REVISITANDO: THE SPECIALS A.K.A. – FREE NELSON MANDELA (SINGLE, 1984)

Por mais bizarro que pareça, quando Jerry Dammers escreveu a canção que viria a ser “Free Nelson Mandela” (ou apenas “Nelson Mandela”), ele de fato nem sequer havia ouvido falar em Nelson Mandela.

Ele já tinha uma ligação com os sons africanos, mas era no âmbito da simpatia e meros exercícios pessoais. O Specials, sua banda de ska, formada em 1977, foi convidada a participar do festival African Sounds, no Alexandra Palace Pavillion, em Londres, quando do 65º aniversário de Nelson Mandela, que aconteceria no dia seguinte, em 18 de julho de 1983. Mandela já estava preso havia dezenove anos. Na audiência, brancos e negros gritavam “free Mandela”.

Dammers se espantou com a força do pedido da massa.

Mesmo já tendo conhecimento das atrocidades do Apartheid, Dammers nunca havia se deparado com o foco numa só pessoa em protestos contra o regime. Àquela altura, talvez Steve Biko fosse o grande nome daquela luta. Biko, morto em 1977 sob custódia da polícia, aos trinta anos, já virara música com Peter Hammill, Johnny Dyani, Steel Pulse e com Peter Gabriel, entre muitos outros. Era tratado como mártir, o que impulsionava seu mito.

Ouça “Biko”, de Peter Gabriel:

Ouça “Biko’s Kindred Lament”, do Steel Pulse:

Mas Mandela ainda era “ninguém” pra maioria das pessoas, mesmo vinte anos após sua prisão e todo seu histórico de militância, de luta pela democracia e direitos civis iguais, independente de raça.

Dammers também não conhecia sua história. Mas depois da emocionante demonstração do público no festival, ele recolheu-se por alguns dias e elaborou uma melodia simples baseada no coro de três palavras entoada pelo povo: “Free Nelson Mandela”, depois de perceber que só “Free Mandela” não dava liga.

Como diz Dorian Lynskey no livro “33 Revolutions Per Minute: A History Of Protest Songs, From Billie Holiday To Green Day”, de 2011, “se alguma canção de protesto pode dizer que teve um efeito palpável sobre seu assunto, essa canção é ‘Nelson Mandela’ (lançada como ‘Free Nelson Mandela’ nos Esteites)”. Ela não tirou Mandela da prisão diretamente – isso demoraria ainda seis anos pra acontecer – mas o próprio Nelson admitiu que ela teve efeito crucial em todo o trajeto de ideias e conscientização até o fato em si acontecer. “A música ajudou a fazer do Apartheid como uma das causas que definem os anos 80”, lembra o livro.

A Spin conta a história em toda sua extensão nesse brilhante artigo, como “um caso turbulento, envolvendo doença mental, paralisia criativa, dívida pesada, e uma linha musical prejudicial durante o qual Dammers viu-se no lado oposto a dois músicos sul-africanos negros que vinham lutando contra o Apartheid por décadas antes do festival no Alexandra Palace: Hugh Masekela e Miriam Makeba”. Vale ler, é uma aula de história política e social da África do Sul.

O ponto chave na virada pra Mandela acontece um pouco antes, em 1980, quando Oliver Tambo, o líder do Congresso Nacional Africano, principal organização sul-africana contra o Apartheid, jogada na ilegalidade desde 1960, junto com Mandela (que era líder do braço armado MK), elegeu Nelson como ícone – causas sempre necessitam de ícones – pra facilitar a compreensão do “primeiro mundo” sobre o grave problema em seu país. Era, inclusive, a primeira vez que muitas pessoas ouviram falar de Mandela. Foi quando cartazes “Free Mandela” tomaram as ruas de Londres.

O próprio Nelson Mandela chegou a brincar com a situação: “me disseram que quando os pôsteres tomaram Londres, muitos jovens acharam que meu nome de batismo era ‘Free'”.

Pode parecer estranho, mas quando Dammers escreveu a canção, o Specials havia terminado prematuramente e ele estava profundamente abalado com isso: “ele tinha montado às pressas umas nova banda com o nome de Specials A.K.A., e começou a trabalhar em um novo disco. Não foi uma boa ideia. ‘O problema era que eu fui direto pro estúdio, em vez de tirar um tempo para escrever as músicas’, diz ele. “É completamente a maneira errada de fazer isso'”.

O terceiro disco do The Specials, “In The Studio”, de 1984, foi todo gravado “em clima fúnebre”, por conta da tristeza prolongada de Dammers. Claro, pra um disco de ska, isso se revelou cruel em vendas. Mas especificamente “Free Nelson Mandela”, o single, se tornou bastante popular.

Ela foi a última música gravada. E era pra encerrar o disco. Acabou entrando ali no meio (encerrando o Lado A). Mas os problemas que cercaram os momentos no estúdio foram muitos. Um deles, envolvia o vocalista Stan Campbell. Dammers descobriu que ele sofria de um problema mental e estava sempre em atrito com o resto da banda. As vocalistas Molly e Polly Jackson foram descobertas pelo baterista John Bradbury num bar, mas não levavam aquilo tão a sério. Uma das vocalistas de apoio, Caron Wheeler, que viria a se destacar mais tarde no Soul II Soul, estava de olhos em outras oportunidades e via o Specials como um bico. Seu emprego mesmo era ser vocal de apoio de Elvis Costello.

E foi justamente Costello a quem Dammers recorreu quando a coisa estava degringolando: “tenho uma canção bacana que está mergulhada no caos, você pode me socorrer?”, teria implorado. Elvis Costello aceitou e virou o produtor do single.

Dammers disse: “eu estava desesperado pra gravar a música antes de tudo ir pro saco, porque eu sentia que estava fazendo algo importante (…). Terry Hall e Stan não são cantores virtuosos, então isso te força a criar coisas mais simples, o que é bom. E ‘Nelson Mandela’ não poderia ser mais simples do que é. Parte de sua força está nessa simplicidade, porque todo mundo pode cantá-la (…). A música soa como uma festa de rua. Por uma raiva que vira alegria, é a celebração da vitória antes dela acontecer”, diz o autor.

A matéria da SPIN conta que “Costello restaurou um pouco a sanidade no processo de gravação e tudo até que foi rápido, durando quatro dias. Dammers sabia que a canção podia ser um sucesso: ‘se não vingar nas paradas, é porque falhei’. Mas ela foi lançada em 5 de março de 1984 e logo atingiu o Top 10, embora o mais importante ainda estivesse por vir. Nem Dammers imaginava tal alcance. A música não só colocou Nelson Mandela na boca do povo, fazendo dele um mártir vivo de uma injustiça social sem precedentes naquele momento do mundo, como também colocou no centro das discussões o Apartheid, com os holofotes da reprovação virados pra África do Sul.

A missão de Dammers estava além do objetivo de um grupo pop. Ele havia criado um hino.

Mandela só se opôs, coerentemente, com um verso: “Shoes too small to fit his feet”. Não, ele não enfrentava esse problema na cadeia. Mas esse não era o ponto: ele não queria ser visto como um pobre-coitado por quem as pessoas deviam sentir pena. A questão era a campanha contra o Apartheid, causa pela qual Mandela, como disse à época de sua prisão, “daria sua vida pra acabar”.

O impulso criado pela canção deu ao mundo olhos mais atentos ao problema. Stevie Wonder, que ganhou o Oscar de melhor canção de 1985 por “I Just Called To Say I Love You” (do filme “A Dama De Vermelho, 1984), dedicou a estatueta a Mandela e acabou sendo declarado não grato pelo governo sul-africano. Wonder considerou a resposta sul-africana uma honraria.

Em 11 de fevereiro de 1990, Nelson Mandela foi solto. Ele ficou vinte e seis anos preso. Tornou-se presidente do país em um único mandato, de 1994 a 1999. Virou lenda, mito.

Um mito que só faz crescer a partir da sua morte, em 5 de dezembro de 2013.

Dammers pode, enfim, olhar pra história com a sensação legítima de ter contribuído. Ainda hoje, a canção serve pra chacoalhar o esqueleto, cantar a plenos pulmões e, além de tudo, deixar os olhos bem atentos contra as injustiças de homens contra homens.

Lado A

1. (Free) Nelson Mandela

Lado B

1. Break Down The Door!

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