RESENHA: KIKO DINUCCI – RASTILHO

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Quando tomado como um todo – em seu ritmo e em sua brutalidade -, “Rastilho”, disco mais recente de Kiko Dinucci, é um exercício deliberado em decompor formas, muitas vezes percebidas como estanques, para propô-las como novos modelos musicais. Nós encontramos essas novas percepções como “estilhaços” de um modelo canônico brasileiro que encontram, na estrutura criada por Dinucci, uma nova forma de celebração das manifestações musicais de nossos guerreiros antepassados.

Parece-me que o violão, instrumento principal do disco, nos deixa com a interpretação mais sincera que o músico poderia evidenciar: é como se as celebrações, ao decorrer do álbum, passassem diretamente por suas veias. Dessa forma, dissolvem-se contrastes ilusórios entre o que seria primitivo e contemporâneo, porque é no corpo do instrumentista, em 2020, que o ancestralismo funda sua classe discursiva, inclusive através das várias técnicas que Kiko desenvolveu ao longo de sua frutífera carreira.

Assim, “Vida Mansa” (originalmente gravada na voz de Cyro Monteiro, composta por José Batista e Norival Reis) aceita o presente como interferência simultânea em outro tempo que ainda constrói a formulação da música brasileira. As notas e pancadas no violão de Dinucci ensinam um samba que, de muito bom grado, retrai das variadas influências e, em seus acordes, apresenta uma alegria contaminante. Mas é a dissolução do contraste que cultua as sessões de celebração e conjuração num espaço em que as histórias vivem através das transições, dos ataques, dos ônibus na avenida, dos parques, das febres urbanas.

As músicas seguintes aprofundam-se nesse rompimento de contraposições, sendo o disco um corpo receptivo que desmonta e redistribui suas várias heranças. “Veneno” encontra a voz de Rodrigo Ogi para atestar uma história de solo e risadas, em que uma tragédia, em meio a celebração mágica, se anuncia.

“Tambú E Candongueiro” conta com um quarteto de pastoras para Dinucci afirmar que suas próprias produções (foi inicialmente gravada com o Bando Afromacarrônico, em 2008) também podem ser atravessadas pelas heranças encontradas no avançar do tempo. O equilíbrio cuidadoso é mediado pela performance de Kiko, como se este fosse um corpo que anuncia todas as transferências mediadas por sua andança no terreno cultural.

“Rastilho” se revela, a cada audição, um corpo vivente da realidade, a qual testemunha sem perder a noção de herança cultural e preservação de memória enquanto instrumentos ativos na transformação possível das derradeiras paisagens urbanas.

01. Exu Odara
02. Olodé
03. Marquito
04. Vida Mansa
05. Foi Batendo O Pé Na Terra
06. Febre Do Rato
07. Dadá (com Ava Rocha)
08. Veneno (com Rodrigo Ogi)
09. Tambú E Candongueiro
10. Gaba (com Juçara Marçal)
11. Rastilho

NOTA: 9,0
Lançamento: 21 de janeiro de 2020
Duração: 32 minutos e 36 segundos
Selo: Independente
Produção: André Magalhães e Bruno Buarque

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