PENSE OU DANCE: UM CANCER NO MUNDO DAS IDEIAS

“E só dentro de um hospício se vive na América
Viver num hospício é melhor que num pardieiro?
Tudo foi sempre uma mera questão de dinheiro
O belo câncer no mundo das idéias

(você não tem dinheiro
você quer uma viagem
não se esqueça de tirar o pó
valsas amargas nas cidades)”

É improvável que Cadão Volpato tenha escrito esses versos de “Rock Europeu” pensando em bandas coveres. Na década de 1980 (mais precisamente, em 1986), bandas coveres eram uma praga, mas uma praga aceitável, por vários motivos.

O caso é que ele parece, sem querer, ter previsto como estaria o mundo da música em terras brasileiras duas décadas e meia depois.

É bom dizer, antes de tudo: sempre gostei de bandas que fazem versões de músicas que elas gostam. É um sinal de respeito e reverência pra com o autor original. O que o Echo & The Bunnymen fez, por exemplo, com “All You Need Is Love”, dos Beatles (com inserções de James Brown e Bob Dylan, por exemplo), é digníssimo:

Poderia enumerar e compor uma lista enorme de grandes versões. Dificilmente você encontrará uma banda que jamais tenha feito uma versão de outro artista. Boas versões, porém, são raras e talvez nem seja o caso: é uma homenagem, não uma disputa.

Até quando a versão é muito ruim, ou escrachada, ela pode ser divertida, como fez Sid Vicious com “My Way”, do Paul Anka (eternizada por Frank Sinatra):

Esses são os caso aceitáveis. O problema está quando a prática vira regra e bandas passam a viver de coveres.

Na década de 1980, pra quem lembra, havia duas mais famosas: a Beatles 4 Ever e a U2 Cover. Ganharam muito dinheiro preenchendo uma lacuna: era raro uma banda gringa aparecer em solo nacional. Até mesmo as bandas brasileiras não apareciam em profusão – ou, pelo menos, pelas amarras do sistema, ninguém ficava sabendo. Mas hoje, como se sabe, não faz muito sentido.

As bandas brasileiras têm como promover sua música pelos muitos canais online que conhecemos. Os aeroportos brasileiros andam cada vez mais lotados de bandas estrangeiras que embarcam e desembarcam. Na teoria, não existe mais essa lacuna do consumidor de música. Seus astros estão aí – ou podem estar aí a qualquer momento. Às vezes basta esperar e guardar um dinheiro.

Mesmo assim, nunca se viu tanta banda cover por aí. Piscou e você dá de cara com um convite pra ver Strokes Cover, Arctic Monkeys Cover, Rapture Cover, Franz Ferdinand Cover, Madonna Cover, Nirvana Cover… Normalmente são músicos de bandas “autorais” que se metem nessa pra ganhar algum dinheiro que sua própria música não permite. Fazem por obrigação e geralmente fazem porcamente.

Pode-se questionar, pode-se tentar entender e é provável que você se depare com um círculo em que ninguém é culpado e todos têm sua parcela de culpa. Os músicos precisam ganhar dinheiro, pagar as contas e, ok, se divertir um pouco. Mas qual a desculpa das casas que abrem espaço pra isso, e qual a desculpa do público?

O público em teoria não teria motivos pra querer ver uma banda cover e pagar por isso. Nenhum. A não ser que seja acéfalo, o que pode vir a ser o caso. Senão, vejamos: não há uma banda cover dessas que os indies festivos gostam que não tenha ainda vindo ao Brasil – recentemente até; entre uma banda tocando versões ruins de músicas que a audiência gosta e um DJ mandando as mesmas músicas originais não seria melhor – e mais barata – a segunda opção, se o caso for só “animar uma festa” (na verdade, em qualquer situação)? É um exercício de sonho (masturbação) coletivo, é isso?

As casas donas dos poucos palcos decentes disponíveis pra música jovem nos centros urbanos estão de olho nesse público e tiram espaço de bandas “autorais” pra atender a demanda acéfala. Têm culpa no cartório, porque é mais fácil assim, dá menos trabalho tratar com um contratado sem complicações técnicas ou de ego. E é simples a matemática: se você não tem palco importante, as bandas não tocam, não aparecem, não podem formar público e o público fica nesse marasmo idiotizante.

É um processo que esconde talentos, que aprisiona a inquietude nos guetos.

Mas, na lógica, dá até pra absolver os empresários dessas casas. Eles não têm que pagar a conta da “construção de uma cena”, qualquer cena que seja. Ninguém é bobo, nem precisa fazer filantropia. Empresário quer ganhar dinheiro e se o público é assim, se compra esse tipo de atração, por que não?

Então, o problema é cultural. É preciso querer comprar novidades. O público precisa querer o novo, pelo menos um público suficiente que convença o empresário a investir nisso, que incite o músico a viver disso e que faça a máquina girar. Não há, porém, nada no horizonte que inspire tal mudança no quadro geral. Vamos continuar recebendo convites vis de qualquer porcaria cover.

“Viver num hospício é melhor que num pardieiro?”, vale de novo a pergunta. “Tudo foi sempre uma mera questão de dinheiro”, é a resposta imediata. Temos, pois, “um belo câncer no mundo das ideias” originais da música brasileira jovem, pop, o que for.

E uma cidade como São Paulo vive coberta de um pó do passado, esperando ser limpa por um pouco de originalidade nos seus palcos efervescentes e importantes. As bandas originais, inquietas, se resguardam nos palcos menores, periféricos. É ali ainda, como há trinta anos, que a coisa acontece. Já podia ser diferente, já podíamos ter com frequência e opção de escolher valsas menos amargas.

Nota posterior: É óbvio que o Fellini, em “Rock Europeu”, falava de outro pó e de outra viagem, com o bode posterior sendo aquela amargura. Mas a visão inocente e simplista encaixou bem no argumento aqui apresentado. Perdoe-me pela apropriação.

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