ÁCIDAS: UMA NOVA CHANCE

Em 2013, um amigo próximo recebeu um diagnóstico terrível: ele tinha cinquenta por cento de chance de morrer em seis meses. Imagine o desespero. Tentou segundas e terceiras opiniões. Alguns médicos nem se prestaram a confrontar a tese. Outros corroboraram. Os exames demoravam e os seis meses voavam. Cinquenta por cento.

A família estava lá aflita e ele, sereno, sereno. A proximidade da morte e, especialmente, você saber que ela está pra acontecer parece impor na pessoa uma clareza única sobre a vida. Ele passou a viver de verdade, como era de se esperar e como o clichê manda. Tentou fazer pequenas coisas que achava desimportantes antes e que agora se apresentavam indispensáveis. Uma delas era andar. Caminhar pelas ruas da cidade e pelos bairros mais distantes. Ver gente diferente. Pegava um ônibus qualquer e ia até o ponto final.

Foi a comunidades desassistidas pelo poder público e viu os bailes que todo mundo enchia o saco dizendo que eram “perigosos”. Típico classe média boboca, assustado pelo desconhecido e diagnosticado como inviável pela propaganda constante. “Gente”, ele se atentava ao óbvio, “é tudo gente” e mais nada. “Estão todos assustados, nós e eles, nós e vocês, vocês e eles, eu e você, minha mãe e a sua”, dizia, tentando diminuir as distâncias.

Seis meses, porém, é muito pouco tempo. E eles passaram rápido. Não foram muitos bailes, não foram muitos passeios de bicicleta pela cidade, não foram muitos ônibus como gostaria, não foram quase nada de bares (ele tomava remédios mil e, foda-se, bebia também, desrespeitando ordens médicas – afinal, ele tinha cinquenta por cento de chance de morrer).

Seu renascimento acelerado pra vida mudou uma chave. Se são cinquenta por cento de chances de morrer, oras, pelo o que se lembrava das aulas de matemática, ele tinha igualmente cinquenta por cento de chances de viver. É mais do que muita gente, pensando bem. Com a diferença que ele sabia que podia morrer dali a pouco. Quer coisa mais libertadora?

Mas ele não morreu, como você pode imaginar. Na verdade, hoje, 2017, Brasil de GOLPISTA e Pezão desabando ao redor, e ele está vivíssimo da silva, só que mais sagaz e esperto e desperto. Ainda sente a angústia do que “a qualquer momento” pode acontecer. Sente que está fazendo hora extra entre os vivos. Mas aquela saga de descobrimento e conhecimento da vida, iniciada quando do diagnóstico funesto e irresponsável, se expandiu de um jeito que ele não imaginava e, livre das amarras da advocacia (que cursara por imposição do pai), foi trabalhar numa ONG voltada à educação. Queria não só ver gente, mas se integrar, ajudar e fazer disso uma profissão.

Lá, conheceu um ex-aluno de uma das muitas comunidades desassistidas pelo Estado, que já adulto tentava reverter às novas crianças do seu bairro o mesmo aprendizado que tinha recebido no projeto – dizia e ainda repete que o projeto o havia salvado da mão acolhedora do tráfico e lhe aberto o mundo pelo estudo. Os dois se apaixonaram. Não foi imediato, à primeira vista. Foi um amor crescente, em ondas de respeito e admiração mútuas de dois mundos que se completam (na verdade, teve dramas e perrengues como qualquer casal e relacionamento, mas eu tô tentando florear aqui pra ficar mais bonito).

Eles se completam e respiram música. Foi o meu amigo que apresentou os pós-punks que fizeram nossa adolescência. Foi o marido dele que apresentou os pancadões bacanas e sinistros. Foi meu amigo que mostrou os sambas e pagodes mainstream como algo divertido. Foi o esposo dele que apresentou algumas sinfonias obscuras. Hoje, claro, ambos são meus amigos e não há festa que eles não espetem lá seus pen drives e musiquem a tarde e a noite, incansavelmente. Unidos pela diferença e indiferença social, atados pela música.

O casal é uma das minhas fontes de descobertas musicais – há outras, sim, há outras, mas ofereço ouvidos mais maleáveis às suas ofertas sonoras. Faz pouco tempo, eles me ofereceram um disco que me impressionou sobremaneira: “Espectro”, do Tantão E Os Fita (assim mesmo, no singular, após o artigo no plural).

Dá pra animar uma festa ou escrachar umas cabeças só com esse disco. Os neurônios ficam inflamados com as batidas ora arrastadas, ora secas, os ruídos metálicos e urbanos, com as letras panfletárias, objetivas e certeiras, com o vocal dramático. É a poesia ácida de nossos dias.

Na faixa de abertura, Tantão roucamente anuncia: “centro galático… globulares… lentecular… irregular…”, pra então entrar um “la la la la” e uma batida irresistível e envolvente. Ele segue: “além do alcance dos olhos / barra de estrelas / buraco negro / barra pesada”, pra então afiar o facão e, após um improvável breque, cutucar o poder público com “medida de segurança / formando paisagens”.

Clipe de “Espectro”:

Logo, vem “Refugiados”: “sem porto pra atracar / somente o mar / navegar”, versos entoados repetidamente. Um soco na cara do descaso e da desumanidade. A impossibilidade da segunda chance.

E pensar que tem gente que não se comove. Só deve ficar impassível quem não precisa implorar por uma segunda chance.

E a letra e a batida “Walk This Way” de “ARL”? E o clipe sádico de “ARL”?

Abrimos o portal muito perigoso, malandroso, barra-pesada, letal, perigoso, mortal, maravilhoso, canta Tantão, em “Portal”:

Seria possível falar sobre uma a uma dessas potentes canções e letras do disco, porque as letras de Tantão são assim. E Tantão, perguntei, quem seria? Fui alertado que ele não é uma descoberta esperta dos cafundós da percepção da nossa restrita sociedade desatenta. Ele é o Tantão do Black Future – o Black Future, banda maquiavélica que em 1988 lançou o inacreditável “Eu Sou O Rio” (veja um tanto mais aqui).

Fui atrás ver qualé, mas pouco se falou de “Espectro” na nossa imprensa. Uma pena. Entretanto, Tantão está e sempre esteve por aí. Esteve no Festival Novas Frequências 2016 e em demais shows por aí, e andou fazendo participações especiais em discos dos outros.

Daí que resolveu se juntar Abel Duarte e Cainã Bomilcar, metade da Radiolixo (Joaquim Pedro dos Santos participa em “Luxor” e na faixa-título), pra corromper a lógica e virar algo entre o Death Grips e o Fausto Fawcett.

“Espectro” é o seu primeiro lançamento desde o disco do Black Future.

Fiquei fascinado em imaginar sua história. De gênio aclamado pela crítica “especializada” da Revista Bizz à época pra um esquecido qualquer na biblioteca da música não-aclamada brasileira, Tantão renasceu com a sua paixão pela verborragia objetiva e econômica. Deram-no como esquecido. Ele taí. Deram-no como um ninguém e ele atracou-se ao porto da poética raivosa. Não é um refugiado proibido de cantar.

Deram-no à realidade ao dar abrigo num estúdio. Em um dia ele, Duarte e Bomilcar gravaram “Espectro” (“Esse álbum foi gravado em uma única sessão na noite de 22 de março de 2016 no estúdio da Radiolixo no Estácio/RJ. Poucos elementos foram gravados ou inseridos na fase de pós-produção”).

O casal amigo alerta que não conhece a história de Tantão nem do pessoal da Radiolixo. Não sabe se, como eles dois, o trio precisou de uma segunda chace pra seguir vivendo. Eu pondero que o óbvio é que todo mundo precise, de uma forma ou de outra. Uns de uma maneira mais grave, outros diariamente, outros sem perceber. Um dos grandes clichês da vida é justamente a que um dia é na vitória, outro é na derrota e o dia seguinte é limpando a poeira pra chegar de novo na vitória, pra então ter outra derrota e o ciclo seguir. É basicamente assim.

Só o que fazemos entre uma etapa e outra é que nos diferencia. O casal de amigos e Tantão E Os Fita estão fazendo e seguindo. Quem já precisou de uma segunda chance jamais desiste de acreditar.

01. Espectro
02. Refugiados
03. A R L
04. Portal
05. Kabul
06. Marcia X
07. Lá Vem A Direção
08. Oi Cat
09. Luxor
10. Espectro 2

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