REVISITANDO: CLEMENTINA DE JESUS – CLEMENTINA DE JESUS (1966)

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Foi em 1901 que a Igreja Católica oficializou a data da Quaresma e a partir de então, o carnaval passou a ser oficialmente comemorado nos dias anteriores ao período religioso.

Sem poder lutar contra a natureza humana, a Igreja oficializava o Carnaval pra que todos pudessem lá cometer seus excessos.

A festa pagã nasceu “oficialmente”, sob os olhos da Santa Sé, no mesmo ano em que nasceu Clementina de Jesus, em Valença, a cento e cinquenta quilômetros do Rio de Janeiro, em direção a Juiz de Fora.

A cidade onde fica o Quilombo São José da Serra, onde o jongo rola, viu Clementina crescer junto com sua voz. E a voz cresceu junto com os tambores.

O jongo tem sido uma importante ferramenta de afirmação da identidade afro-brasileira. E ajudou a comunidade a ganhar os direitos sobre a terra que está com eles há gerações, desde escravos.

Mas o governo federal mudou, o Rio de Janeiro, no caos administrativo, com os quatro governadores presos, segue fortalecendo a burocracia que pode a qualquer instante revirar tudo.

Isso em 2020.

Clementina enfrentou esse “revirar tudo” desde sempre. Mesmo sua voz acompanhando sua mãe na beira do rio, os tambores da comunidade, sua vida só foi mudar sessenta e cinco anos depois.

Aos sete anos, mudou-se de Valença pro Rio de Janeiro. Quedou-se felizmente em Oswaldo Cruz, bairro onde nasceria, quinze anos depois, a Portela, de Paulo Benjamin De Oliveira.

Ali, participou do Bloco As Moreninhas das Campinas, que foi o embrião da escola.

Estudou em colégio católico e a mistura de religiões se fortaleceu, como foi praxe neste país.

Logo, casou-se e mudou-se pra Mangueira. Clementina, talento puro, potência na voz, corpo expressivo, foi trabalhar como doméstica, que era o que permitiam pra pretas naqueles tempos (“naqueles tempos”, só “naqueles tempos”?).

Mas cantava. Cantava tanto que, segundo consta, o produtor e compositor Herminio Bello de Carvalho a viu em festa na Penha e se encantou. Já era 1963, ela com sessenta e dois anos e a sociedade afastada de seu talento.

Com a benção de Hermínio, ela pôde aparecer nesse país que diz não ser racista por preguiça do enfrentamento com sua história.

Ela “cresceu assim num misticismo estranho: vendo a mãe rezar em jejê nagô e cantar num dialeto provavelmente iorubano, e ao mesmo tempo apegada a crença católica”, disse Hermínio, que exalta o próprio faro: “gosto de dois tipos de trabalho que fiz na minha vida, em termos de gravação: o trabalho todo com Clementina, de dez discos, e o LP chamado ‘Doce Veneno’ [1979], com a obra do Valzinho [compositor e violonista], precursor da Bossa Nova. São dois polos distintos”.

Sim, a Bossa Nova elegante e “exportável”, coisa de intelectual e que deu distinção à música brasileira. E o samba brasileiro-africano, tambores e vozes, uma preta implacável com sua história no gogó.

É assim que vemos a artista na capa de seu primeiro disco, de 1966.

O fundo escuro, Clementina De Jesus, braços em movimento, corpo circulando, rodando, expressando sessenta e cinco anos de vida musical e cultural e histórica.

Sessenta e cinco anos pra que essa potência toda pudesse rodar nas vitrolas.

O absurdo dessa demora não se justifica nem mesmo com a expressão “é como vinho”.

“Piedade, ôôô (piedade)
Tem piedade, oh mãe de Deus (piedade)

Nossa Senhora da Penha (piedade)
Que altura foi morar (piedade)
Naquele lugar tão alto (piedade)
Freguesia de Irajá (piedade)”

Das dez canções do disco, apenas quatro não são tradicionais, canções de história, como “Piedade”. Duas são de Paulo da Portela (incluindo a clássica “Orgulho, Hipocrisia”), uma de Cartola e outra de Bubu e Jamelão (a linda “Esta Melodia”, uma das músicas mais bonitas já escritas em português).

Na contracapa do disco, Hermínio conta a história de Clementina e explica cada uma das canções.

Sobre “Piedade”, ele diz: “este partido-alto (cortado) foi gravado no improviso, sem nenhuma convenção especial. João da Gente e Paulinho puxaram o partida na palmas”. O Paulinho em questão é Paulinho da Viola, ainda novato.

São nessas seis de tradição que o tambor é fresco e vigoroso, especialmente “Cangoma Me Chamou” – “Cangoma” quer dizer exatamente “festa dos tambores” – e “Tava Durmindo”.

Em “Cangoma Me Chamou”, “dois atabaques (Elton e Paulinho) e as palmas de João registram a difícil rítmica do jongo, gênero cujo remanescente mais antigo parece ser mestre Rufino, hoje isolado e distante das coisas da música. A dramaticidade dos versos junta Clementina uma força vigorosa, que nem a estafa do final de gravação apagou”.

Elton é Elton Medeiros, o próprio.

“Clementina entra ‘à capela’ nesta toada (moda) mineira, que aprendeu com seu pai, quem sabe o autor da obra?”, diz o produtor sobre ‘Tava Durmindo’. (…) Clementina canta ‘variado’ ao invés de ‘variando’, que é o certo – e poeticamente mais forte. Um equívoco que não se ousou corrigir, tal o sentimento de que estava possuída a partideira”.

O samba clássico “Barracão É Seu”, com João Da Gente, é um recado especial à classe média preconceituosa: “Barracão / Barracão é seu vou desocupar / Coração é meu vou desabafar / Me dá meu violão que eu vou-me embora / Quero mostrar à senhora que eu tenho aonde morar”.

O que dizer da sensacional descrição dessa?

“Clementina e João inspiradíssimos”, conta Hermínio, “improvisaram segundas desdobradas pra este lindo samba. Nada menos do que dezesseis improvisos foram registrados nesta faixa. Há um ‘tombo’ de Clementina, quando ela ia rima ‘dar’ com ‘devagar’, mas acabou-se atrapalhando na colocação da variação pronominal, com prejuízo da rima. Reparem como João segue a escola de Paulo da Portela, num delírio laudatório: Cartola, Ismael, Paulo, Maestro Fon Fon… o verso do ‘balaio’, dito por João, é aproveitado por Clementina logo adiante, mas ligeiramente modificado”.

Sobre “Garças Pardas”, Hermínio conta que faltava a segunda parte – “que provavelmente nem foi feita”. Daí, ele foi até Zilda do Zé-Com-Fome, “mas ela desconhecia o samba. O jeito foi foi encomendar uma segunda ao divino Cartola de Mangueira”.

E tem a excepcional “Tute de Madame”, o clímax do álbum.

“O entusiasmo é tanto que se pode escutar João da Gente numa justiticadíssima euforia (‘muito belo, muito belo’), e a batucada pega fogo com Clementina soltando seus ‘lelelês’ sobre o refrão que tem uma nítida (e inexplicável) influência francesa, mais clara quando ela solta um verso arrevesado (algo como ‘je ne sais pas, m’sieur’)”, revela o produtor.

O clima que Hermínio tentou dar à gravação foi justamente a da espontaneidade, como ele mesmo revela na contracapa (ah, se toda contracapa fosse tão didática e reveladora assim!).

Pra ele, o espontâneo é um quesito necessário pra “manifestações populares desse gênero”, claramente “ensinando” os compradores brancos da zona sul, curiosos do que acontecia nas camadas populares.

“Pra quebrar a rigidez e a frieza de um estúdio de gravação, (…), não faltou sequer o incentivo generoso de um bom uísque nacional, cuja marca deveria constar na ficha técnica”, revela.

Participam do disco nomes que fariam inveja a qualquer músico.

Maestro Nelsinho é o assistente musical, tocou também trombone. Há ainda Canhoto (cavaquinho), Dino e Meira (violões) e Luiz Marinho (baixo).

Nas batidas, que junto com a voz de Clementina, é o ponto crucial do disco, há Elton Medeiros (pandeiro), Jorge Arena (atabaques, caixa e bombo), Marçal, o próprio (cuíca e pandeiro, “às vezes no chamado toque ‘pé chato'”) e Ary Dalton (tamborim).

Hermínio escreve que “o repertório foi selecionado com a intenção específica de se mostrar a diversidade e riqueza da nossa música popular. Precisar a origem e autoria de alguns desses cantos já se torna impossível. De velhos sambistas e jongueiros remanescentes das rodas de samba e candomblé do princípio do século, tenho imprecisas informações. Mesmo Clementina é fonte insegura, tamanha quantidade de seu repertório”.

Porque Clementina era o primeiro áudio-livro-vivo da história. Suas músicas carregam as dores, conquistas, cheiros, sabores e tradições de antepassados (nem tão distantes), da África até Valença, até a Oswaldo Cruz e Mangueira.

Em sessenta e cinco anos, a Rainha Quelé acumulou o conhecimento de todas as regras raízes não-escritas da música popular brasileira.

Clementina, a partir daí, não era mais de Jesus, mas de todos os brasileiros. Do mundo. De quem preza essa riqueza toda.

01. Piedade
02. Cangoma Me Chamou
03. Barracão É Seu (com João da Gente)
04 Tava Durmindo
05. Orgulho, Hipocrisia
06. Coleção De Passarinhos
07. Garças Pardas
08. Esta Melodia
09. Tute De Madame
10. Vinde, Vinde Companheiros

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