REVISITANDO: DE LA SOUL – EYE KNOW (1989)

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Enquanto no lado oeste dos Esteites, as balas comiam soltas, a polícia sentava o sarrafo em qualquer preto que se imaginava artista abrindo a boca pra cantar, ou eles mesmos se matavam em disputas de gangues que intrigava quem estava de fora, do lado leste era tudo good vibes, com o hip hop versando sobre amor, coisas juvenis, discos, marcianos e um tanto de graça.

Quer dizer, o Public Enemy é dali, de Long Island, Nova Iorque, e mandava a polícia se foder com propriedade e estimulava o enfrentamento ao poder, não importa quem fosse o poder, porque estava sempre nas mãos de brancos (e é basicamente assim até hoje, com algumas melhoras). O Public Enemy nunca vai ficar desatualizado porque os problemas que eles cantavam na década de 1980 e 1990 ainda existem, mas o mesmo também pode-se falar da existencialidade juvenil do De La Soul.

Quando eles lançaram em 1989 “3 Feet High And Rising” foi uma espécie de “revolução” na cabeça de muitos jovens pretos estadunidenses, mas pela ótica da leveza e do amor. Se Public Enemy é essencial, De La Soul também é. E eles são da mesma área, de Long Island.

“Eles” são Kelvin Mercer, também conhecido como Posdnuos e Plug One; Dave Jolicoeur, também conhecido como Trugoy e Plug Two; e Vincent Mason, também conhecido como Maseo e Plug Three. Os plugues pra se conectar com marcianos, com a vida na terra, com a nossa mente.

Eles começaram sem muitas pretensões e tinham à mão praticamente toda a história da música pra usarem. E usaram. Tem tanto sampler em “3 Feet High And Rising”, que você dificilmente vai achar o disco no seu serviço digital de música, porque é caro pagar tanto direito autoral e, segundo dizem, há utilizações que eles nem lembram mais a fonte e é melhor evitar um processinho depois.]

Durante anos, ele foi evitado pelas gravadoras, nenhuma das quais conseguiu resolver os complexos problemas de licenciamento em torno das inúmeras citações de outros artistas do disco. Em 2019, chegou a estrear no Spotify, marcando seu trigésimo aniversário. Mas foi retirado em seguida, pois a banda disse que o acordo era injusto. O grupo alegou que a gravadora Tommy Boy obteria 90% dos lucros, enquanto eles ficariam cerca de 10%.

O negócio se tornou particularmente complicado também por outro motivo: o trio discute uma “dívida fantasma de US$ 2 milhões” que o chefe da Tommy Boy, Tom Silverman, cobra deles. A oferta no Spotify foi de um corte 70%-30%, mas Silverman quis cobrar a dívida na fonte, tirando mais 20% pra ele.

Falando à BBC em 2016, Kelvin Mercer descreveu a indisponibilidade de seu catálogo anterior como algo “de partir o coração”. Ele explicou que os samples da banda – mais de 70 apenas em “3 Feet High And Rising” – foram (a maioria) liberados pra lançamento já em 1989; mas seus contratos falharam em prever o surgimento da música digital. “Nossos contratos naqueles primeiros álbuns diziam especificamente ‘vinil e cassete'”, disse ele. “O texto não era vago o suficiente para se adequar à tecnologia musical. Então, uma vez que toda a era da música digital entrou em jogo, novos acordos precisaram ser feitos pra esses álbuns inteiros.

A gravadora deles na época, a Warner Bros, “simplesmente não quer lidar com isso”, acrescentou. “Eles perguntam, ‘Vale a pena?’ Eles têm que passar por quase todas as músicas com um pente fino pra se certificar de que esta ou aquela amostra foi limpa. “Tem sido um processo muito longo e desgastante”.

É uma pena. O disco é sobre Paz, amor, justiça, igualdade, diversão, união, auto-expressão e auto-estima. Não é coincidência que De La Soul coloque “D.A.I.S.Y. Age” no final do disco. O termo “Da Inner Sound Y’all”. Esta Daisy Age faz referência e homenageia os filhos das flores da década de 1960 que pressionaram por mudanças sociais enquanto reinterpretavam as ideias de consciência social e ativismo pra uma nova era.

Certa vez, alguém escreveu: “numa época em que tínhamos bandas como Public Enemy e N.W.A. escrevendo essas canções inflamadas, políticas e imensamente importantes, surgiu um movimento que adotou uma abordagem mais pacifista; a necessidade de todos nós nos unirmos e criarmos um pouco de amor”, o que o De La Soul tomou pra si.

A capa do disco, com cores fortes e aquelas flores, virou um marco. “Daisy Age era sobre abrir tudo”, diz Maseo nesta matéria. “Mas isso ofuscou nossa música, porque fomos interpretados como querendo copiar uma certa época dos anos 60. Essa coisa toda de Woodstock, era tudo sobre o que não sabíamos. Eu aprecio como e porque isso aconteceu, mas não foi a interpretação correta da alma da nossa música. De La sempre foi hip-hop. Não se trata de margaridas ou da era hippie. Estávamos fazendo hip-hop do nosso jeito”.

A capa do segundo álbum do De La Soul, de 1991, mostrava um vaso quebrado contendo uma margarida murcha. Chamava-se “De La Soul Is Dead”. A mensagem era bastante óbvia. “Com o sucesso de ‘3 Feet High And Rising’, trabalhamos muito”, lembra Maseo sobre sua dupla de empresários – o fundador da Def Jam, Russell Simmons, e Lyor Cohen, que agora é o chefe global de música do YouTube.

“Não havia realmente espaço pra voltar ao estúdio e fazer mais música. E o que estava acontecendo com a Daisy Age, o que pretendíamos ser um movimento, parecia mais uma tendência, uma tendência mal interpretada. Tendências vêm e vão – queríamos acabar com essa tendência antes que ela nos matasse”, disse.

A Daisy Age se mostrou em clipes também, era uma estética, mesmo que mal interpretada por quase todo mundo, especialmente a crítica.

Um dos exemplos mais claros das boas vibrações do disco está no clássico “Eye Know”. Prince Paul montou a faixa misturando “Peg”, de Steely Dan (é praticamente um cover!), com os sopros de “Make This Young Lady Mine”, dos Mad Lads, e o assobio final de “(Sittin’ On) The Dock Of The Bay”, de Otis Redding. Hip-hop é antes de tudo referência, afinal de contas.

Posdnuos canta na primeira parte: “Saudações, garota, e bem-vinda ao meu mundo de versos / eu estou pronto para rimar / É a era das margaridas e você está prestes a subir no palco / Então limpe seus tênis no capacho”.

Posdnous relembrou à Rolling Stone: “quando eu e Dave trabalhávamos no shopping, ouvíamos apenas músicas tocando nos alto-falantes. Eles sempre tocavam ‘Peg’ e estávamos, mesmo assim, aspirando a ser um grupo, e nós pensamos, ‘Ei, essa poderia ser uma música legal de se usar’. Então, quando chegou a hora de usá-lo, pegamos aquela parte ‘eu sei que vou te amar mais’, pegamos a batida de Lee Dorsey, usamos os sopros de outro disco do Mad Lads (‘Make This Young Lady Mine’), e foi isso. Foi divertido. Foi meio que minha primeira vez programando uma batida”.

A batida e os versos só-amor foram transportados pro vídeo de “Eye Know” com a cara do álbum: as cores fortes, as flores tomando o espaço, os três interpretando os samplers, balões, e o rosto da moça, a Jenifa – “eye know I love you better”.

O De la Soul escolheu “Eye Know” como quarto single promocional de “3 Feet High And Rising”, o primeiro depois do lançamento do disco, mas curiosamente não saiu nos Esteites, apenas na Europa, onde alcançou o top 10 de singles na Inglaterra.

A faixa de maior sucesso, pelo menos nos Esteites, terminou sendo “Me Myself And I”, único single número um do trio no seu próprio país. “Buddy” também alcançou enorme sucesso. Mas “Eye Know” resume o que o De La Soul sempre quis passar – e good vibes nunca são demais.

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