PENSE OU DANCE: PRECISAMOS DE UM MINISTÉRIO DA CULTURA

“Hoje nos despedimos do Ministério da Cultura. Todos juntos, reafirmamos a centralidade da cultura no desenvolvimento do Brasil. Exaltamos a diversidade cultural brasileira, traço de nossa singularidade, marca do nosso lugar no mundo. Ao lado dos artistas e dos fazedores culturais, trabalhamos movidos pelo compromisso com a cidadania, pelo aprofundamento da democracia, na construção de um Brasil justo e generoso. Eu fui feliz e sabia”.

A fala é do último Ministro da Cultura, Juca Ferreira. Hoje, dia 13 de maio de 2016, não há mais ministro da pasta, porque a pasta não mais existe. O governo recém-empossado sob o tridente do interino Michel Temer, urdido pelas forças golpistas que limaram o mandato da legitimamente eleite Dilma Rousseff, extinguiu o Ministério da Cultura, colocando-o como pasta subjugada ao Ministério da Educação, fazendo ressurgir o MEC.

Alfredo Manevy, diretor da SPCine, agência de cinema ligada à Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, escreveu um artigo expondo com clareza esse retrocesso (leia na íntegra aqui).

“O Ministério da Cultura foi criado em 1985 no calor da redemocratização do Brasil, e teve entre seus primeiros Ministros Celso Furtado. (…) O Ministério da Cultura foi uma conquista da sociedade brasileira que saía de 20 anos de ditadura e, de certa forma, sinalizava o início de um acerto de contas do Estado brasileiro com seu passado autoritário. Na ditadura, a cultura era exatamente subordinada à educação. Era coerente com o interesse de controle e doutrina sobre a vida cultural brasileira. Felizmente, a ditadura não conseguiu controlar a cultura, que fez a diferença na resistência política ao regime”, escreveu.

Muita gente acha que o MinC resume-se a uma transferência de princípios ideológicos através de obras financiadas por leis de incentivo à produção cultural. São ignorantes. O papel do MinC é de extrema importância social. E por isso Manevy nos lembra que a “diluição das políticas culturais no Ministério que zela constitucionalmente pelos gigantes problemas educacionais brasileiros virá na contramão das grandes democracias mundiais e será um baque profundo: terá impacto especialmente pra produção cultural brasileira, dos grandes centros, do interior, em todas as regiões. Haverá impacto pra todas as linguagens artísticas, pras políticas de leitura, patrimônio cultural, e nas populações quilombolas, indígenas, que passaram a se relacionar com o MinC na última década. Pras políticas de valorização da diferença e respeito às liberdades religiosas e comportamentais”.

Não se trata, pois, de “dinheiro da Lei Rouanet” pra produções “duvidosas”. A Lei Rouanet pode ser contestada como mecanismo de fomento à produção cultural, não há problema nisso (tudo pode ser contestado, como princípio de debate), mas é preciso entender como ela funciona.

Em resumo, o produtor (que normalmente nem é o artista) faz um projeto, apresenta ao Ministério, na intenção de conseguir autorização pra captar uma verba determinada na iniciativa privada. Não é fácil conseguir essa grana com as empresas e são elas que efetivamente escolhem o que vai ser financiado. A iniciativa privada dá a grana e pode abater do imposto de renda até um certo teto. Em outras palavras, o governo não dá dinheiro, ele deixa de receber, na forma de impostos. O Ministério apenas determina se o projeto pode ou não captar recursos abatíveis.

Mas o MinC não se resume à Lei Rouanet. João Brant, ex-secretário executivo do Ministério, elenca algumas ações e alguns processos que a pasta deu andamento nos últimos meses (veja tudo aqui, é bastante coisa). O Ministério tem outras tantas importâncias.

A pasta realizou políticas públicas “bem sucedidas, republicanas e de grande alcance social e artístico”, em áreas como “audiovisual, culturas indígenas e direitos autorais”, que “ganharam enorme impulso” – aspas de Manevy, que completa: “artistas de todas as visões ideológicas tiveram acesso aos apoios, aos fundos e à Lei Rouanet. Seu orçamento cresceu comparativamente, indo muito além de gerir a lei de incentivos fiscais. O MinC passou a incentivar a diversidade cultural, a dialogar com os projetos indígenas, a realizar centenas de editais, e regular a economia do audiovisual e dos direitos autorais”.

Apesar dos elogios às administrações da última década, em 2016, o governo Dilma ofereceu o menor orçamento desde 2005, com apenas R$ 604 milhões pra despesas não fixas. O que o governo Temer fez pode resultar no fim de políticas de proteção cultural que vinham se fortalecendo há décadas, desde 1985.

“Com a destruição da pasta cultural, o governo dará um presente a setores hoje regulados economicamente pelo MinC, como o ECAD. Diminuirá a capacidade de regular, garantir transparência e fiscalizar as enormes distorções na distribuição de direitos de autor. O Ministério é hoje um ator importante pra busca de justiça econômica em temas como o marco civil da Internet, no florescimento da produção audiovisual independente, na ampliação do mercado de TV a cabo pra milhões de brasileiros (até 2010, sem os novos marcos, predominava a TV aberta). Ou seja, ECAD, empresas de telefonia e radiodifusão poderiam ser beneficiadas com a extinção do Ministério”, diz Manevy.

Juca Ferreira, o último ministro da área, lembra, em recente artigo (leia aqui), que “num tempo em que vemos aumentar impulsos irracionais de exclusão, de marginalização, de negação da liberdade do outro, nada mais importante do que prestigiar iniciativas de afirmação das diferenças, da convivência pacífica e respeitosa com os contrários, do gesto de respeito com que uma comunidade saúda e homenageia os valores de outra. Iniciativas essenciais pra formação de uma mentalidade que tenha a liberdade, a autodeterminação e a justiça social como ideais fundadores de uma sociedade plural como a nossa”.

Jotabê Medeiros, na Folha, chama o “rebaixamento do MinC” de “declaração de guerra à classe artística” (veja aqui) que em sua maioria, desde o início, se posicionou contra o processo de impedimento da presidente. O cenário criado por Temer e analisado pelo jornalista é o oposto do que prega o ex-ministro Juca Ferreira: “uma coisa que parece evidente é que o governo interino de Temer avaliou que o risco de ruído oposicionista na manutenção de um Ministério da Cultura seria grande. Ou seja: melhor evitá-lo. Tirando dois ou três franco-atiradores de qualidade artística e ativística muito discutível, não se conhece artista realmente grande que tenha apoiado a operação que culminou com o afastamento de Dilma Rousseff do cargo. Esses artistas, desgostosos com a situação, nunca apoiariam um novo ministro, por mais notável que fosse. Nunca haveria interface para diálogo. Portanto, estabelece-se logo a guerra”.

E destrói o novo Ministro da Educação, já nesse MEC que, como na ditadura, voltou a abrigar a Cultura: “uma simples passeada pelo Facebook do novo ministro das duas pastas, o pernambucano Mendonça Filho (do DEM, grifo meu), o Mendoncinha (saiba mais aqui), indica que ele é torcedor ferrenho do Santa Cruz, anti-petista a ponto de postar charges desrespeitosas contra os adversários e nunca cumpriu sequer uma única agenda cultural nos últimos oito meses. Não há referência a qualquer atividade minimamente relacionada ao setor – nenhuma lágrima por David Bowie, Naná Vasconcelos ou Fernando Faro, nenhum comentário sobre o novo disco de Elza Soares, Radiohead ou de Céu. Nada. Difícil começar sequer a conversar com Mendoncinha sobre um fato do Brasil de 2016: as políticas de estímulo às diferentes áreas da cultura dão resultados incontestáveis. Em 1992, último ano do governo Collor, um único filme brasileiro foi lançado comercialmente no país. Aquele período foi apelidado de ‘desmonte’. Duas décadas depois, o cenário é totalmente diferente: só em 2015, foram produzidos 128 filmes feitos por 116 empresas produtoras distintas, filmes nacionais que foram vistos por 22 milhões de pessoas. A cadeia de empregos e mercado que se desenvolveu é das mais saudáveis da América Latina. Mas já é meio passadista usar como estratégia de convencimento argumentos economicistas, dizer que de cada R$ 1 gasto em cultura, de R$ 5 a R$ 7 voltam para a economia. Somente o mais puro sentimento de barbárie sustentaria a desnecessidade de se investir em cultura, de o Estado não abrir mão de definir estratégias para o setor”.

Vale repetir: “somente o mais puro sentimento de barbárie sustentaria a desnecessidade de se investir em cultura”.

Ivana Bentes, agora ex-Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural, salienta que “a fusão ou extinção do Ministério da Cultura do Brasil não será a derrota de uma gestão ou de um governo, significará um retrocesso de décadas nas políticas culturais e uma desqualificação e desprestígio de todo o campo cultural”.

Destaca ainda as palavras da escritora e jornalista Rosa Freire d’Aguiar, que apresentam o vulto histórico da pasta: “nem mesmo o alucinado caçador de marajás teve coragem de reincorporar o Ministério da Cultura ao da Educação: Collor liquidou com o ministério, demitiu aos borbotões (até o ilustre pai do Plano Piloto de Brasília, Lucio Costa, foi demitido de um conselho do MinC), fez terra arrasada nas políticas culturais, mas não juntou a Cultura com outra pasta. Criou a Secretaria de Cultura da Presidência da República. Entregue a uma figura menor, Ipojuca Pontes, mas depois ao Sergio Rouanet. Pra encontrarmos a Cultura relegada a segundo escalão de outro ministério, como o vice da Dilma fez, temos de voltar aos governos militares. Simbólico retrocesso”.

Por fim, Jotabê Medeiros explica o motivo da separação ser necessária: “são duas sistemáticas de políticas públicas muito distintas, a educação e a cultura, embora correlatas: a primeira pede estratégias de inversões vultosas de verbas, ações de caráter sociológico, científicas; a segunda pede contatos interpessoais, detecção de sensibilidades, anticientificismo, saberes tradicionais, antecipação de tendências. Não coexistem num mesmo guarda-chuva, quanto mais num mesmo para-raios”.

O interino Temer, a título de jogar pra plateia, cortando ministérios a torto e a direito (ele extinguiu, entre outros, a Controladoria-Geral da União, o Ministério das Comunicações, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, e o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos), em cortes que não fazem nem cócegas no balanço das contas públicas (que carece mais de eficiência e ética – o não-roubar em primeiro lugar – do que de cortes), decreta também que prefere dar as costas ao social, em preferência ao pagamento dos juros da dívida pública, mais conhecida como “dinheiro pros bancos privados – é só pra isso que existe o tão falado “superávit primário”.

Nossa Cultura está sendo trocada por grana pros bancos. O passado que Temer representa, principalmente nessa área, é um retrocesso de décadas. A gente era feliz e não sabia.

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