PROPELLER – O PUNK ROCK COMO UM DOS GATILHOS DA INDEPENDÊNCIA DA ESTÔNIA

Talim, com (hoje) quatrocentos mil habitantes, sempre foi uma cidade estratégica pra Moscou e ficou ainda mais a partir de 1940, quando o pacto com os alemães entregou a Estônia e os outros países do Báltico pro comando russo. O forte nacionalismo estoniano, porém, não suportaria calado e sem enfrentamento a gerência comunista por cinquenta e dois anos. A população gritaria – ou melhor, cantaria – por independência.

Na Estônia, desde 1869 e de cinco em cinco anos, acontece o Laulupidu (Festival da Canção da Estônia), um evento que reúne corais pra entoar canções históricas e nacionalistas, com audiência de milhares de pessoas. Foi o jeito que o povo encontrou pra se lembrar que é estoniano – e não russo – durante as muitas ocupações russas (o país só foi formalmente independente entre 1918 e 1940).

Quando se deu a ocupação soviética, em 1940, o festival foi palco da primeira amostra da insatisfação local. Na edição de 1947, a primeira depois da ocupação, Gustav Ernesaks escreveu uma canção que se tornaria símbolo de resistência (a partir de um poema de Lydia Koidula): “Mu Isamaa On Minu Arm” (“Terra Dos Meus Pais, Terra Que Eu Amo” – aqui, durante o XXV Laulupidu, em 2009). Por algum milagre, a música escapou do crivo da censura russa e virou sinônimo de canto pela liberdade, sendo entoada pelos Laulupidu seguintes, sempre em enfrentamento aos militares e governantes russos vigentes.

No livro “Eastern Europe: An Introduction To The People, Lands, And Culture, Volume 1”, Richard Frucht diz que “os festivais nacionais de canção simbolizam a continuidade de resiliência da cultura estoniana em frente aos séculos de ocupação estrangeira, e continua a servir como proteção desse lado maravilhosamente pacífico da vida estoniana”.

Um bom exemplo dessa força é contada no documentário “The Singing Revolution”, de 2014. O filme destaca a luta pacífica do povo diante da truculência russa. “Mu Isamaa On Minu Arm” não era permitida oficialmente no programa do Laulupidu durante os festivais da década de 1950 e 1960, até que no aniversário de cem anos do festival, em 1969, o coral no palco e a platéia começaram a cantar a música. Os soldados soviéticos ficaram loucos com aquilo e gritavam ordens pro coral parar. Mas dezenas de milhares de vozes não se calam assim. A canção foi entoada repetidas vezes na cara das autoridades, que nada puderam fazer, a não ser convidar o próprio autor Ernesaks pro palco pra que ele conduzisse os trabalhos, fingindo que a Rússia concordava com aquilo.

A música era uma arma poderosa – e ia ficar ainda mais letal a favor da liberdade.

Movimentos não-violentos de resistência, porém, levam tempo, às vezes muito tempo. É o que se necessita pra incutir na cabeça das pessoas, de uma maneira leve e lúdica como nesse caso, ideias que são transmitidas sem ofensividade.

Guntis Smidohens, no livro “The Power Of Song: Nonviolent National Culture In The Baltic Singing Revolution”, descreve que “a euforia de massa interpreta um importante papel; sentimentos intensos de transcendência, religiosidade ou algo do tipo seguem afetando as pessoas mesmo depois desses mesmos sentimentos se esvaírem. Pra ser bem sucedidos, movimentos não-violentos têm que passar de um sentimento bobo de felicidade pra emoções mais palpáveis, ligadas à paciência e persistência. Os políticos precisam ter certeza que milhares de pessoas estão na sua base, racionalmente preparados e emocionalmente prontos, se necessário, pra morrer num embate com o oponente. Aqui, canção e poesia continuaram, como sempre, a revitalizar os fundamentos ideológicos dos movimentos de independência, cimentando uma identidade nacional de não-violência”.

Mikhail Gorbachev chegou ao poder em 1985 e, com ele, vieram a perestroika (reestruturação econômica) e a glasnost (liberdade de expressão). Mas os estonianos tinham desde sempre uma vantagem competitiva com relação às demais repúblicas socialistas soviéticas: a capital Talim fica a menos de noventa quilômetros de Helsinque, a capital da socialmente avançada e democrática Finlândia. O que as rádios e tevês transmitiam do outro lado do Golfo da Finlândia era facilmente captado do lado russo.

O jornalista estoniano Mart Niineste conta ao site Joyzine que naquela época “havia apenas uma janela pro resto do mundo, e era a rádio e TV finlandesas”. E naquelas ondas vinham Sex Pistols e todo o punk britânico, que foram apresentados pra toda Finlândia e, por tabela, à Estônia.

“Você pode culpar o punk britânico por tudo o que o punk estoniano é”, diz Niineste. E ele não está brincando. Se os Laulupidu criavam gradualmente, com canções e poesias nacionalistas, uma massa de estonianos contra-russos baseados na não-violência, não se pode dizer o mesmo de alguns jovens impactados pela fúria britânica.

Pode-se dizer que esses jovens tinham motivo pra se rebelar, muito mais que Johnny Rotten e Sid Vicious. Havia censura e repressão, e a glasnost de Gorbachev ainda ia demorar um bocado pra dar as caras. Em 1979, essa molecada estava mais afim de chutar umas canelas soviéticas do que esperar um movimento gradual de não-violência surtir efeito. Sequer podia imaginar que Gorbachev existia.

Daí, surgiu a primeira banda punk local, a Generator M. Hendrik Sal-Saller, um dos fundadores, disse ao Joyzine: “o sistema soviético era, em uma única palavra, ‘opressor’! O momento era o ideal e minha juventude rebelde precisava se expressar. Na Estônia, éramos prisioneiros em nosso próprio país”.

Mas, curiosamente, não foi um bando de moleques revoltados que colocaria o punk estoniano na história. Um grupo de músicos profissionais formou em 1980 a Propeller, banda que foi o centro de um caso que acabou sendo o gatilho da revolta social no país – e que acelerou a “Singing Revolution” propriamente dita, a de 1988.

Em 22 de setembro de 1980, um jogo de futebol aconteceu no estádio Tallinn Dünamo, entre atletas da televisão estoniana e da rádio estoniana. No intervalo e ao final da partida, a Propeller faria um show.

A TV e a rádio, claro, anunciaram com entusiasmo o jogo durante um tempo, na intenção de chamar amantes do futebol pra vê-lo. Mas acabaram atraindo mesmo milhares de jovens de 13 a 17 anos, que queriam assistir à performance da Propeller, cujo punk já ecoava vez por outra nas rádios clandestinas e subterrâneos de Talim. Mais de sete mil pessoas compareceram ao estádio. Era o maior público da história do futebol estoniano. O diacho é que os censores russos não curtiram o que viram e ouviram no intervalo (as letras tinham forte mensagem nacionalista) e não permitiram que a Propeller fizesse o show após o jogo. Avisaram a decisão pelos auto-falantes do estádio.

Mesmo assim, com a banda empacotando as coisas no palco, milhares de jovens desceram ao gramado e cercaram o grupo. Queriam mais música. Não rolou. Os jovens ficaram revoltados, mas nada aconteceu dentro do estádio. Assim que a banda guardou tudo, os jovens começaram a sair, em direção ao terminal de trem. Alguns grupos de jovens começaram a entoar cantos nacionalistas pelo caminho, alternando com gritos anti-Rússia. A turba chegou ao terminal alterada e começou a quebrar trens e instalações. Carros de polícia foram destruídos. Em direção ao centro da cidade, os grupos cada vez mais numerosos e concisos (cerca de mil) inflavam os pulmões de gritos nacionalistas e quebravam vitrines de lojas, lixeiras e placas de trânsito. Logo, foram dispersados pela milícia soviética, mas ficou acertado novo encontro no dia 1º de outubro, numa sorveteria.

Com local e data gritados a plenos pulmões, a polícia já sabia e estava postada. Mais de cinco mil estudantes compareceram, grande parte muito jovens. Não houve exatamente conflito com a polícia: apenas desobediência pra dispersão e distúrbio “da ordem e do trânsito”. Eles levavam a bandeira azul, preta e branca da Estônia, que estava oficialmente banida. Queriam a independência da Estônia, a retirada das tropas soviéticas, melhor calefação e comida nas escolas e ouvir a música que quisessem ouvir. Muitos foram presos.

O rock já era um tipo de música proibido pela regime soviético, mas a Propeller, punk e mais “radical”, vista como estopim pros incidentes que assustaram os líderes do partido comunista, foi banida pelos russos. Mart Niineste reconhece que esse curto período de existência tornou a banda “uma lenda”. A Propeller acabou e logo virou a Keseke: os mesmos integrantes, mas com outra pegada, nada punk, mais progressiva.

Inicialmente, a Propeller era formada por Urmas Alender (vocal), Peeter Volkonski (vocal), Peeter Määrits (vocal, flauta), Ain Varts (guitarra), Riho Sibul (guitarra), Priit Kuulberg (baixo), Peeter Malkov (vocal, flauta), Albert Trapeez (letras, poesia) e Ivo Varts (bateria). Eram músicos e intelectuais, mais do que jovens arruaceiros, e a música nem era assim tão “punk”.

Na cola dos acontecimentos, veio a famosa “Carta Dos 40” (“Neljakümne kiri”), publicada em 28 de outubro de 1980, uma carta-aberta contra a opressão soviética, assinada por quarenta intelectuais e artistas proeminentes estonianos. A carta atacava as políticas culturais repressivas soviéticas, enaltecia a língua e cultura estonianas, e criticava a forma como o governo russo havia tratado a rebelião dos jovens após o show da Propeller. Nenhum jornal oficial publicou a carta, muito menos o Pravda, o maior de todos e veículo oficial do partidão. Mas ela foi impressa clandestinamente e circulou por todo o país.

Em Estocolmo, capital da Suécia, o exilado jornal estoniano Eesti Päevaleht publicou a carta, que acabou correndo a Europa e depois chegou aos Estados Unidos. Na Estônia, oficialmente, a carta só foi publicada em 1988, às vésperas da independência. Nenhum dos membros do Propeller foi chamado a assinar a carta (que pode ser lida na íntegra, em inglês, aqui).

A carta teve um impacto profundo no que viria a ser a “Singing Revolution”. Com a glasnost, em 1985, os estonianos experimentaram protestos pacíficos pontuais, como “testes” pra com a nova abordagem política de Moscou. O caso das minas de fosfato que o país queria ordenar foi o mais famoso, embora não tenha tido resultados práticos.

Os festivais de música começaram a pipocar, como o Tartu Music Days (em 14 de maio de 1988), onde Alo Mattiisen e sua banda mostraram pela primeira vez o hino da “Singing Revolution”, “Five Fatherland Songs”. O rock voltava aos palcos.

Heinz Valk, ativista e artista estoniano, é quem cunhou o termo “Singing Revolution”, num artigo que descrevia o momento-chave pra luta da independência da Estônia: era junho de 1988 e durante o Old Town Festival, no Lauluväljak (ou The Tallinn Song Festival Grounds), trezentas mil pessoas se reuniram pra cantar os hinos da independência. Uma revolução baseada na música, na não-violência.

Dois meses depois, no mesmo local, PIL, Big Country e Steve Hackett reuniram cento e trinta mil pessoas num concerto igualmente histórico. Era o Summer Of Rock. Os soviéticos não conseguiam mais impedir o rock e a música de fazer a cabeça dos estonianos.

A revolução ali não era silenciosa. Mas era pacífica. Era musical. Ela aconteceu na Estônia, na Lituânia e na Letônia em moldes bem parecidos.

Em 20 de agosto de 1991, a Estônia se tornou independente. O Laulupidu segue acontecendo – a edição XXVII está marcada pra 2019. O rock segue firme, embora numa cena proporcional ao tamanho geográfico do país.

A Propeller voltou a assumir seu nome e toca por aí. Um disco foi lançado, coletando várias músicas da época: “Пropeller”, de 1995, que pode ser ouvida aqui, na íntegra, com outro nome, “Propa 15”.

A música é, de fato, uma arma.

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