OPIUM DEI – OPIUM DEI

“A maior tragédia humana é a própria humanidade. A sua relação com o poder. A capacidade de ser o seu próprio deus e o seu próprio demônio. A traição disfarçada de moral mata jovens inocentes em nome da família tradicional. O amor não existe neste espectro. É só moeda de troca, possessão. Antes era o medo do caos. O preço de ser livre era mais alto do que a inveja de ver o outro livre. Fizemos um pacto. De sangue, de cor. Esquecemos de assinar na última linha. No fim da linha. Agora o futuro dos seus filhos depende da morte dos meus. Ou vice e versa. Todos morrem. O herói, o bandido, a mocinha, o rei, a rainha, a puta que o pariu. O caos nunca saiu de cena. Está sempre nos movendo através da história. Esse é o ponto: assumir a tragédia é uma evolução”.

O balanço de “Milk Shakespeare”, a sirene ao fundo, o alerta. As frases de Claudio Cox, megafone ampliando o espanto, retratam o Brasil pós-2013, pré-1964. O caos nunca saiu de cena. Ele estava adormecido. Ele está sempre se movendo através da história, explorando os mesmos medos de quem tem privilégios a defender e não vê motivos pra compartilhar.

“Na sua casa não há onde cuspir a não ser na sua cara. Mas o desejo sempre foi o inimigo número um da liberdade. Por isso nós continuamos sendo amigos primitivos. Fingindo que não existe nada entre a vontade e a necessidade de ser o que realmente
somos. O que realmente somos? Não há nada mais cruel do que esse punhal contra o próprio peito. Que afundamos um pouco a cada dia. Dóis demais. Não sangra e nem cicatriza. Será que ninguém consegue sentir o que o outro sente? É muito mais fácil suportar a dor apenas de um lado. Quanto custa uma vida honesta? Quanto tempo você estaria disposto a pagar por uma vida honesta? Algumas horas do seu natal, talvez. Um carinho impiedoso, uma abraço falso e alguns trocados. O tempo não é moeda, honestidade não é produto. Pobre diabo dançando a música dos deuses pagãos. Na sua casa não há onde cuspir a não ser na sua cara. Na minha ainda temos um chão. Onde você pisa. Eu me lembro de você, filho da puta”.

Nos privilégios, esquece-se do próximo, do amigo, do familiar. São todos filhos da puta esperando a desgraça do próximo pra sublinhar seu próprio triunfo. A honestidade não é produto, nos lembra Cox, por cima de um baixo suingado e distorcido matador. Os “Amigos Primitivos” não são amigos de verdade, separados pelo ódio, muitas vezes alimentado apenas de um só lado e corrompendo o outro. O abraço é falso.

“A pressa é inimiga da presa. Não há paisagem devastada a continentes. De distância que diminua minha culpa diante. Da esperança dos joelhos cansados. Movimento repetido. Cordialidade com o inimigo pra preservar. A espécie alheia a todos os acontecimentos. Da minha existência. Do dente de leite. A reprodução do mesmo. Um menino acostumado com enchentes. Que vem do céu. Pode muito bem crer. Que a bosta que boia no seu quarto. É um presente do papai Noel. O cheiro do feijão misturado ao cheiro de bosta. Me faz salivar. Por tudo que é fast. Por tudo que é truque”.

A primeira parte a la Fausto Fawcett de “Fast Truque” ataca o capitalismo predatório que levou a humanidade à odiosa fragmentação. Cordialidade com o inimigo é diplomacia tanto quanto subserviência. Desde pequenos, desde sempre, aprendemos a abaixar a cabeça e mantê-la assim.

“Nós só temos um caminho. E não temos atalhos. Somos pássaros mortos. Amarrados em postes. Observando por cima dos muros. A cidade dos sonhos. Ainda confusa de tanta luz. Propagandas de cigarro. Não pode mais. Os carros ainda estão liberados. Nas ruas e mentes. O atraso é casual. Agora você pode ouvir aquela sua música preferida. Enquanto atropela aquele velho que atravessa devagar a avenida. Atrapalhando o fluxo. Pode ser uma criança. Tanto faz. A morte também é casual. Anestesia é só pros ricos. Porque a dor não é igual. Felicidade é a ausência da dor. Felicidade científica. As mesmas dores para todos. Seria uma bela propaganda. Dor nas cores. Preto e Branco. A branca é mais cara. Antiterror”.

Mas a briga continua. “Antiterror”, anti-opressão. A maioria não tem atalhos na vida e já nascem mortos, zumbis vendo a vida dos outros passar alegremente. É tudo sonho, não é? De repente, sua vida pode ser abreviada por algum playboy inconsequente bêbado, ouvindo o último sertanejo da moda dessa semana, dirigindo o carro de não sei quantos cavalos a atropelar sonhos que nem existem mais – ou que são abreviados diariamente. Se todos tivessem as mesmas dores, teríamos uma sociedade mais justa, porque lutaríamos por felicidades semelhantes. Mas o antiterrorismo de querer igualdade pra todos vira o terrorismo daqueles que não desgrudam dos privilégios que herdaram ou conquistaram.

“As grades são de aço. Os homens não. Isto é um assalto. Contempla. Com os olhos vidrados. 2018. New nazis on the block. Óleo na pista. Quebrou o pescoço, boca e nariz. Sorriu sem dentes. Caixão lacrado. Com supremo, com tudo. Empoderados uni-vos. Acreditem que por um segundo estão seguros do Domínio Público. Do domínio Público. Ratos”.

Ninguém aguenta levar tanta porrada por tanto tempo. Ou sucumbe ou se rebela. O ódio não é repentino, ele é alimentado. Em “Domínio Público” é possível ver o óbvio: no final todos morrem e viram pó, violentados por uma sociedade que nem sociedade é, é uma caixa com todos os males suplantando a virtudes. Ainda há esperança?

“O morro não desceu. Escorreu. Foi só o sangue. Só o pó. Gang Bang. Subiu. Antena de TV. Cabos e fuzil. Raiô Silver. Metralhadora de plástico. Alemã ou de Israel. Dança, vagabundo. Aqui é terceiro mundo, caraio. Manhattan de barraco. Mata-mata. Sexo mercadológico. Esse é o país que deu certo. Errado. É pau. É pedra e cachimbo. No meio do caminho. Terceiro milênio. Aceita. A seita. Todos juntos numa só voz. Pra frente, Brasil. Pixote vs Godzilla. Os meninos na rua. Os meninos da rua. Na prisão invisível da liberdade. Mata-mata”.

Aqui é o terceiro mundo, porra! Claudio Cox parece desalentado diante da realidade. Teria ele sucumbido? “Mata Mata” é regra numa sociedade sem regras definidas por uma maioria, mas leis feitas pra garantir o de poucos. O resto é que se exploda. Vamos consumir os ideais de além-fronteiras, mas obrigando a ser patriotas, porque é o patriotismo que canta de galo. O desalento não dura muito. A música explode em muitos ruídos e samples. A vida é um caos e pra maioria é só uma série de tropeços, muros e desilusões.

“Segura a sua onda. Esse mar afoga. Esse mal é foda. Atinge o alvo. Atinge o atro. Quantas vezes mais. Quantas luzes mais. O silêncio deixou um vácuo. E por ele entraram muitas vozes. Que não são minhas. Que não são suas. Nem de ninguém. Apenas ruídos sem donos. Revolto. Qualquer tamanho de dor. Precisa ser medido. Compassos calados. Frio na espinha. Distorção. Estamos todos juntos. Na solidão dessas nossas ideias. Preciso de um teto. De aço. Impenetrável. Infalível como a minha mãe. São tantos dias pra se viver. Não admitiremos cansaço. Não admitiremos pessoas sem boa aparência. Com erros. Filhos e cachorros. Pessoas. Preciso de um chão. Pra deitar. Agora. Vou escrever uma frase com tinta spray. No muro do seu otimismo sem cor”.

Da vontade de dizer ao artista: não, não desista! A batida jazzística de “Distorção” é como um pano de fundo pra uma perseguição. Você está tão perdido que não acha uma saída. Você grita. Outros gritam e você não ouve. Não há união. Não há irmãos. A gente se une nas redes mas está separado ainda mais. E lutam pra nos manter separados. Mesmo assim você é obrigado a lutar e, de alguma forma, achar que pode vencer. O belo é imposição. Só que não há como distinguir nada no “muro do seu otimismo sem cor”. Perdemos.

“Estou pronto para escrever alguma merda enquanto Marvin perde a cabeça na TV. Isso poderia ser apenas mais um conto, mas as teorias sempre falam mais alto quando um preto perde a cabeça… Não foi acidente!!! Não foi legitima defesa!!! Quem era o suspeito?!! Um par de tênis. Medo de assalto. Cordão de ouro. Carro blindado. Um saco preto. Um corpo dentro. Os pretos morrem, os brancos assistem. Os brancos morrem, os pretos enterram. Os brancos morrem, os pretos matam. Os pretos morrem, os brancos atuam”.

Rodrigo Carneiro assume o palanque em “Blaxxxploitation”. É pra gritar mais alto. A massa sonora por trás é caótica, uma guitarra gritante, barulhos, ruídos, distorção. Não é por acidente. Nossa gente periférica, com menor acesso à oportunidades, é que se fode sempre. E a culpa é só dessas pessoas. Não é do sistema. A divisão está em todo lugar, principalmente no medo. Uns têm medo de que lhe tomem objetos, outros têm medo de que lhe imputem a culpa. É a vida e a morte lado a lado e ninguém tá nem aí.

“Máquinas de lavar ligadas no volume máximo. Dentro todas as frustrações do mundo moderno. As coisas não são mais como antes. Lavamos a roupa suja da alma na rua. Virtual. Mas por que nos importamos?! O fracasso é mais limpo. Seu cu é mais limpo. Na sua casa ninguém vê você com medo. Com frio, com fome. Foda-se! Todas as razões não enchem um pinico. Autodescontrole. Ultradesconto. Um soco na cara do mais fraco é um sintoma do pós aborto. Você pagou as suas contas. Mas deve toda a vergonha do mundo. Isso não significa nada. É papel passado. Não se aprende na escola. Os dias chuvosos são a minha glória. Cadê seu deus agora?! Tá na carteira?! No bolso de trás da calça suja?! Encare como quiser. Não faça sua as minhas palavras. Foda-se! O fracasso é mais limpo. Seu cu é mais limpo”.

O clímax está em “Máquina De Lavar”, Claudio Cox assumiu o foda-se. Todas as frustrações do mundo moderno cabem numa só ilusão de que podemos achar alguém que nos salve ou podemos ficar isolados sem que reparem nossas falhas e medos e decadência. O fracasso não exposto é o fracasso não percebido. Mas você vai gritar suas razões do alto dos seus privilégios e nunca vai ter razão, porque a história conta a realidade. A história não é interpretativa. Ela aconteceu e se você quiser distorcê-la, a vergonha é toda sua. Os negros não escravizaram os africanos. O nazismo não foi de esquerda. A ditadura militar brasileira existiu e foi cruel. Nada disso vai ser alterado pelas suas verdades sujas e incapazes. Cox não se importa com você. Ele tá certo. Por isso grita um “foda-se” de megafone no talo. Seu Opium Dei é mais limpo que a consciência dos ignóbeis. Seu Opium Dei é mais potente que o ódio que os imbecis jogam no mundo virtual.

O Opium Dei joga na sua cara a mensagem pós-2013 que você devia ouvir.

Não, eu não esqueci de “Trabalho Sujo”. Listando palavras e localidades sociais, Claudio Cox despreza a formalidade. “Automático. Eletrônico. Doméstico. Domesticado. Eletrocutado. Automatizado. Patrão de qualidade. Patrão de qualidade. Trabalho sujo. Trabalho nulo. Rebola em cima da máquina. Rebola em cima da caixa registradora. Até o chão. Debaixo da terra”. Simples, direto, um resumo perfeito de tudo o que foi dito até aqui e sobre tudo o que o ouvinte vai escutar dali em diante.

A vida mecanizada não pode sair do padrão. Se sair do padrão, você é taxado de subversivo. Você é o terrorista. Claudio Cox e o seu Opium Dei são os terroristas do lugar-comum. Discaço à altura de um Black Future e de um Tantão E Os Fita (este discaço aqui). Discaço. Gostaria de ser tão objetivo e sagaz e cascudo como Cox. Mas você pode ouvir a sua obra e se tornar também um subversivo. Não precisamos aceitar o mundo como ele é. Foda-se. Não somos automatizados. Não aceitamos padrões de qualidade. Nós pisamos em cima da máquina e do sistema. É nossa obrigação fazer o sistema funcionar do jeito que a gente quer e não do jeito que o capital exige. Não aceitamos ser domesticados, por isso gritamos. Por isso, Cox faz sua música.

Claudio Cox é um dos Giallos, uma das bandas mais potentes da música subterrânea nacional. O Opium Dei é “um projeto coletivo que estava” na cabeça dele desde 2015, “tipo uma válvula de escape artística se pá. Agradeço a todos que direta e indiretamente ajudaram a concretizar a parada, especial pro Tuba e Tite (meus Giallos preferidos), Pezão (pela amizade, bases e incentivo desde 1992), Will (teclados sujos e empolgação), Mateus (meu poeta malcriado), Lê (meu irmãozinho mais novo), Carneiro (por toda gentileza e voz de trovão), Talita (coro feminista operário), Tatu (pela paciência, trabalhos técnicos e humor ninja) e Nenê (xobá punk e fofura). É isso, nosso dedo na ferida desse Brasil Abstrato 2018”.

Ele se refere às participações de Pezão, Flavio Lazzarin, Lê Almeida, Nenê Motta, William Aleixo, Mateus Novaes, Rodrigo Carneiro e Talita Araújo.

Todas as letras são de Cox (exceto “Fast Truque”, de Mateus Novaes), com Rodrigo Blefari trabalhando na gravação, edição, mixagem e masterização. A gravação se deu no já icônico 74Club Estúdio, em Santo André, entre 2015 e 2018.

Lado A
01. Trabalho Sujo
02. Milk Shakespeare
03. Amigos Primitivos
04. Fast Truque
05. Antiterror

LADO B
06. Domínio Público
07. Mata Mata
08. Distorção
09. Blaxxxploitation
10. Máquina De Lavar

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