SUME: O SOM DE UMA REVOLUÇÃO

A Groenlândia é um dos lugares mais “distantes” da Terra, mesmo pros seus vizinhos canadenses, islandeses, estadunidenses e noruegueses.

Conhecida como a “maior ilha do mundo” (se você não contar a Austrália, é claro), com uma área de dois milhões e duzentos mil quilômetros quadrados (pra se ter uma ideia do que é isso, o Amazonas, o maior estado brasileiro, tem um milhão, quinhentos e setenta mil quilômetros quadrados), ela tem 80% do seu território coberto por gelo, sobrando muito pouco pra fincar civilização e contar história. Mas esse pouco é suficiente, o bastante pra uma rica e incrível trajetória.

A Groenlândia fica no “topo do mundo”, bem próxima do Pólo Norte (que está no Oceano Glacial Ártico), e foi por muito tempo um pedaço do reino da Noruega-Dinamarca. Por conta do Tradado de Kiel, assinado em 14 de janeiro de 1814, a Noruega foi cedida à Suécia, como “pagamento de guerra”, e a Dinamarca ficou com a Islândia, as Ilhas Faroé e a Groenlândia.

Em 1948, as Ilhas Faroé conseguiram sua autonomia, mas ainda dependem economica e politicamente da Dinamarca. Já a Islândia conseguiu sua independência total em 1918.

Sobrou a Groenlândia.

A autonomia – e não a independência, que ainda não aconteceu – só veio em 1979. Entre outros acontecimentos, o que levou a esse status foi uma banda de rock, criada em 1972, em Sorø, Dinamarca: a Sume.

Sume quer dizer “Onde”, na língua da ilha, a kalaallisut (ou groenlandês). E foi justamente a escolha do idioma que fez a diferença pra essa banda, que logo seria conhecida internacionalmente.

Malik Høegh, o vocalista e guitarrista, fez questão de escrever as letras das músicas em groenlandês. Era um ato de afirmação política do então estudante em terras da rainha dinamarquesa.

Com ele, estava Per Berthelsen, também guitarrista. Juntos, com Hans Fleischer (bateria) e Erik Hammeken (baixo), se prostraram contra o que era conhecido como “dinamarquização” constante da cultura da Groenlândia.

Vale aqui um pouco de história.

O pós-guerra foi um período de constate investimento em infraestrutura na Groenlândia. Nas décadas seguintes a 1953, ano em que a ONU exigiu o fim das colônias mundo afora, a ilha conseguiu um incremento considerável no sistema educacional, por exemplo, a ponto de erradicar o analfabetismo. O problema é que as reformas promovidas pela Dinamarca envolviam o fechamento e deslocamento de algumas vilas, além da imposição do dinamarquês como idioma oficial, deixando o groenlandês em segundo plano.

Os antigos habitantes das vilas foram distribuídos entre as demais cidades, onde seria menos dispendioso pro reino oferecer-lhes habitação moderna e acesso a hospitais, escolas e comunicação. Era uma questão de povoamento e infraestrutura, mas, oras, era uma questão de colonização também.

Paralelamente, foi criado o Parque Nacional do Nordeste da Gronelândia, em 1974, ocupando mais da metade do território da ilha. É o maior parque nacional do mundo, mas nele não se pode construir, não se pode habitar. Foi mais um fator que forçou a migração pra cidades mais ao sul e na costa. A indústria da pesca também foi incentivada, mas oferecendo infra apenas nas cidades onde o governo dinamarquês achava que deveria oferecer.

Os inuítes – povo esquimó que habita a região desde sempre – pressentiu que essa “dinamarquização” estava matando a cultura secular deles. A insatisfação era crescente.

Por isso, quando a Sume resolveu compor em groenlandês, estava era dando um recado: “temos uma cultura e ela precisa ser preservada”. Era um reforço na ideia oposta, a de “groenlandificação” da cultura.

As letras de Høegh tratavam de temas da Groenlândia e, com metáforas e linguagem figurada, atacavam o imperialismo dinamarquês. Falavam de “revolução”. Falavam de “opressão”.

O selo Demos, de dinamarqueses socialistas contrários ao julgo da coroa sobre a ilha, resolveu gravar a banda e lançar o disco. “Sumut”, que saiu em 1973, quer dizer “Aonde”, e trazia na capa uma cópia da gravura feita pelo artista inuíte Aron de Kangeq (cujas histórias são ensinadas até hoje às crianças na Groenlândia), mostrando a figura lendária do Qasapi segurando o braço de um colonizador norueguês, como se dissesse “aqui não, aqui não!”.

A capa trazia uma dupla ideia de resistência: resgatava uma obra culturalmente importante pro povo da ilha, ao mesmo tempo em que conclamava uma resistência armada contra o imperialismo – algo impensável pelo povo inuíte historicamente pacífico.

O disco foi gravado em março de 1973 no Rosenberg Studio (o mesmo onde o Gasolin’ viria a gravar sua obra-prima “Gas 5”, em 1975). A produção foi de Karsten Sommer, um produtor dinamarquês que falava groenlandês e que viria se notabilizar por fundar a maior gravadora da Groenlândia, a ULO, em 1977 (o primeiro disco, o ULO1, inclusive, seria a reedição de “Sumut”). Tinha que ser ele.

“Sumut” se tornou o primeiro disco de rock, o primeiro álbum com guitarras, a ser inteiramente falado em groenlandês. Era, pra além da obra, um ato político.

E assim foi compreendido na ilha. O disco foi um sucesso. Em pouco tempo, vendeu dez mil cópias. Se você acha pouco, saiba que o censo de 2015 apontou uma população de cinquenta e cinco mil pessoas – em toda a Groenlândia! Isso quer dizer que um a cada cinco groenlandeses compraram o disco logo que ele saiu. Em termos de comparação com o Brasil, nessa proporção, “Sumut” teria vendido quarenta milhões de cópias.

Em termos de influência, também foi um sucesso. A partir daí, quase toda música lançada na Groenlândia era escrita em groenlandês. Com a Sume, a música se tornou uma ferramenta de apropriação da cultura local e um aviso ao mundo de que a Groenlândia existe, com história, cultura, civilização. O processo culminou na autonomia política da Groenlândia, que passou a ter seu próprio parlamento em 1979.

Além da língua, a banda também se apropriou de outros termos da cultura, como o uso de tambores inuítes e de expressões ancestrais.

A grande influência, que desencadeou o processo de “groenlandificação” local, inspirou quarenta anos depois o diretor Inuk Silis Høegh a contar essa história no cinema. O filme “Sumé – Lyden Af En Revolution” (ou “The Sound Of A Revolution”, ou ainda “Mumisitsinerup Nipaa” – ou “O Som De Uma Revolução”) conta a história da banda e do disco, entrevistando os principais personagens, além de pessoas influenciadas pela Sume.

O documentário, que data de 2014 e é uma co-produção entre Dinamarca, Noruega e Groenlândia, percorreu em 2015 os principais festivais de cinema do mundo, chegando até ao In-Edit brasileiro. A estreia comercial é agora em setembro de 2015. O site oficial do filme é esse aqui.

Esse é o trailer pro Festival de Berlim:

A Sume lançou apenas três discos na carreira. “Sumut” (1973) e “Inuit Nunnat” (1974), ambos pela Demos; e “Sume” (1977), já pela ULO. Ainda hoje é a banda mais famosa da Groenlândia – embora recentemente tenha surgido a Nanook, com seu pop adocicado, que vendeu mais de dez mil cópias no país (ouça aqui o sucesso “Ingerlaliinnaleqaagut”). Pra mais música pop da Groenlândia, vale ler esse artigo.

Os integrantes da Sume seguiram carreira na música e na política. Malik se elegeu deputado e ajudou a fundar a ULO. E Per Berthelsen fundou o Qilaat-music, um selo em Nuuk, capital da ilha, que acabou lançando outros nomes importantes da música local.

Você pode ouvir o disco na íntegra aqui:

As onze faixas do disco, uma mistura de rock progressivo com folk e música tradicional, têm lá seus atrativos. Mas a história social e política que envolve “Sumut” é mais importante do que o próprio conteúdo.

É música como uma ferramenta revolucionária. Música que, às vezes, só precisa ser escrita pra mudar mundo.

01. Pivfît Nutât / Nye Tider
02. Upernâk / Forår
03. Pilerinek-Tikínek / Forventning-Ankomst
04. Tamorassâriat / Den Første Bid Af Sælen
05. Ilivnut Pulavdlunga / Kravle Ind I Mit Indre
06. Erkigsinek Sapïnarama / Uro
07. Erkasûtekarnek / Bekymring
08. Heimaey Erkaivdlugo / Ode Til Heimaey
09. Imigagssak / Ildvand
10. Ukiak / Efterår
11. Nalunaerasuartaut Tokuvok / Telegrafen Er Død

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