REVISITANDO: THE TEMPTATIONS – BALL OF CONFUSION (THAT’S WHAT THE WORLD IS TODAY) (1970)

Quando as primeiras notas soam e os estalos de dedos se fazem perceber, os primeiros versos, “I’ve got sunshine on a cloudy day / When it’s cold outside / I’ve got the month of May / I guess you’ll say / What can make me feel this way”, já vêem à cabeça. Sabemos que se trata dos Temptations (ok, aquele filme fofo com o Macaulay Culkin ajudou um bocado).

“My Girl”, assim como “Just My Imagination (Running Away With Me), “The Way You Do the Things You Do”, “Get Ready” e “You’re My Everything” (entre outras), ficou como a marca do grupo na Motown: romântico, balançante, cativante, energizante. Eram os anos 1960.

No final da década, Norman Whitfield, aquele que moldou o “som Motown”, já começava a desenvolver o que seria o psychedelic soul, na forma que se ouviu nos sucessos que entregou ao Temptations, “Cloud Nine” (1968) e “Psychedelic Shack” (1969), com guitarras mais pesadas e suingadas, efeitos de sintetizadores, bateria e baixo marcantes e letras mais, digamos, adultas. Era funky, era de responsabilidade.

Mas o “falando-sério” daquele momento hippie-psicodélico ganhou sua melhor obra com o single “Ball Of Confusion (That’s What The World Is Today)”, com uma letra-protesto-política atirando pra todo lado, políticos, política, impostos, drogas, educação, guerra, religião, racismo… A lista segue por aí, numa discussão política como nunca havia sido visto na Motwon.

A criação, como de costume nessa fase do grupo e da gravadora, é de Norman Whitfield e Barrett Strong.

Metais, uma levada espaçada dos indefectíveis Funk Brothers e alternância nos vocais de Dennis Edwards, Eddie Kendricks, Paul Williams e Melvin Franklin criaram um certo espanto. Stevie Wonder fazia o solo de gaita. Aquela não era a banda de “My Girl” e “Just My Imagination”.

Mesmo assim, Whitield teve o cuidado de não pesar tanto a mão na letra, com medo de afugentar os ouvintes mais conservadores. Era protesto, mas era business e se protesto vendia à época (de Guerra do Vietnã), aqui estava uma das suas contribuições.

Um dos truques é dar ao ouvinte um desafio que funcionaria como nuvem de fumaça pra despistar do ponto principal. No caso, uma letra quebra-língua, de difícil interpretação e memorização. Trechos como “Segregation, determination, demonstration / Integration, aggravation, humiliation / Obligation to our nation”; “Eve of destruction, tax deduction / City inspectors, bill collectors / Mod clothes in demand, population out of hand / Suicide, too many bills / Hippies moving to the hills / People all over the world are shouting ‘end the war'”; e “Evolution, revolution, gun control, sound of soul / Shooting rockets to the moon, kids growing up too soon”; enumeravam os problemas latentes da sociedade estadunidense no final daquela década, e fortaleciam a letra, ao mesmo tempo que desafiavam o ouvinte a tentar cantar sem errar, sem trocar as palavras, sem se embananar.

Até mesmo o conjunto encontrou dificuldades em interpretar. Segundo Whitfield, Dennis Edwards era o intérprete com a dicção mais clara pra velocidade que a letra exigia em algumas passagens. E foi ele quem assumiu o desafio.

Funcionou. “Ball Of Confusion (That’s What The World Is Today)” foi gravada em dois dias, no estúdio Hitsville (na verdade, o quartel-general da gravadora) e um mês depois foi lançada com grande receptividade comercial, chegando ao número 3 da parada (número 2, na de R&B).

Ouça a original:

Mas o impacto comercial foi menor do que o futuro da música se mostrou, normalmente medido em citações posteriores e, homenagem das homenagens, as versões que conseguiu angariar anos depois. Uma delas, a de Tina Turner (com o synthpop do Heaven 17), ajudou a remoldar a carreira da artista, no início da década de 1980.

Muitos outros artistas refizeram a canção, com mudanças importantes. O Duran Duran foi um dos que resolveram recriá-la, pro seu disco de coveres, “Thank You”, de 1995, claramente um agradecimento às músicas que moldaram a personalidade da banda:

Curiosamente, a versão que mais se aproxima da original é do Anthrax, que entrou na coletânea “Return Of The Killer A’s”, de 1999:

Mas a melhor versão da música é da Love & Rockets, que modernizou a canção com uma batida forte eletrônica, um baixo matador, doses de guitarra cortante, efeitos de estúdio que ainda soam bem ok nos dias de hoje, pose pós-punk e mudanças na letra (por exemplo, sumiram com “more taxes will solve everything”; e “People all over the world are shouting ‘end the war'” virou “People all over the world are dying in the war”). O motivo? Não encaixava na nova versão da música. Whitfield e Strong estavam certos.

Pro Love & Rockets, a música foi seu primeiro sucesso. Tanto que as edições especiais de seus dois primeiros discos, “Seventh Dream Of Teenage Heaven”, de 1985; e “Express”, o clássico de 1986; ganharam a adição de “Ball Of Confusion”, sem o título entre parênteses.

E há a versão curta, com vídeo oficial, e a remixada (ainda mais matadora), respectivamente, abaixo:

O mais importante do single é ser um bom retrato de uma época em que Motown se mostrava suja, antenada com os problemas do mundo, estava inserida como parte ativa nos movimentos black, e experimentava o psicodelismo.

Embora o selo seja realmente importante pela construção de uma específica linguagem sonora e, paralelamente, o Temptations seja lembrado por algumas de suas baladas adocicadas, de sessão da tarde, “Ball Of Confusion (That’s What The World Is Today)” é um ótimo grito de protesto.

Lado A
Ball Of Confusion (That’s What The World Is Today)

Lado B
It’s Summer

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Comentários

comentários

Um comentário

  1. A Motown poderia estar antenada com os problemas do mundo, mas, no que dependesse de Barry Gordy Jr., todos esses problemas seriam minimizados em prol de sua ganância comercial.

    A grande sorte é que a gravadora tinha um cast impecável. E afrouxou as rédeas um pouco depois do lançamento deste single dos Temptations, com a recusa de Marvin Gaye de ceder àquela ‘música para apaziguar branquelos’ em “What’s Going On”.

    E, claro, Smokey Robinson como número 2 da gravadora sabia muito bem que as coisas não seriam as mesmas após os anos turbulentos pós-morte de Marthin Luther King Jr./Guerra do Vietnã/assassinato de JK. Nada haveria de ser o mesmo.

    O melhor é que os músicos da Motown souberam criar canções ainda melhores que nos ‘tempos bons’. Taí um grande exemplo.

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