PENSE OU DANCE: SPOTIFY X BANDCAMP É A LUTA DOS NOSSOS TEMPOS

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Daniel Ek, CEO do Spotify, recentemente, deu uma declaração que não deveria mais espantar ninguém, porque ele é a cara desse negócio singular e tão maléfico quanto eram as gravadoras grandes até os anos 2000.

Uma negócio que se importa com o dinheiro e mais nada. O música é a ferramenta. A música é só um número – e quanto maior a quantidade, melhor.

Segundo Ek, os músicos na era do streaming não podem “gravar música uma vez a cada três ou quatro anos e pensar que isso será o suficiente”. Ele disse tal barbaridade em uma entrevista recente ao site Music Ally. Seu comentário irritou muitos músicos e retomou as frustrações sobre o quanto o Spotify paga aos artistas.

“A verdade é que há mais relacionamentos sendo formados com mais artistas”, disse Ek, achando que boletos se pagam com isso.

Especialmente em um mundo em plena pandemia, onde ser mais conhecido te coloca os mesmos limites que há pra artistas não conhecidos, já que ninguém vai conseguir tocar ao vivo com a frequência da pré-pandemia e precisa se virar de outra forma – lives patrocinadas, apresentações para pessoas em automóveis ou cercadinhos, publicidade etc., é isso que sobrou da vantagem dos mais conhecidos e populares.

A visão de Ek é a visão de um publicitário, que tem falas harmônicas, mas zero profundidade ou conteúdo.

“(Aumento do relacionamento) é algo que nos é próximo e querido há algum tempo: está na missão de nossa empresa permitir que mais artistas vivam de sua arte, e isso realmente está acontecendo com os números. Mais e mais artistas estão avançando em grande estilo, causando impacto e criando novos relacionamentos com os fãs”, disse ao Music Ally.

E vale perguntar o que quer dizer “causando impacto” e “criando novos relacionamentos com os fãs” na prática. Isso paga a conta de água, do aluguel, o supermercado?

Ek sugeriu que em comparação com dez, quinze anos atrás, “o consumidor médio tem gostos muito mais diversos: por meio de vários gêneros, e eles conhecem muito mais artistas”. De fato, um fato, como se diz, mas que pouco quer dizer de prático.

Não dá pra negar que serviços como o Spotify e o Deezer ajudaram artistas com contrato assinado e ter menos prejuízo com a pirataria. Mas os artistas que não têm ligação nenhuma com o negócio, seguem na mesma, com a diferença que ajudam a engrossar um catálogo que quanto maior e mais amplo, melhor pro marketing dessas empresas.

Só quem ganha mesmo são essas empresas.

Em 2020, mais do que em qualquer outro ano desde o lançamento do Spotify, houve uma onda de músicos falando publicamente sobre seus royalties de streaming não serem suficientes – incluindo uma campanha no Reino Unido (#BrokenRecord) que voltou atenções não apenas para serviços de streaming, mas pra selos e estruturas mais amplas da indústria, diz o Music Ally.

“Existem duas tendências diferentes que valem a pena destacar”, disse Ek. “Percebemos que muitos artistas foram impactados em curto prazo pela Covid-19 e o impacto que isso tem na indústria de shows. Como você sabe muito bem, grande parte da renda que os artistas estão recebendo pré-Covid-19 vem de turnês e apresentações ao vivo. Muitos artistas estão lutando por causa disso”, admitiu.

“Hoje em nosso mercado, existem literalmente milhões e milhões de artistas. O que tende a ser relatado são as pessoas que estão infelizes, mas muito raramente vemos alguém que está falando sobre. Em toda a existência do Spotify, acho que nunca vi um único artista dizendo ‘estou feliz com todo o dinheiro que estou ganhando com o streaming'”, continuou.

Mas, segundo Ek, “há uma falácia narrativa aqui, combinada com o fato de que, obviamente, alguns artistas que costumavam se dar bem no passado podem não se dar bem neste cenário futuro, onde você não pode gravar música uma vez a cada três ou quatro anos e pensar isso vai ser o suficiente”.

Ora, Ek, como todo CEO, disse isso sem ficar enrubescido simplesmente porque não está lá muito preocupado com os artistas. Ele tem acionistas pra cuidar.

Em janeiro de 2020, pré-pandemia, a empresa alcançou US$ 50 bilhões em valor de mercado. No segundo trimestre de 2020, entrou no caixa do Spotify US$ 1,889 bilhão.

Uma ação da companhia hoje vale US$ 288. No primeiro pregão do ano, em 2 de janeiro de 2020, valia US$ 151,62. É um aumento de 89,94% – a Deezer não é uma empresa listada em bolsa.

Em outras palavras, enquanto os artistas lutam por centavos, os acionistas a quem Ek tem que dar satisfação estão ganhando 89,94% mais do que ganhavam em janeiro. E sem compor uma nota sequer, nem hoje, nem três ou quatro anos atrás.

Ok que a empresa nunca pagou dividendos aos acionistas, mas um dia vai fazê-lo.

Certamente, esses acionistas não estão encontrando muita dificuldade pra pagar as contas durante a pandemia.

“Os artistas de hoje (devem) perceber que se trata de criar um envolvimento contínuo com seus fãs”, ressaltou Ek. “É sobre colocar o trabalho, sobre a narrativa em torno do álbum e sobre como manter um diálogo contínuo com seus fãs”.

Com 89,94% a mais, é fácil pedir pros outros terem paciência e sustentar uma “narrativa” em torno do seu trabalho.

Diante dessa inacreditável visão, Damon Krukowski, músico (Damon & Naomi, Galaxie 500), escreveu pra NPR um artigo comparando o Spotify e o Bandcamp. Segundo ele, são dois ecossistemas totalmente diferentes. E são mesmos.

“Spotify e Bandcamp não poderiam ser mais opostos”, começou. “Onde o Spotify destaca listas de reprodução, na maioria das vezes de sua própria criação, Bandcamp foca no álbum (ou qualquer outro formato, conforme determinado pelo artista)”.

O Floga-se segue numa tradução macarrônica, mas que dá pra entender o ponto de Krukowski: “enquanto o Spotify paga royalties de acordo com fórmulas pouco conhecidas que só podem ser analisadas por cálculo reverso, o Bandcamp permite que artistas e gravadoras escolham seus próprios preços”.

“Onde o Spotify requer trabalhar por meio de um número limitado de distribuidores pra acessar seus serviços, o Bandcamp está aberto a todos”.

“Onde o Spotify tem fluxos de receita dependentes de anúncios e dados, o Bandcamp opera em uma divisão de receita simples com artistas e não coleta informações sobre seus usuários”.

“O Spotify agora vale bilhões de dólares no mercado de ações, apesar de nunca ter apresentado lucro anual. O Bandcamp é uma empresa privada, está no azul desde 2012 e continua a crescer… lentamente”.

“Você pode ficar tentado a dizer que um é um negócio do século 21 e o outro pertence a uma época anterior. Mas nenhum dos dois poderia existir em qualquer outro momento”, escreveu, certeiro.

O que levanta a questão: nosso mundo de negócios do século 21 realmente tem que ser tanto como o Spotify, e tão pouco como o Bandcamp? Krukowski falou com o CEO e co-fundador do Bandcamp, Ethan Diamond, pra tentar entender melhor como e por que sua empresa faz negócios da maneira que faz.

Dada a diferença de comportamento do Bandcamp em relação a uma startup típica, ele fez uma pergunta fundamental a Diamond: o Bandcamp é um negócio digital?

Houve uma longa pausa. “Sim, não tenho certeza”, disse Diamond.

“Eu penso no Bandcamp como uma companhia musical em primeiro lugar, porque eu penso em quem nós servimos antes de mais nada como o artista. E a maneira de melhor servir os artistas passa a ser por meio da tecnologia, um modelo particular de tecnologia no qual nosso negócio se baseia”, ele seguiu.

“Mas definitivamente somos – sem dúvida – diferentes de muitos negócios digitais. Quer dizer, a missão da empresa é, eu acho, bastante única… Há uma ótima história sobre como Prince estava trabalhando em sua autobiografia pouco antes de morrer. E ele havia escolhido um co-escritor e em um de seus primeiros encontros ele disse: ‘Música é curativa. Escreva isso primeiro’. Ele disse que queria que fosse o princípio norteador usado no livro. E se você começar com essa ideia de que a música é curativa, esse é obviamente um poder que deveria estar nas mãos de todos que têm o talento pra exercê-lo. E isso é o que o Bandcamp é. É isso que eu sinto que estamos aqui pra construir – esse sistema. E a maneira de fazer isso é garantindo que os artistas sejam remunerados de forma justa e transparente por seu trabalho. E isso é através do apoio direto de seus fãs”.

Há uma diferenciação importante aqui: Daniel Ek entregou sua “estratégia de áudio prioritária”. Ele usa “áudio” em vez de “música” porque o podcasting se tornou um elemento importante da estratégia do Spotify.

O que poderia ser um canal importante pra criadores de conteúdo, coloca mais pulgas atrás da orelha dos músicos.

Ek quer só que as pessoas acessem o Spotify (e, obviamente, paguem religiosamente todo mês por isso). Se vão escutar algo, o problema não é de Ek.

O Spotify não é uma “empresa de música em primeiro lugar”, como Diamond descreve o Bandcamp, porque a música desempenha um papel apenas na medida em que as pessoas passam parte de seu tempo ouvindo, e o Spotify quer todo o seu tempo.

O que realmente vem em primeiro lugar pro Spotify é a competição – a empresa está focada em eliminar outros lugares pra gastar tempo ouvindo… qualquer coisa.

Se for pra ouvir o atleta Joe Rogan – agora contratado exclusivo pelo Spotify com seu podcast, supostamente por mais de US$ 100 milhões – então é Joe Rogan. E Joe Rogan é tudo, menos curador. Na verdade, a saúde claramente não tem nada a ver com isso. Como Ek deixa claro, até mesmo a pandemia pode ser aproveitada pela estratégia do Spotify, assim como a morte de um meio existente pra música, o “rádio linear” (mais conhecido como “rádio”).

O único artista que Ek gostaria de ajudar, de fato, é o artista que detém ações do Spotify. Mas pagando a miséria que ele paga em seu serviço, provavelmente muito poucos artistas terão acesso a suas ações caríssimas.

O que nos traz de volta ao anti-Spotify. Está se tornando mais comum, escreve Krukowski, especialmente entre as bandas mais jovens, evitar o Spotify e postar seus arquivos de música digital exclusivamente no Bandcamp.

Mas é um substituto? Aparentemente, pros mais jovens, ou pros não-aficionados por música, o Bandcamp não é uma alternativa, porque “não é streaming“, embora seja e embora tenha aplicativos pra celulares (que, puxão de orelhas aqui, é um péssimo aplicativo). O problema é que o streaming é álbum por álbum, em vez de lista de reprodução.

Então, Krukowski fez outra questão básica para Ethan Diamond: o Bandcamp é um serviço de streaming?

Sua resposta surpreendeu o jornalista. “Não”, disse ele. “Não penso nisso como um serviço de streaming. Considero-nos uma loja de discos e uma comunidade musical. A principal diferença é que somos uma forma de apoiar diretamente os artistas que você gosta de ouvir. Sabe, metade dos as vendas no Bandcamp neste momento são de produtos físicos. O digital também teve um crescimento muito forte. E quando você compra digital no Bandcamp, o que você está comprando é o acesso. Então você pode baixar um download – você sabe, lá são pessoas que querem obter o arquivo de alta qualidade – mas você também pode fazer streaming através de nosso aplicativo, sem limites, uma vez que você comprou a música. Mas sim, eu não penso em nós como um serviço de streaming. Definitivamente”.

Porque uma vez definido pelos gigantes como o Spotify o que é um serviço de streaming, isso é que será um serviço de streaming. E, de fato, o Bandcamp não está nessa categoria, o que o afasta de qualquer tipo de concorrência, a ponto de Ek, provavelmente, nem mesmo se preocupar com o Bandcamp.

A diferenciação do articulista da NPR é perfeita no entendimento da sutileza: “o Bandcamp faz streaming de música – ainda vou dar o mesmo argumento para aqueles que me dizem que não – mas está tão longe da missão do serviço, que nem mesmo entra na visão de Diamond. Simplificando: o streaming não oferece suporte a artistas. Portanto, embora o Bandcamp faça streaming (veja, estou com esse argumento de novo!), Não é assim que ele apóia os artistas. É disso que se trata”.

“Outro aspecto impressionante pra resposta de Diamond é a conexão do Bandcamp com bens físicos”, salientou Krukowski. “É um negócio apenas digital: não tem depósitos ou serviço de entrega, como a Amazon. Mas o Bandcamp permite que os artistas recebam pedidos de bens físicos que eles podem atender da maneira que quiserem – de suas casas, de gravadoras ou distribuidores, ou de serviços de mercadorias de terceiros. O Bandcamp simplesmente fica com uma participação de 10% na receita dessas vendas. Pra bandas, é um pouco como montar uma mesa de produtos em um local virtual”.

Em resumo, é aquela banquinha que os artistas montam em seus shows. Mas uma banquinha virtual.

“Mas se metade da receita do Bandcamp vem de produtos físicos, é uma plataforma digital?”, pergunda Krukowski.

“Definitivamente, começou como uma plataforma digital”, diz Diamond. “Em 2007, quando começamos a empresa, o streaming não existia nos Estados Unidos e nossa concorrência era essencialmente a pirataria. E a ideia em 2007 era principalmente que ninguém pagaria mais pela música. E parecia muito óbvio pra mim que se você gosta de alguma música de um de seus artistas favoritos, você deve ser capaz de apoiá-los diretamente. E então construímos a plataforma pra fazer isso. Meu ponto de referência pra isso eram os serviços de blogue. Em 2007, você tinha o Blogger, Typepad, Movable Type, serviços que eram essencialmente como serviços pra escritores – você poderia criar um site em minutos e aproveitar essa relação direta com seus leitores”.

“A indiferença de Ethan Diamond com o tempo e o dinheiro gastos pelos usuários fora de sua plataforma seria um anátema para Daniel Ek”, escreveu Krukowski. “Tenho certeza de que qualquer funcionário do Spotify que sugerisse que seus usuários simplesmente digitassem no Google teria suas mesas limpas no final do dia. As diferenças são tão extremas que o Bandcamp pode não ser apenas o anti-Spotify; pode estar operando em um mundo totalmente diferente. Perguntei a Diamond com quais empresas digitais ele sente uma afinidade agora, da mesma forma que fazia com os serviços de blogue quando começou a empresa. Ele não soube dar uma plataforma musical sequer”.

Simplesmente porque não há nada como o Bandcamp.

Mas citou a Etsy, uma plataforma de comércio eletrônico pra itens basicamente de artesanato.

“Eles conectam compradores e vendedores, mas não estão tentando criar produtos concorrentes”, explicou Diamond. “Acho que eles oferecem a todos nessa plataforma um acordo justo. Eles cresceram e se tornaram uma grande empresa fazendo isso, e acho como todas as empresas, eles tiveram seu quinhão de críticas. Mas acho que é provavelmente o mais próximo (ao conceito do Bandcamp)”.

Krukowski, como músico, encerra seu artigo comn uma visão clara do ambiente atual: “a música como artesanato, como indústria caseira? Esse pode muito bem ser o futuro pra muitos de nós na profissão. Em minha própria carreira, que começou no final dos anos 1980, o tipo de música que toco passou da subcultura pra ala ‘alternativa’ do mainstream e agora está de volta, ao que parece, pra subcultura. O Spotify foi construído pra uma economia de escala: ele precisa e deseja ocupar todo o tempo de todos. Minha música e o meio de que faz parte nunca foram pensados pra esse ambiente – eu me preocuparia com quem não ouvisse outra coisa! Nós, como cantou Brian Wilson, não fomos feitos pra estes tempos?”.

“O contra-exemplo do Bandcamp sugere que o problema que eu e muitos músicos na minha situação enfrentamos não é sobre a era digital em si. É possível construir um tipo diferente de ambiente pra música online, um ambiente que as subculturas possam reconhecer como seu e talvez até usar pra prosperar. Ou curar, pelo menos, enquanto sonhamos com novas maneiras de nos conectarmos uns com os outros no século XXI”.

É a luta dos nossos tempos.

Enquanto o Spotify representa a concentração de renda e tudo aquilo que um mundo mais justo tenta combater, o Bandcamp, em tese, representa esse “mundo justo”. Corporações e o capitalismo destrutivo contra um capitalismo mais humanista.

A gente sabe quem já ganhou. Mas enquanto houver luta, na luta estaremos.

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