TRÆNAFESTIVALEN – UMA EXPERIÊNCIA DE FATO

A viagem até o festival começa com você comprando os ingressos, é claro, mas se você não é da região, chegar a Træna (lê-se “Tréna” ou “Tráina”) pode ser um desafio incrível de logística e de planejamento. Entretanto, acredite, será uma das viagens mais divertidas que você terá. E o destino… bem, o destino lhe reserva ainda mais diversão.

O Traenafestivalen, que acontece anualmente na Noruega, em duas ilhazinhas ao norte do país, é o que se pode chamar de “experiência”. Esqueça o Rock In Rio. Esqueça o Lollapalooza. Esqueça os festivais europeus, como Leeds, Reading, o Primavera Sound. Esqueça o Coachella, nos Esteites. Experiência é isso aqui.

Pra chegar ao Traenafestivalen, há várias opções, mas todas elas passam por uma viagem por paisagens de cartão postal. O próprio festival instrui o visitante em detalhes como chegar lá, mesmo sabendo que a maioria do público é de pessoas da região. É que é realmente complicado. Vou tentar explicar pra você tentar entender o dificultômetro.

Você pode ir de trem. A Noruega é um país bem servido desse modal, mas as distâncias são enormes. Pense sempre em Oslo, claro, que é por onde você provavelmente vai chegar no país. Da deliciosa capital norueguesa (leia mais nesse texto aqui) até Traena são mil e cem quilômetros.

O primeiro passo é chegar a Trondheim. De Oslo até Trondheim, a terceira maior cidade do país (cento e oitenta mil habitantes), são quinhentos quilômetros e de Trondheim é que sai a Nordlandsbanen, ou a “Linha Nórdica”, a linha de trem mais longa do país, com quase oitocentos quilômetros de extensão. Com ela, você pode ir até o ponto final, em Bodø, e pegar o ferry boat pra lá ou você pode parar em Mo I Rana, duzentos quilômetros antes, que é o que a maioria faz.

De Mo I Rana, é preciso pegar um ônibus até a cidade portuária de Stokkvågen, a setenta quilômetros dali, onde há barcas e lanchas expressas (as mais rápidas, que levam três horas de travessia até as ilhas de Husøya e Sørsanna, onde acontecem as apresentações). Esse é o tipo de barco que pode te levar pra lá.

Já de avião, é possível ir até Sandnessjøen (uma hora e quarenta de voo), Brønnøysund (quase a mesma distância), Bodø (uma hora e meia) e Mo I Rana (duas horas) e seguir viagem por barco. O mais apropriado é ir até Mo I Rana e dali pra Stokkvågen.

A paisagem de trem é convidativa, mas nada vai superar o vento geladíssimo do passeio pelo Mar da Noruega. Aqui, você está numa latitude dois graus acima da Islândia e a luz, a vegetação, tudo é diferente. Você está no Círculo Polar Ártico. É literalmente uma… experiência.

O Traenafestivalen surgiu em 2003, quando Erlend Mogård-Larsen resolveu se enfiar em mais uma roubada. Ele é um sujeito inquieto, promotor constante de uma série de eventos que vão desde bicicletadas pelo país até festivais de música (o mais famoso é esse aqui).

Ao site norueguês Ballade, Larsen explicou: “sempre quis fazer um festival em Traena, desde que eu era criança. Tenho raízes familiares lá. Era um desejo de fazer algo por aquele lugar, que é um dos pontos mais bonitos do mundo. É um lugar perfeito pra um festival, ele já tá pronto, está tudo lá”.

A comuna de Traena fica no condado de Møre Og Romsdal, ao norte da Noruega. É composta por mil ilhas montanhosas, das quais só quatro são habitadas: Husøya, Selvær, Sørsanna e Sandøy. Há mais ilhas e barcos do que habitantes no local. O censo de 2017 mostrou que moram ali apenas quatrocentas e sessenta e cinco pessoas. Isso, menos de quinhentas pessoas. Sanna, na ilha de Sørsanna, um dos locais onde acontece o Traenafestivalen, moram apenas seis pessoas. Nem sete, nem cinco: seis.

Com um inverno extremamento rigoroso, mar muitas vezes agitado o suficiente pra fazer com que a pesca se torne proibitiva, e quase nenhuma alternativa, a população da região acabou abraçando o Traenafestivalen como uma opção de renda. O festival vende no máximo dois mil e trezentos ingressos (mais do que isso seria insanidade logística e ambiental), de modo que durante o evento, Traena simplesmente quadruplica sua população.

“Nos meses de inverno, quando o tempo é tão ruim que as balsas que fazem a ligação com o continente não chegam por semanas, por conta das grandes ondas, esse lugar fica isolado”, contou Larsen ao mesmo Ballade. “É bem difícil viver num lugar assim por tanto tempo. Mas agora é completamente diferente. Há muito mais atitude positiva hoje em dia. A maioria das pessoas de Traena estão envolvidas com o festival, como um projeto coletivo onde todos trabalham juntos e isso ajuda na motivação. Teve pescador que disse que o festival foi a melhor invenção local desde a invenção do anzol”.

Os ingressos pra edição de 2017 custaram NOK 1320, ou US$ 166, ou R$ 520. Embora caros, esgotam-se em segundos, antes mesmo de qualquer nome da escalação ser divulgado, e mesmo assim não pagam a estrutura toda.

O festival tem um alto custo. O maior deles é justamente os cachês, mesmo abaixo do preço de mercado, além do transporte de artistas, pessoal técnico e equipamento. Comida (basicamente peixe e frutos do mar) e mão-de-obra são locais (há voluntários vindos de outros países também), o que ajuda a baratear um pouco. Patrocinadores e o próprio governo norueguês são os grandes fomentadores do festival. Se em 2005, o ministério da cultura deles deu NOK 50.000 (cinquenta mil coroas norueguesas, o equivalente a seis mil e trezentos dólares), em 2008 esse valor pulou pra NOK 200.000 (ou vinte e cinco mil dólares). Hoje, o valor é o triplo. Fechando a planilha, a organização diz que o lucro anual é de no máximo NOK 100.000 (ou US$ 15.000). Pelo menos não fica no vermelho, apesar dos pesares.

Questionando ou não essa afirmação (tanto trabalho por tão pouco!), o fato é que o Traenafestivalen é um sucesso. Desde 2008, a organização passou às mãos de Anita Overelv. Esse foi o ano em que a escalação foi mais inchada, chegando a ter desde o Kings Of Convenience até a banda carioca de reggae Ponto De Equilíbrio.

Aliás, o festival sob o comando de Overelv tentou nomes maiores internacionalmente, saindo da preferência por artistas noruegueses. Ali se apresentaram Damien Rice, Timbuktu, Mano Chao, Charli XCX, First Aid Kid, Neneh Cherry & The Thing, Spiritualized, Jens Lekman etc.

Em Husøya, o festival acontece numa igreja e num descampado com um palco montado sem muita pirotecnia. O vento é um grande problema pra estabilidade de som, mas ninguém parece se importar muito, já que estar ali parece ser o grande barato. Já em Sanna, a cidadezinha de seis habitantes, não há palco, mas uma caverna, onde os músicos se apresentam.

O Guardian, quando esteve lá em 2008 a convite do festival, começou sua impressão assim: “Cerca de mil fãs estavam aninhados entre rochas e grama verdejante quando Damien Rice tomou o palco. ‘Acho que tenho uma visão muito melhor do que vocês’, disse. Damien provavelmente estava certo: os barcos de pesca se moviam no porto cintilante sob uma encosta florida de flores selvagens, enquanto, em um oceano surpreendentemente azul, ele podia ver o Glaciar Svartisen no horizonte. Rice estava indiscutivelmente tocando no festival de música mais remoto do mundo – estabelecido em um grupo de ilhas à deriva no oceano Ártico (quer dizer, no Mar da Noruega). Ele estava tocando numa caverna”. Na verdade, ele estava na Kirkhelleren, uma catedral natural nas montanhas, com acústica perfeita.

Tudo parece anestesiar os aventureiros clientes do festival. Apesar dos percalços, a paisagem e o sol que nunca se põe – o festival acontece em julho, no verão local, época em que o sol quando se vai o faz por apenas uma hora, entre as três e quatro da manhã – são atrativos suficientes pra fazer valer a pena. A estrutura e conforto são mínimos. Não há obviamente hotel pra todos. Os moradores alugam quartos e os preços podem ser proibitivos, de modo que a maioria acaba acampando pela ilha mesmo. Não é barato estar ali. O custo médio da travessia num mar agitado que faz muita gente ficar enjoada é, pasme, R$ 190,00. Uma cerveja (normalmente Heineken) custa R$ 25,00.

Nada ali é gratuito. As crianças locais ganham dinheiro levando a bagagem dos visitantes em carrinhos improvisados, enquanto os ilhéus que não se voluntariam a trabalhar no festival vendem alcaçuz, pipoca e bebidas pelas estradas ou transportam o público de uma ilha pra outra em seus barcos.

Richard Hawley, que tocou em duas edições, disse que pro músico estar ali é como estar de férias remuneradas. Desestressa. “Os festivais britânicos parecem ser sobre muitas pessoas pagando pelo privilégio de serem presos em um campo e comercializados”, disse. “Eu sei que o Traenafestivalen é patrocinado por essa marca, por aquela e pela aquela outra, mas não tem esse senso corporativo todo”. A comparação vale, lógico, pros maiores festivais brasileiros, como o Rock In Rio e o Lollapalooza, cujas “experiências” são construídas por marcas e não pelo local ou pela música em si.

Mas, por certo, toda experiência é uma experiência diferente e tem um preço. Estar no festival mais remoto do mundo é uma daquelas nenhum outro festival pode superar. Mesmo que no resto do ano o sol quase não brilhe, quando ele brilha é pra lavar a alma.

Aqui, um documentário sobre o festival pra ver a montagem da estrutura e o impacto na vida das pessoas locais:

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