ÁCIDAS: O REMÉDIO IMEDIATO

Talvez não haja uma só pessoa que não conheça um relato de alguém que tenha sido ameaçado por um eleitor de Jair Bolsonaro. Na conhecida teoria dos seis graus de separação, não deve dar nem dois graus. O próprio editor deste site conta seu caso no Facebook (leia aqui). Comigo mesmo ainda não aconteceu. Mas não duvido de nada.

Apesar de branco e com meus privilégios históricos (já contei essa história aqui), tenho minha cota de alvo de preconceitos: bissexual e apreciador de uma ou outra substância não-legalizada. Os eleitores do dito cujo poderiam facilmente me espancar numa esquina qualquer. Nunca se sabe. Ainda bem que isso nunca aconteceu. Mas um episódio de abuso já vi de bem perto.

Em uma das agências de marketing que presto serviço (não cito o nome, nem sob tortura), um colega de trabalho me contou o motivo de ter sido demitido. Ele foi com uma camisa vermelha com uma estrela no meio… do Estrela Vermelha de Belgrado! O cara é colecionador das mais inusitadas camisas de times de futebol e calhou de um dia ir à agência com essa. Quando apareci pra reunião, ele não estava lá. Disseram-me que ele havia sido mandado embora.

Achei estranho, mas nem tanto. Horas depois, ao ouvir dele mesmo o motivo, liguei os pontos. O dono da agência é um boçal playboy (é o pai que montou a agência pra ele) que não se cansa de alardear piadas racistas, homofóbicas e machistas. Piadas que quase ninguém ri. Nem por educação. No dia da camisa do Estrela Vermelha, meu colega foi alertado em tom jocoso que na agência “não são permitidos bandidos petralhas comunistas” – sabe-se lá o que essa maçaroca quer dizer. Ele não é nem petista, nem comunista, nem bandido.

Ao ouvir isso, sorriu. Era o patrão. Mas o pleiba resolveu tirar onda o dia inteiro, comunista pra cá, capacho do Lula pra lá, até que ele não aguentou e emendou: “pelo menos não sou hipócrita e demagogo”. A agência, ele me contou, ficou muda, em silêncio. Suspense. O patrãozinho fez cara de indignado e pediu pra ele repetir. “Não sou eu que paga de homem de bem, mas tem amante e sonega imposto”. Pegou pesado, ele mesmo admite, afinal ter amante é um problema que só concerne a quem tem e mais ninguém. Já sonegar imposto…

O patrão subiu o tom e mandou ele à merda, com direito a todo tipo de piadinhas e ironias. “Vagabundo” pra baixo. Meu colega saiu de lá como se tirasse um peso das costas. Falou que ia pra Justiça e o ex-patrãozinho ainda disse que a “Justiça do trabalho já ‘era nossa’, dos homens de bem, de quem ‘investe’, e vagabundo não ganhava mais nada lá”. O clima ficou pesado.

Tudo por causa de uma camisa de time de futebol confundida com um adversário político do patrão. E o patrão, no grupo de trabalho no Whatsapp, que enfim era pra ser apenas de trabalho, fica mandando as notícias falsas denegrindo o partido, com as mais absurdas mentiras e teorias bizarras de conspirações. Vi algumas delas e confesso que seriam risíveis se não fosse assunto bem sério.

Saímos pra beber. Um ombro amigo nunca é demais nessas horas, embora seja muito difícil dizer alguma coisa certeira nessas horas. Incentivei que ele entrasse na Justiça, alguém haveria de querer testemunhar a favor, mesmo nos tempos obscuros atuais. Ele tava revoltado, não lhe tiro a razão. Nos dias bicudos de hoje, disse a ele, nada melhor do que beber e ouvir música.

Indiquei um disco ou outro, mas ele falou que um único disco o acalmava, o distraía nesses dias que sucedem a demissão. Our Girl, “Stranger Today”. Fiquei naquela dúvida. Só de pedir pra ele explicar do que se tratava, já tirava o foco do abuso que ele havia sofrido. Ao colocar o trabalho no celular pra eu ouvir, fiquei surpreso e entendi perfeitamente o motivo dele se distrair com a obra.

Our Girl é um trio de Brighton, Inglaterra, formado em 2014 por Soph Nathan (vocal e guitarra), Josh Tyler (baixo) e Lauren Wilson (bateria), e faz uma música bem aconchegante: guitarras barulhentas por trás de um vocal preguiçoso e melancólico. O disco é o primeiro do trio, tem onze música deliciosas, pra esquecer qualquer problema, especialmente “Josephine” e “Two Life”, além das popzinhas “In My Head” e “I Really Like It” (aparentemente o sucesso do grupo).

Soph Nathan já tem lá seus trinta e um anos. Não é mais nenhuma jovenzinha em busca de diversão. Tem contas pra pagar. A sorte dela é viver num país que embora dividido (o Brexit abriu fissuras profundas na Inglaterra) ainda se mostra mais justo do que na republiqueta das bananas e dos “homens de bem”.

Ao ouvir o pop bem despretensioso do Our Girl, lembrei que de fato ouvir música é único remédio imediato contra a estupidez humana. Ainda mais música escapista. Vale pra toda arte (cinema, especialmente), mas as doses ministradas pela música nos fazem crer que o ser humano pode dar certo. Alguns, talvez, não tenham mais jeito, só se importam consigo mesmo ou com os seus, e o resto que se dane. Pra cada idiota desses, há alguma mente criativa inventando algo que nos trará de volta à humanidade.

Não podemos perder a esperança de se feliz de novo e sempre.

01. Our Girl
02. Being Around
03. In My Head
04. I Really Like It
05. Josephine
06. Two Life
07. Level
08. Sub Rosa
09. I Wish It Was Sunday
10. Heat
11. Boring

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