REVISITANDO – MARTINHO DA VILA – EX-AMOR (1981)

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“Às pessoas sensíveis que um dia choraram. A todos aqueles que rezaram por mim e se preocuparam comigo na crise de saúde do ano passado e aos meus amigos em geral, em forma de música os meus sentimentos e todas as flores da primavera”, escreveu Martinho Da Vila, na contracapa de “Sentimentos”, disco de 1981.

Em 6 de maio de 1980, Martinho embarcava numa viagem de doze dias pra África, a convite do governo de Angola, com outros brasileiros, incluindo Chico Buarque, Dorival Caymmi, Edu Lobo, Clara Nunes, Miúcha, Francis Hime, Quinteto Violado, Elba Ramalho e Dona Ivone Lara – um time faria inveja a qualquer Lollapalooza. Nenhum deles cobrou cachê.

Não era a primeira vez de Martilho por lá. No começo dos anos 1970, ele esteve em Luanda e contou em texto à Folha de S.Paulo de 6 de outubro de 2018 (leia aqui) que “uma das apresentações foi no dia 7 de setembro. Eu, que fui sargento do Exército, dava muita importância a essas datas. Mencionei durante o show que aquele era o Dia da Independência no Brasil e disse ‘viva a liberdade!’. E acabou que isso deu uma confusão danada… [Angola só se tornaria independente de Portugal anos depois, em 1975]”.

Dessa vez, seria diferente. O país africano já mandava nas próprias pernas e sabia que tinha mais a ver com o Brasil do que com a ex-Metrópole. O resultado foi exaltado pelo próprio Itamaraty. O grupo de músicos conseguiu fazer em poucos dias, segundo o Jornal do Brasil, o que acordos culturais oficiais não conseguiram em anos de tratativas.

Na volta, entretanto, surgiu um boato de que Martinho estava doente, ou que havia sofrido um enfarte ou um derrame. “Nervosas, assustadas e temendo uma notícia grave sobre o estado de saúde de Martinho Da Vila, dezenas de pessoas se empurravam junto às portas de vidro da saída de passageiros dos voos internacionais do Aeroporto Internacional”, reportou o Jornal do Brasil de segunda-feira, 19 de maio de 1980. “Martinho José Ferreira, 42 anos, não teve nada além de uma estafa durante a turnê, o que o obrigou a abreviar sua apresentação, durante o último show, em Luanda”.

Foi Edu Lobo e sua esposa Vanda Sá que gritavam aos preocupados fãs e jornalistas: “apenas uma estafa!”. Clara Nunes, com mais calma, contou o que aconteceu: “ele teve uma estafa e, no último show, na Praça dos Touros, em Luanda, se apresentou antes de todos nós, ao invés de aguardar sua vez de entrada; foi medicado e fez uma viagem tranquila”.

Já Dorival Caymmi deu uma explicação, digamos, mais poética: “o que aconteceu é que o ritmo de vida lá era bem agitado; dormíamos tarde e acordávamos bem cedo; fizemos um trabalho diplomático muito bem recebido, o público era massa mesmo e nos recebeu muito bem”, disse, antes de completar: “Angola é uma delícia, se parece com a Bahia!”.

A esta altura, seguiu o Jornal do Brasil, Martinho Da Vila tinha embarcado na ambulância que o aguardava para levá-lo a um hospital em Botafogo. Dias depois, o músico já estava no batente de novo, pra promover o disco “Portuñol Latino-Americano”, e prometia uma folga, já que vinha lançando um disco por ano: “um disco por ano, há tanto tempo, é muita coisa”. Mas essa história não iria durar muito: no mesmo 1980, ele lançava um disco “Samba Enredo” e logo depois “Sentimentos”, justamente o que tem a dedicatória que abre este texto.

Ele dedica aos fãs que se preocuparam com ele na viagem a Angola, mas dedica também “às pessoas sensíveis que um dia choraram”. Somos eu, você e quem mais um dia teve alguma dor. Nada podia ser mais direto do que isso, como Martinho na verdade sempre foi.

Na análise primeira do álbum, destacava-se “Velha Chica”, a última do lado B, de autoria de Waldemar Bastos, artista angolano, ainda como fruto da última ao país africano. Outro destaque era “Graça Divina”, em parceria com Luiz Carlos Da Vila, em homenagem à escola que ambos carregam no nome, a Vila Isabel.

Todas as outras faixas receberam de alguma maneira uma menção nas críticas da época. Curiosamente, uma delas era frequentemente esquecida, “Ex-Amor”, de sua autoria, música que abria o disco.

Numa obra que fala de sentimentos (originalmente, o álbum se chamaria “Todos Os Sentidos”, pra embarcar também a alegria, por exemplo), amores perdidos e tristeza, “Ex-Amor” parecia a síntese perfeita.

“Sentimentos” foi produzido e arranjado por Rildo Hora, maestro que esculpiu o “jeito Martinho” de compor, atuar, cantar. E “Ex-Amor” é Martinho nessa essência.

A faixa fala, óbvio, de uma grande paixão frustrada: “ex-amor / gostaria que tu soubesses / o quanto que eu sofri / ao ter que me afastar de ti / não chorei / como um louco eu até sorri / mas no fundo só eu sei / das angústias que sofri”.

Foi definida como um samba de terreiro, “tipo samba antigo das quadras”, pela jornalista Cleusa Maria. “Com o disco, tem uma só preocupação: a de conseguir mostrar a outros o que se passa dentro dele mesmo”, escreveu.

Nela, Martinho é acompanhado de Manoel “Mão de Vaca” da Conceição e Rosinha de Valença (ambos no violão), Mané do Cavaco (cavaquinho), Everaldo Ferreira (bateria), Pastoras da Vila (no coro), além de Getúlio, Sereno, Belôba, Betão, Baiano, Nelsinho do Balanço e Carlinhos Pandeiro de Ouro (no ritmo).

“O artista tem a obrigação de passar adiante o que sente. Não pode dar apenas uma coisa que as pessoas estejam querendo. O bom disco é aquele que consigo realizar o que estava dentro de mim, quando o imaginei. O sucesso é consequência”, disse Martinho.

Mas com Martinho o sucesso é meio que natural. “Ex-Amor” foi sucesso nas rádios. E com “Sentimentos” na faixa das cem mil cópias vendidas, lá foi Martinho novamente pra Angola, esticando pra Nigéria, Moçambique e África do Sul. Mas agora de férias e com seu amor, Lícia Maria Caniné, a Ruça.

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