? Acha supérfluo?

A Innovare Pesquisa e o SESC apontam uma resposta, em recente pesquisa (de 2015): 61% dos brasileiros nunca viu uma peça de teatro; 89% nunca frequentou concertos de música erudita ou ópera; 75% nunca presenciou espetáculos de dança; 71% nunca esteve em exposições de pintura e escultura. O tempo livre do brasileiro é gasto 58% em atividades em casa. Só 10% tocam algum instrumento e 15% cantam em grupo ou individualmente. Pra pesquisa, o “boca a boca” ainda é o melhor e mais eficiente meio de divulgação de atividades artísticas e cultuais, o que indica que o brasileiro não lê ou não gosta de se informar na mídia sobre o assunto.

Em 2007 (ano base 2002), o IPEA fez um extenso e detalhadíssimo apanhado do consumo das famílias brasileiras com cultura, com número de empregos formais gerados, mercado cultural e demanda, dimensão do mercado de financiamento cultural. Recomenda-se muito a leitura, clicando aqui. Um outro relatório bem detalhado é do Iphan e foi divulgado em 2010 – você pode mergulhar nos números aqui (faça isso!). Aqui, é possível ver, por exemplo, que em Brasília, Porto Alegre e Belo Horizonte, 53% dos entrevistados apontam como principal atividade cultural “ouvir música”, item que fica em primeiro em quase todas as capitais, com porcentagens diferentes; mas que a segunda colocação fica invariavelmente com “se reunir com os amigos”. “Ir a shows e concertos pagos” não passa de 6% da preferência de nenhuma capital.

Em 2014, a professora e pesquisadora Gisele Jordão, da Escola Superior de Propaganda e Marketing, de São Paulo, produziu o relatório “Panorama Setorial da Cultura Brasileira”, onde expõe que 42% dos brasileiros não praticam atividades culturais com frequência. Além do “não consumidor”, há outros três tipos de brasileiros: o consumidor de cinema (33%), o consumidor de festas (15%) e o praticante cultural (10%). Esse último é provavelmente onde está inserido o público entrevistado pelo selo Midsummer Madness.

O relatório virou um site bem detalhado, que você pode se embrenhar (e se espantar) aqui.

O esforço do selo é importante porque procura se inserir num mercado onde as pessoas, em teoria, são ativistas e trabalham voluntariamente pela divulgação dos seus artistas preferidos. Normalmente, esses artistas são amigos, familiares, namoradas/namorados. Há um laço social qualquer. Mas o ativismo para nessa relação e não se expande a outros artistas e muito menos ao consumo propriamente dito.

Espera-se que uma pesquisa mais detalhada e técnica surja pra estudar esse subterrâneo nacional. Os nanomercados são muitos, a cauda longa pode dar um respiro a tantos produtores culturais/musicais. Mas pra isso é preciso conhecer seu público, como ele se comporta, onde ele está, como ele é, quanto dinheiro tem pra gastar, onde, quando, como e porquê. É necessário traçar um perfil do artista, qual periodicidade média de produção, qual a longevidade (quanto tempo o adolescente ou o jovem adulto suporta viver à margem do mercado “tradicional” de trabalho só pra produzir sua arte, antes de se entregar e arrumar um “emprego de verdade”, como insiste a sociedade), qual a expectativa, qual a necessidade, onde está, o que produz, como produz, como distribui, como faz pra divulgar e pra valorar sua arte.

As perguntas são muitas e as respostas ainda são uma enorme nuvem disforme. O trabalho da Midsummer foi um importante, interessante e corajoso passo. Conhecer com clareza o mercado é o primeiro ato pra usufruir dele.

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