BIG AUDIO DYNAMITE NO BRASIL EM 1987 – O REI BANDIDO E O RADIALISTA

O mês de agosto de 1987 foi bastante movimentado nos palcos de São Paulo e Rio de Janeiro. Nos dias 13, 14, 15 e 16, o Teatro Carlos Gomes, no Rio, recebia o ex-Clash Mick Jones e seu Big Audio Dynamite, o BAD. São Paulo veria a banda em três datas: 21, 22 e 23, no Palácio das Convenções do Anhembi. Já nos dias 17, 18 e 19, o mesmo palco paulistano receberia o ex-Sex Pistols John Lydon (ex-Rotten) com seu Public Image Ltd, o PIL. Lydon levaria sua banda ao Rio dia 21, no Canecão.

Os preços variavam de algo em torno de R$ 60,00 (Cz$ 300,00) a R$ 100,00 (Cz$ 500,00), em valores atualizados pelo IPC-A de outubro de 2017.

É improvável que o BAD vendesse sete datas hoje em dia no Brasil, e o PIL outras quatro, mas naqueles tempos, apenas dez anos após a explosão comercial e social do punk, duas das lendas centrais do movimento, que ainda estavam em atividade e em grandes alturas criativas, num país ainda engatinhando em experiências de shows gringos, tudo fazia sentido e chamava atenção. O BAD, inclusive, foi a banda de abertura da turnê do U2 em 1987.

Os grandes jornais impressos do país, como O Globo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Estadão, dedicaram espaço pra falar dessa semana especial. Matérias, entrevistas e análises tentavam situar os leitores na importância das duas figuras e suas bandas.

Mas uma matéria em especial chamou atenção por envolver um político de grande potência eleitoral à época: Afanasio Jazadji. O radialista ganhou projeção nacional graças ao seu programa “Patrulha Da Cidade”, transmitido pela Rádio Globo. Com audiência de mais de um milhão de ouvintes, o pai de figuras calcadas na odiosa lógica do “bandido bom é bandido morto”, como José Luiz Datena, Gil Gomes e o agora presidenciável Jair Bolsonaro, conseguiu em 1986 se tornar o deputado estadual mais votado do Brasil, com 558.138 votos, pelo PDS de Paulo Maluf.

Sua defesa da Polícia Militar e da política de tolerância-zero, mesmo com desrespeito aos direitos humanos, fez dele uma voz a ser ouvida entre os muitos reacionários paulistanos – São Paulo sempre foi e ainda é um estado essencialmente conservador.

Quando o Big Audio Dynamite colocou a voz de Jazadji em “Sambadrome”, sua balada-dançante sobre José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, um dos traficantes mais temidos do país e fundador do Comando Vermelho, o deputado não gostou nem um pouco.

A música trata da cinematográfica fuga do “Rei Bandido” (“King Bandit”), como Escadinha também era conhecido, do presídio da Ilha Grande, no Rio, a bordo de um helicóptero. O país é o “Sambadrome”, “onde foliões dançam nus e há corpos pelas ruas”. Escadinha é o Robin Hood dessa gente, que “vende drogas pra alimentar os pobres”, algo como o “Charles Anjo 45” que Jorge Ben já havia cantado. As histórias brasileiras se repetem – no crime, na sociedade, na política.

Além de Jazadji, a canção ainda traz a narração do gol de Sócrates na Copa de 1982, na derrota pra Itália, por Osmar Santos.

Na Folha de São Paulo de 20 de agosto de 1987, véspera da estreia do Big Audio Dynamite em São Paulo, há uma entrevista com Don Letts, o videomaker que fez os vídeos do The Clash e se juntou a Mick Jones no BAD. Ele é autor de muitas das letras da banda.

Na turnê brasileira, o Big Audio Dynamite estava promovendo seu segundo disco, “No. 10, Upping St.”, que trazia além de “Sambadrome”, o sucesso “C’mon Every Beatbox”, e a entrevista falava disso. Mas sublinhava mesmo era a polêmica “Sambadrome”.

Os autores Marcos Smirkoff e Álvaro Pereira Junior perguntaram a Letts como a banda conseguiu as gravações. Letts respondeu: “Nós emprestamos do filme ‘Pixote’, do qual gostamos muito”. Ou seja, não houve pesquisa, era apenas uma inocente e ingênua homenagem. Na gravação, além da narração do gol de Sócrates, se ouve Jazadji falando repetidamente “acaba de ser localizado os dois cadáveres de rapazes aparentando de 14 a 15 anos de idade. As vítimas apresentam várias perfurações de bala por todo o corpo”, trecho exato que está no filme de Héctor Babenco.

Mas Jazadji estrilou. Logo abaixo da entrevista com Letts, a Folha traz uma reportagem com o próprio deputado estadual, assinada por Leão Serva: “nos próximos dias, (…) Afanasio Jazadji (…) deverá iniciar um processo contra o grupo ou sua gravadora no Brasil, a CBS, por uso indevido da sua voz (‘matéria-prima do meu trabalho’) (…), pedindo participação nos direitos autoriais do disco”. A matéria faz questão de dizer que Jazadji não fazia a menor ideia de quem era Jones ou Letts antes de se ouvir no disco do BAD: “até que ‘Sambadrome’ começasse a ser apresentada nas rádios brasileiras, o deputado nunca tinha ouvido falar de Jones ou do Clash, seu antigo grupo. Do BAD, então, nem se fala. Na verdade, seus conhecimentos de rock vão pouco além de Elvis Presley e Beatles. Estes, mesmo assim, em sua fase iê-iê-iê. ‘Eu gosto de algumas melodias de rocks antigos. Já os brasileiros são uma porcaria, tanto a letra quanto a música’, diz taxativo”.

“Depois de ouvir a música e especialmente depois que percebeu o significado da letra – que ao final acaba lançando a candidatura de Escadinha à Presidência (…) – Afanasio passou a abominar ainda mais o disco. A letra é explícita em suas referências ao Brasil, denominado ‘nação do Sambódromo’ – embora o nome só apareça claramente falado por Osmar Santos”, continua a matéria. “‘Isso aí é o quê?’, pegunta o locutor-deputado. ‘Apologia ao crime ou achincalhe ao Brasil?’ (…) ‘É uma grosseria com o Brasil!’. Afanasio comenta, com uma certa ironia e nacionalismo, ao mesmo tempo, que ‘os Estados Unidos tiveram bandidos muito piores do que o Escadinha’, perguntando-se porque os roqueiros da banda não foram procurar naquele país os temas pras suas músicas – o BAD, diga-se, é inglês”.


Famosa foto de Luiz Carlos M. com Jazadji jogando o disco na privada

Já Osmar Santos não ligou muito de ter aparecido sem autorização na música. O que ele não gostou foi de ter aparecido ao lado de Jazadji: “Osmar Santos se irritou mais ao ouvir a sua voz ao lado da de Afanasio Jazadji do que ao saber que o grupo BAD a tinha utilizado sem consulta prévia. ‘Nossos trabalhos são muito diferentes. Ele é exatamente o que eu combato’. (…) Quanto ao teor da música, afirma que é ‘uma irreverência da rapaziada’, considerando-a ‘um som interessante’. (…) Osmar Santos não conhecia nem o BAD, nem o Clash. Quanto ao guitarrista Mick Jones, então, nem se fala: ‘Ele é famoso, esse cara que fundou o grupo? O disco tocou muito lá fora? Aqui dentro do Brasil, eu nunca tinha ouvido’. Ele elimina qualquer possibilidade de mover uma ação judicial”, diz o box da matéria de Serva, mostrando a diferença ente os dois personagens.

Na edição do jornal do dia seguinte, 21 de agosto, nada sobre o show, mas na editoria de Cidades, ao lado da previsão do tempo, há uma notinha com o deputado insistindo em falar sobre processo: “o deputado estadual e radialista Afanasio Jazadji (PDS) pedirá hoje uma medida cautelar de busca e apreensão da matriz do disco ‘No. 10, Upping St.’, do grupo britânico Big Audio Dynamite, editado no Brasil pela gravadora CBS. A medida pede também apreensão do estoque de discos já prensados e a interdição da temporada do grupo em São Paulo, com início previsto pra hoje, às 21h, no Palácio das Convenções do Anhembi (zona norte). Nesse disco, o grupo utilizou a gravação de um programa de Afanasio no rádio”.

Na edição do dia seguinte, 22 de agosto, a colunista Joyce Pascowitch avisa que, não contente em processar o BAD, Afanasio, “o locutor paladino da justiça, vai tentar também processar a editora Globo e os produtores do filme ‘Pixote'”.

Não se tem notícia se o caso foi pra frente. O deputado conseguiu a publicidade que desejava, então é provável que pouco importava o andamento. Entretanto, Jazadji não conseguiu cancelar os shows do BAD no Brasil, que foram um sucesso, bem como os do PIL.

No fim das contas, essa é apenas uma história pra mostrar como de 1987 a 2017 o Brasil mudou muito pouco, quase nada.

Abaixo, você ouve duas versões de “Sambadrome”, a oficial do disco, e uma montagem que inclui a abertura de jornal lida pelo falecido Eliakim Araújo:

A Rede Manchete filmou as apresentações da banda no Teatro Carlos Gomes e levou ao ar um especial Big Audio Dynamite, com mais de quarenta e cinco minutos de duração, incluindo uma divertida entrevista com Jones e Letts. Você vê o bom vídeo aqui:

1. Medicine Show
2. C’Mon Every Beat Box
3. Hollywood Boulevard
4. Wind Me Up (Poontang)
5. Sambadrome
6. The Bottom Line
7. B.A.D.

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Comentários

comentários

Um comentário

  1. Uma delícia ouvir matérias sobre o rock dos anos 80 e a dificuldade de ter algum espaço aqui no Brasil. Legal também reler coisas que tinham como protagonistas bandas como o BAD ou o PIL. Além disso, ver o nome de Álvaro Pereira Júnior é igualmente bacana!!!

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