REVISITANDO: DEUX FILLES – SILENCE & WISDOM (1982)

A história impressiona.

“A curta e misteriosa carreira da dupla francesa Deux Filles é envolta pela tragédia. Gemini Forque e Claudine Coule se conheceram ainda adolescentes num feriado em Lourdes, no qual a mãe de Coule morreu, de uma incurável doença pulmonar, e no qual a mãe e o pai de Forque ficaram paralíticos num terrível acidente de carro. As duas adolescentes se uniram na dor e começaram a trabalhar com a música pra amenizar o luto. Entretanto, depois de gravarem dois discos aclamados pela crítica, tocando pela Europa e América do Norte, Forque e Coule desapareceram sem deixar vestígios durante uma viagem à Argélia, em 1984, onde Forque morou do nascimento até os cinco anos. Nos anos seguintes, não se soube delas, exceto por uma misteriosa carta supostamente escrita por Coule alegando que as duas viajaram até a Índia, num refúgio espiritual, apenas pra se ver em condições piores. Na verdade, as suas vidas curtas, terrivelmente infelizes, são a raiz de um fervoroso culto que surgiu após o desaparecimento delas. Mas a música, plácida, em grande parte instrumental, não oferece nenhuma ideia do quanto a tristeza emoldurava suas vidas pessoais”.

Esse texto entre aspas é bem conhecido e ilustra a maioria das matérias ou enciclopédias de música que falam sobre a dupla. Exatamente esse texto. É como um release, na verdade. Ainda bem que as mesmas matérias e enciclopédias na sequência já apontam que tudo não passa de uma mentira, uma história que a verdadeira dupla, Colin Lloyd-Tucker e Simon Fisher Turner, inventou pra dar força àquele som estranho e delicadamente bizarro que haviam criado.

Colin Lloyd-Tucker é Gemini Forque e Simon Fisher Turner é Claudine Coule. Na capa dos discos e nas fotos promocionais são os dois vestidos de mulher e devidamente maquiados, numa aura que remete ao fim do século XIX e começo do XX. Nas gravações, porém, suas vozes não são forçadamente femininas, eles nem se preocupam com isso. Nem uma dupla são de verdade: há mais gente na banda – e gente conhecida.

Apesar de ser a figura que deu liga ao Deux Filles (que quer dizer “duas meninas” em francês), não foi de Colin a ideia dessa bizarra história, mas de Simon. Colin disse em entrevista: “foi ideia do Simon que a gente se apresentasse como duas garotas, antes até de que gravássemos uma única nota, era um conceito solto. A história cresceu com o tempo e provavelmente ganhou fôlego com as músicas que criávamos. Eu entendi que se as pessoas achassem que aquela música vinha de duas garotas francesas mudaria a forma como elas perceberiam a música”.

A dupla lançou apenas dois discos, antes de desaparecer: “Silence & Wisdom”, de 1982; e “Duoble Happiness”, de 1983. Fez apenas um show, em 1982, em Londres, que Colin descreveu assim: “tocamos guitarra. Claudine tocou uma Telecaster e Gemini, uma Watkins Rapier, com uma unidade de eco Binson. Havia realmente duas garotas no palco dançando e simulando um piquenique, e um percursionista vestido como um chinês (Clive Bell). Além disso, um filme projetado e um cavalo de pelúcia. Esse show aconteceu em 2 de novembro de 1982″. Loucura geral, mas ninguém se deu conta nem da piada, nem da cascata.

Talvez porque a música era realmente boa, hipnótica, melancólica, envolvente. O duo criava climas dream pop, ambient, estranhos, e a audiência, com toda a mise-en-scène, não tinha como assimilar tudo.

Mas era mais diversão do que arte propriamente dita, de acordo com Colin: “era certamente uma brincadeira. Nós vestíamos o personagem e íamos às compras, ou tomar algo num bar. Nos divertimos muito. Muitos músicos podem dizer que o mais difícil é se livrar da vida lá fora, do seu eu por um tempo. Com o Deux Filles podíamos fazer isso, porque nenhum de nós era realmente aqueles personagens”.

Ouça “The Letter”:

Tudo começou quando Matt Johnson, o cabeça do The The, amigo de Colin, o apresentou a Simon na sede da Cherry Red, uma das gravadoras mais importantes da Inglaterra. Colin e Simon chegaram a fazer parte do início do The The, gravando alguns singles. Matt Johnson participa de “Silence & Wisdom”, bem como John Potter (produtor dos Smiths, Billy Bragg e Roxy Music) e Steve Sherlock (The The).

Ambos já eram bem entendidos dos bastidores da música. Colin gravou seu primeiro disco solo aos dezessete anos. De modo que essa experiência ajudou-os na hora de entrar em estúdio pra improvisar e finalmente compor o que viria ser a discografia da Deux Filles. Mas Simon admite que não é um disco espontâneo: muito trabalho teve que ser feito pra chegar ao formato final das canções.

Um importante lado da música do Deux Filles está no uso do reverb e do tape delay. É o que oferece o mistério que a música precisa. Colin e Simon reforçam isso, além da importância da literatura, pra criar as personagens e reforçar o clima que buscavam na sonoridade. Tudo casou com perfeição.

Ouça “She Slides”:

O disco é dividido em duas partes. O lado A é o “Lado Menino”. O lado B é o “Lado Menina”. Esse “conceitual” surgido pra reforçar ainda mais a ideia da teatralidade que a música impõe passou desapercebido. Isso porque, assim como a cascateira história trágica das duas meninas francesas, não era exatamente o mais importante.

“Silence & Wisdom” teve o mérito de ser realmente bom ao juntar climas etéreos (do que costumam chamar de “jeito 4AD” de soar), passagens indianas, toques de blues e experimentalismo. Parece trilha sonora de um romance triste qualquer. As personagens casaram perfeitamente, então era plausível acreditar naquilo tudo.

Obviamente, o disco não foi um sucesso. Não tem nenhum elemento que pudesse sequer cogitar ser um sucesso. “Só é música pop se for popular, e o Deux Filles nunca foi popular”, disse Simon, ciente de que criaram uma obra mais pessoal do que pra apreciação de outros.

O álbum foi lançado em 1982 pelo selo criado pela dupla, Papier Maché, e ganhou reedição dez anos depois em CD. É relativamente fácil de ser encontrado na Internet.

Colin Lloyd-Tucker tem um site oficial (clique aqui), que dá uma geral na sua carreira (bem por cima, é verdade), e uma página no Bandcamp, onde é possível sacar o que ele tá fazendo hoje em dia.

Simon Fisher Turner também tem um site oficial (clique aqui), que oferece uma área biográfica bem completa.

Após matar o Deux Filles, os dois lançaram mais um disco juntos, dessa vez com o nome de Jeremy’s Secret, “The Snowball Effect”, em 1984, seguindo a mesma linha sonora, um tanto mais eletrônica, porém.

Mas, como bem disse Ransom Stoddard, o personagem de James Stewart em “O Homem Que Matou o Facínora”, de John Ford, “quando a lenda é mais interessante que a realidade, imprima-se a lenda”.

É exatamente o que acontece aqui.

Ouça “The City Sleeps”:

LADO A (BOY SIDE)
1. The Letter
2. L’intrigue
3. Drinking At A Stream
4. Oakwood Green
5. Children Of Clay
6. Sur La Plage
7. Her Masters Voice

LADO B (GIRL SIDE)
1. The Draw In Room
2. She Slides
3. Fleur’s Dolls
4. Mortuary
5. The City Sleeps
6. Birds
7. Silence And Wisdom
8. Festival

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