A MÁRTIR DOS DOWNLOADS

No estado de Minnesota, Esteites, fica uma pequena cidade de pouco menos de quatorze mil habitantes chamada Brainerd. Tem o que quase toda cidade estadunidense desse porte tem: um bom centro de compras, lanchonetes de fast food, tranquilidade e, nesse caso, um certo apelo turístico, por conta das corridas de arrancada, que ali acontecem o ano inteiro.

Barinerd também foi cenário de algumas filmagens do clássico dos irmãos Coen, “Fargo”, de 1996.

Não há muito o que dizer de uma cidade tão comum quanto essa, a não ser que ela é também a residência de Jammie Thomas-Rasset.

A senhora Thomas-Rasset ficou conhecida como uma vilã virtual das mais perigosas. Isso segundo a indústria musical.

Em 2011, ela foi considerada culpada de fraude e violação dos direitos econômicos (não autoriais), após denúncia da RIAA (Recording Industry Association Of America, a associação que defende os direitos da grande indústria da música nos Esteites, com tentáculos mundo afora), por ter compartilhado, em 2004, vinte e quatro canções no KaZaA.

Sua punição veio em números: oitenta mil dólares por canção baixada, totalizando o valor de 1,92 milhão de dólares. Isso a título de “perdas comerciais”. À época dos downloads, uma canção no iTunes custava US$ 0,99. Numa conta rápida, pra Thomas-Rasset gastar os quase dois milhões de dólares impostos pela Justiça, ela precisaria ter baixado pouco mais de dois milhões de músicas. Em 2004, a dona-de-casa usava uma conexão de 256kps, o que, pra causar tal prejuízo alegado pela indústria, ela levaria perto de três anos baixando música direto, vinte e quatro horas do dia, os sete dias da semana.

Mas ela precisava “servir de exemplo”. Essa era a política da indústria à época. Ao invés de ir atrás dos verdadeiros piratas, aqueles que vazam os discos e compartilhavam por aí, resolveu ir atrás de “gente comum”, que provavelmente nem tinha ideia do tipo de crime (ou até mesmo ser era crime) que estava cometendo.

Jammie é um bom caso dessa política desastrosa. Ela é mãe de dois filhos. Mãe solteira. Tem um emprego regular. Não sabia o que era um IP, mexia num computador como qualquer pessoa comum, mandando e recebendo e-mail, acessando sites de notícias e, na era do boom do MP3, baixando músicas eventualmente.

Mas era um período em que a indústria enxergava nos balanços quedas atrás de quedas das vendas. Em 2005, era o quinto ano seguido de resultados que apontavam apenas pro fundo do poço.

Mesmo após ter derrotado o Napster, anos antes, a indústria se via ainda mais perdida, com nascimento de outros sistemas de compartilhamento. Corta-se uma cabeça, aparecem duzentas no lugar: KaZaA, Gnutella, Grokster, Morpheus, Soulseek, a lista é imensa. Trocar e compartilhar arquivos digitais, de música incluídos, era o grande barato e a grande descoberta social do início do novo século.

Achou-se que era uma boa ideia ir atrás dos consumidores “comuns” que passaram a baixar (e compartilhar) música gratuitamente. Em 2005, as gravadoras lançaram processos contra 7.437 usuários de sites de compartilhamento, suspeitos de dispor sua biblioteca musical pra download de outros usuários.

A maioria desses serviços de compartilhamento tinha uma função que liberava a biblioteca pessoal pra acesso de outros usuários. Você determinava qual pasta o serviço podia disponibilizar e as músicas ficavam visíveis pra outros escolherem e baixar. Era uma ferramenta “socialmente requerível” no mundo virtual. É dando que se recebe, uma prática que vale aqui. Ou seja, não eram compartilhadores contumazes de música, apenas que a circunstância tecnológica os faziam ser (alguns provavelmente nem sabiam desabilitar a função de compartilhamento automático).

A ideia das gravadoras era dar um susto. Mostrar que era crime o ato de baixar e compartilhar. E, claro, conseguir uma grana.

Mas a tática não parecia muito boa. A própria RIAA alertava seus associados. A grana recuperada por esses processos mal cobriria os custos legais, e o susto faria as pessoas migrarem pra sistemas mais seguros, pois anônimos, como o BitTorrent ou o Pirate Bay.

E não era uma tática muito popular. O caso de Sarah Ward, uma aposentada de 66 anos, avó, foi contundente. Ela foi acusada de dar prejuízo de milhões de dólares por baixar rap hardcore pelo KaZaA. O KaZaA era um programa que só rodava em Windows e Ward tinha um Mac em casa. Mesmo assim, com todas essas evidências do absurdo, ela foi processada.

O modo de operação era o mesmo que aconteceu em 2005 com Jammie Thomas-Rasset. Ela conta que recebeu pelo correio uma carta imponente da Shook, Hard And Bacon, uma firma de advocacia, cujo conteúdo era grande enigma pra ela. Havia um telefone pra ela ligar e foi o que a mãe de família fez.

Do outro lado da linha, os advogados queriam falar com ela sobre o KaZaA. “Eu disse, ‘que diabos vocês estão falando?'”, contou ao repórter Nick Pinto, do City Pages, de Minneapolis, no famoso artigo “Jammie Thomas-Rasset: The Download Martyr”, de 16 de fevereiro de 2011, no qual este artigo do Floga-se se baseia. Os advogados só lhe diziam que eles sabiam muito bem que ela estava compartilhando arquivos no KaZaA – “e eu não fazia ideia do que o KaZaA era”.

A negativa de Jammie parecia parte do roteiro esperado pela firma. Não importou a alegação de ignorância no caso. Uma empresa de investigação chamada MediaSentry, contratada pela RIAA, não só sabia o que era o KaZaA, como alegava que o IP de Jammie foi usado pra compartilhar música, umas 1.700.

Pra simplificar o processo – note esse detalhe – a RIAA limitou a acusação a duas dúzias de canções, uma lista eclética que incluiu “Pour Some Sugar On Me”, do Def Leppard; “Don’t Stop Believin'”, do Journey; “Now And Forever”, de Richard Marx; “Run Baby Run”, da Sheryl Crow; “Basket Case”, do Green Day; e “Welcome To The Jungle”, do Guns N’ Roses, o que parecia até um prenúncio que estava por vir.

Após informar a senhora Thomas-Rasset sobre a acusação, o próximo passo seria o acordo, e ele era tão inacreditável quanto a própria acusação: tudo poderia ser perdoado, deixado pra lá; ela só precisava pedir desculpas publicamente, prometer que nunca mais cometeria o mesmo erro e, claro, preencher um cheque de alguns milhares de dólares.

“Quando ouvi a proposta, fiquei como… ‘o quê?’… Soou como uma extorsão”, disse, na mesma matéria.

Então, Thomas-Rasset tomou uma decisão que nenhum outro dos acusados pela RIAA tomou: se recusou a pagar. Até porque não tinha tal grana. E porque não conhecia as consequências.

A lei federal estadunidense permite a indenização de até US$ 150 mil dólares por violação, de modo que as suas 24 canções poderiam chegar a US$ 3,6 milhões, caso ela fosse considerada culpada.

Ela não se intimidou. Com a ajuda de seu pai, levantou uma grana pra pagar os honorários de um advogado e foi pra cima. Mas claro que ela perdeu.

Richard Gabriel, o advogado principal das gravadoras, tinha um caso bem montado, com provas de que os downloads foram realizados pelo IP da acusada. Já o advogado dela até tentou criar o que se chama de “dúvida razoável”, termo segundo o qual um acusado não pode ser condenado. E se Thomas-Rasset estivesse usando um roteador wireless e alguém de fora usou sua conexão? E se alguém hackeou sua conta? Tal linha de defesa já havia sido usada em outras defesas de casos semelhantes.

Mas a prova estava no nome do usuário do KaZaA, Tereastarr. O advogado das gravadoras provou que o endereço de e-mail dela sempre foi Tereastarr, ela usava tal codinome em compras online, incluindo em grandes varejistas. Ela usava também pra jogar videogame online. Ela usava esse nome pra tudo.

Mesmo assim, ele não tinha como provar que alguém, mesmo ela disponibilizando tais 24 músicas em compartilhamento no KaZaA, tenha baixado uma única música sequer. Isso porque a arquitetura do programa, quando o usuário não desabilita a função de compartilhamento, faz com que qualquer coisa naquela pasta virasse alvo de compartilhamento. Se lá tivessem fotos dos batizados das crianças, elas também estariam disponíveis pra download aos outros usuários. Como saber quem baixou o quê dela?

Pra indústria, tal argumento era inútil: se deixou disponível pra download de outros, mesmo que ninguém tenha baixado os arquivos, já se configurava crime. Foi esse o entendimento do juiz e foi assim que o júri acabou sendo instruído.

Enquanto o júri deliberava, Thomas-Rasset e seu advogado foram almoçar algo. Depois de quatro horas, o telefone do advogado tocou. O júri havia chegado a uma decisão. “A princípio, achamos que era um bom sinal que o júri não tenha precisado de muita deliberação”, disse ela.

Mas ao voltar pro tribunal, o otimismo se transformou em choque quando o júri leu o veredito: culpada. Sem um precedente ou conhecimento de caso, os jurados estavam livre pra determinar a pena monetária por cada uma das 24 canções, tendo que definir um valor entre US$ 750,00 e US$ 150.000,00. Sem nenhuma explicação, determinaram o valor de US$ 9.250,00 por música, totalizando US$ 220.00,00. Era uma quantia ínfima perto do máximo que poderia chegar (US$ 3,6 milhões), mas ainda era uma baita soma.

Na saída do tribunal, tal e qual um filme de Hollywood, com o advogado vencedor dando entrevistas triunfantes, com lições de moral, e repórteres batendo no vidro fechado do seu carro, ela ficou imaginando como pagar esse valor, como se safar dessa.

“Eu pensava: ‘vou perder minha casa, vou perder meu carro, vou vender tudo, eles ainda vão pegar meu salário todo, vão tirar tudo de mim. Como vou sustentar meus filhos’?”, disse. “Eu estava arrasada. Não podia parar de chorar. Senti que toda minha vida tinha ido pro buraco”.

A vitória da indústria era um prato cheio pra imprensa: peite a indústria e você pode se ver pendurado num gancho, devendo um quarto de milhão de dólares.

O mais importante é que o caso abriu um importante precedente legal que poderia fazer casos futuros serem mais fáceis de ganhar: de agora em diante, a indústria não precisava mais provar que alguém baixava músicas que outros compartilhavam. Bastava compartilhar. Bastava ter no computador e permitir que outros tivessem acesso.

Mas o caso de Thomas-Rasset não entrou pela história por conta dessa derrota. A senhora da pequena Brainerd foi a primeira a não desistir e a primeira a lutar contra a indústria. Quase todo mundo que recebeu a mesma carta ameaçadora dos advogados da RIAA naquela época entrou num acordo com a indústria ao invés de ir ao tribunal.

Thomas-Rasset estava certa de que não havia feito nada de errado e se recusou a se render. Era algo inesperado na tática adotada pela indústria. Uma briga nos tribunais poderia, enfim, custar mais do que os meros US$ 23,76 (com cada canção custando US$ 0,99 no iTunes) de “prejuízo” que os compartilhamentos de Thomas-Rasset poderiam causar (caso ninguém baixasse os arquivos, e mesmo se alguém baixasse essa era uma linha de acusação que a indústria sabia que não podia seguir). Poderia custar bem mais.

Em setembro de 2008, pouco mais de um ano depois do veredito, o juiz do caso, Michael James Davis, mudou de ideia sobre o argumento principal da acusação, de “deixar disponível” pra download, e que ele mesmo usou pra instruir o júri. Se as companhias quisessem um tostão de Thomas-Rasset, teriam que processá-la de novo.

Enquanto isso, com deflagrações de prisões dos verdadeiros piratas mundo afora e a má propaganda que o caso tivera na opinião pública, a RIAA já se questionava se processar os fãs de música era uma boa estratégia a se seguir. E a essa altura do campeonato, a RIAA já havia enviado cartas ameaçadoras pra mais de trinta mil pessoas. Algumas delas pra garotinhas de doze anos. Outras pra pessoas que já estavam até mortas. Era um desastre total no quesito relações públicas.

Em dezembro de 2008, RIAA decidiu não mais processar usuários individuais.

Mas o caso de Thomas-Rasset estava em aberto. Em maio de 2009, a RIAA encontrou Thomas-Rasset pra uma audiência preliminar. Mas nenhum dos dois lados estava disposto a recuar. O caso iria a julgamento novamente.

O advogado dela se retirou do caso porque Thomas-Raset não poderia pagar suas custas, que já chegavam a US$ 130 mil. Pra ele, se tornou “insustentável” continuar.

Entraram no caso dois advogados iniciantes e ultra-conservadores do Texas, Joe Sibley e Kiwi Camera (um garoto-prodígio que se tornou o mais jovem a se formar em Harvard, aos 19 anos). Eles ofereceram seus serviços gratuitamente.

“Estávamos só começando, então é justo dizer que a publicidade desse caso poderia ser uma paga melhor do que ela podia nos dar em dinheiro”, disse Sibley.

Eles mal puderam se preparar pro caso. Tiveram que se arriscar. E se não podiam usar como argumento o fato de que alguém invadiu a rede de Thomas-Rasset, iriam argumentar que alguém próximo dela é que baixou as canções e não ela.

No depoimento dela diante do júri levantou-se a possibilidade de um ex-namorado ter cometido o “crime” ou até mesmo um dos filhos dela, que tinham 10 e 8 anos à época. Todos conheciam sua senha e usuário. Havia muita coisa ali na conta do KaZaA que ela mesmo nem curtia. Aquele lance metal e industrial, como Ministry, Morbid Angel, Covenant, era mais ou menos o tipo de música que o ex-namorado dela curtia.

Mas ficou a sensação de que Thomas-Rasset estava fazendo qualquer coisa pra se safar. Até mesmo mentir. No julgamento anterior, ela nunca havia mencionado tal ex-namorado. E a RIAA também provou que logo após ela ser notificada, Thomas-Rasset simplesmente trocou seu HD na Best Buy e mentiu dizendo que aquele era o único no seu computador à época.

Mais uma vez, ela se deu mal e o júri foi mais implacável no veredito. Agora, cada uma das 24 canções custaria US$ 80 mil, totalizando US$ 1,92 milhão de dólares, mais de nove vezes o valor do primeiro veredito.

Mas agora a indústria não comemorou, nem deu longas entrevistas com lição de moral. Por outra, deixou bem claro que queria resolver o caso sem sair como vilã. Pra Thomas-Rasset, o que estava ruim agora beirava o absurdo, o pesadelo.

“Não podia acreditar. No começo eu ficava bem deprimida. Mas depois era até engraçado. Como eles fariam pra conseguir tanto dinheiro de mim? Eu jamais vou ter tanto dinheiro a minha vida inteira”.

O juiz Davis concordou que o júri extrapolou. Em janeiro de 2010, ele exerceu seu poder de ajustar o montante. Chamando o valor de “monstruoso e chocante”, ele estabeleceu a multa de US$ 54 mil. E deu uma semana pra RIAA decidir se poderia viver bem com tal quantia.

A RIAA parecia ainda mais flexível e tentou um novo acordo com Thomas-Rasset, e por um valor ainda menor: US$ 25 mil.

Mas, creia, ela não topou. E tinha um bom motivo pra isso.

“Não quero fazer um acordo com essas gravadoras. O que elas estão fazendo com esses processos é errado. Eu falei com meu pai a respeito e ele me aconselhou a lutar pelo o que eu acho que é correto”, justificou-se.

Então, lá vai ela contra a RIAA num terceiro julgamento. Mas dessa vez a questão não é se ela cometeu o crime alegado, apenas qual será o valor da indenização.

Em novembro de 2010, o novo julgamento começou. A dupla de advogados argumentou que os tipos de indenização que a indústria estava procurando eram draconianos, especialmente se considerar-se que as canções em questão poderiam ser compradas por meros US$ 24,00. A intenção de punir com altas quantias deveria ser imposta a quem viola os direitos autorais e faz dinheiro com isso.

O advogado da RIAA contra-argumentou dizendo que Thomas-Rasset deveria assumir responsabilidade pelos seus atos e que as indenizações visavam proteger o negócio da música.

Jammie perdeu mais uma vez. Agora, cada música passou a custar US$ 62.500,00, totalizando US$ 1,5 milhão. “Antes mesmo de anunciarem o veredito, e já levei minha mão à boca. Não importa o montante da indenização, eu sabia que iria rir”, disse.

O juiz Davis mais uma vez reduziu o montante pra US$ 54 mil, em julho de 2011. Em setembro de 2012, a Corte de Apelação restituiu o primeiro veredito, de US$ 220 mil (leia aqui). Thomas-Rasset não desistiu. Apelou pra Suprema Corte, em 2013, mas seu recurso foi recusado (veja aqui).

Ela perdeu julgamento após julgamento e levou tudo a um cenário curioso. Mesmo perdendo e devendo milhares de dólares que nunca vai conseguir pagar, Jammie sabe que no fim ela venceu. É por conta da sua insistência e do quão mal o caso ficou pra indústria, que a RIAA desistiu de processar usuários comuns. Fora isso, o processo pra própria RIAA custou muito mais do que o primeiro veredito, que acabou sendo acatado pela Corte de Apelação. Nem financeiramente o caso valeu pra RIAA, nem como exemplo pra outros usuários.

“Mesmo se eu nunca vencer em nenhuma instância, eu terei parado a extorsão deles em cima de avós e garotinhas de 12 anos. Eles iam continuar fazendo isso até alguém revidar. Eu revidei”, diz com orgulho.

A insistência dela e de gente como o co-fundador do Pirate Bay, que criou a incrível máquina de cópias infinitas, capaz de destruir o argumento no qual se baseia qualquer valor de qualquer indenização da indústria (leia mais aqui), é que faz a batalha atingir pé de igualdade. De um lado a força econômica, lobista, política e midiática, do outro a força da lógica de que contra o tempo e a tecnologia não se luta. Quem tentar, está se recusando a ver o presente e o futuro, está ficando pra trás.

Por conta disso, sendo “culpada” ou não, é que Jammie Thomas-Rasset mereceu o título de a “mártir do download“. Ela perdeu pra todo mundo – usuários, indústria e tecnologia – pudesse seguir em frente.

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