DAVID BYRNE: AQUI, UMA UTOPIA AMERICANA

Dia 22 de março de 2018, David Byrne dá uma meia-trava em Porto Alegre, antes da apresentação no Lollapalooza Brasil, em São Paulo, dois dias depois. O show no Pepsi On Stage na capital gaúcha seria o quarto da caminhada sul-americana que o ex-Talking Heads realizou em 2018. Ali, Byrne encontraria e teria um diálogo bizarro com uma pessoa que ele não faz a menor ideia quem seja, fã como muitos outros de seu trabalho. Quem acompanha com atenção os subterrâneos da música nacional, porém, sabe que Matheus Borges é o Nosso Querido Figueiredo e que suas canções analisam o cotidiano consumista/capitalista de uma maneira tão sarcástica e perspicaz quanto Byrne. Exagero? É provável que o próprio Borges tenha certeza que sim, mas isso diz muito mais da nossa relevância como mercado produtor e exportador cultural do que sobre a criação dele.

De qualquer forma, o encontro do fã Borges com o ídolo mundial Byrne acendeu uma luz no Floga-se sobre o quão certeiro é o destino pra algumas coisas. A foto que encerra este artigo, publicada no Facebook pelo próprio Borges, coloca lado a lado duas almas criativas gêmeas sem que o mundo saiba bem disso (e nem se importe), separadas por continentes, décadas e estrada na música, de modo que fez com que este site pedisse que Borges não só contasse como se deu o encontro, mas como ele enxergou o show em Porto Alegre.

Do cérebro de um ao cérebro de outro, eles acabam se entendendo perfeitamente.

Texto: Matheus Borges
Fotos: acervo pessoal

O show começa antes de David Byrne entrar em cena, antes mesmo de qualquer músico subir ao palco. Rondam no ar expectativa e também sons da natureza. Não estamos num pântano. São gravações de insetos e pássaros, reproduzidas pelo sistema de som da casa de espetáculos. A luz de um holofote solitário vem de cima como a indicação de um desígnio divino, destacando a presença de uma mesa de madeira no palco. Sobre a mesa, um volume de plástico cinzento. É um modelo do cérebro humano, do mesmo tipo de cérebro que se encontra no interior do meu crânio. Talvez seja o meu cérebro, talvez seja o cérebro de David Byrne. Eu o imagino fazendo uma tomografia e materializando o resultado com uma impressora 3D.

O aspecto mais encantador da obra de David Byrne é o modo como retrata os ordinários desejos humanos. Em suas composições, o poder é degradável, a beleza não é solene, o dinheiro é visto com pudor. Conclusões como essas, no entanto, não partem de cinismo ou desprezo, mas de como o compositor se relaciona com os assuntos de seu interesse. Ele os observa de modo científico, mas os descreve com paixão. Suas canções trazem situações e imagens em que o elemento de mediocridade passa longe de ser caracterizado como insignificante – e já quero abandonar aqui esse adjetivo fatalista, comumente associado às coisas ordinárias.

Em “Every Day Is A Miracle” – faixa de seu álbum mais recente, “American Utopia” (lançado no último dia 9 de março) –, Byrne descreve a possibilidade de uma barata devorar a “Mona Lisa”. Uma imagem terrível, se a observarmos a partir de nossa perspectiva humana, uma perspectiva atrofiada, limitada a espelhar apenas os valores fantasiosos da nossa espécie. A barata é apenas um inseto, enquanto a “Mona Lisa” é uma das maiores expressões artísticas de nossa história. Além disso, ela é grande (em magnitude) e bela e também vale muito dinheiro. No entanto, o que é uma barata e o que é a “Mona Lisa”? Mais importante: o que é a “Mona Lisa” aos olhos de uma barata? A resposta é fornecida pelo próprio David Byrne no verso seguinte, de modo indireto: “The Pope doesn’t mean shit to a dog”.

Pra Byrne, o ordinário é um estado natural. Afinal de contas, obedece a uma ordem, um conjunto de regras estabelecido pela natureza. O extraordinário, no entanto, é uma anomalia. Foge do contrato estabelecido entre fantasias humanas e necessidades naturais. É o acúmulo, o poder, a beleza, o dinheiro. A carreira de David Byrne começou na Talking Heads, banda formada em Nova York na década de 1970.

Começou em Nova York e se espalhou pelo mundo inteiro. Não pelo mundo em si, mas pelas mentes e corações dos indivíduos que os acataram. Acatados por milhares de pessoas, o Talking Heads foi obrigado a suprir uma demanda de boas canções pra serem prensadas em discos, que são objetos redondos e achatados, feitos de um tipo de plástico chamado vinil. O plástico, esse sim se espalhará pelo mundo em si.

A banda fez muito sucesso na década de 1980, bem quando a Guerra Fria esquentava um pouco mais, antes de congelar. Um dos hits do Talking Heads foi “Once In A Lifetime” (“Remain In Light”, 1980). Ele tocará essa música no show dese 22 de março à noite. Produzida por Brian Eno, a canção descreve nossa expectativa infundada de que a passagem do tempo seja sinônimo de evolução e progresso. Ao longo dessa faixa, Byrne mais discursa do que canta. Tomando emprestado o ritmo da fala dos pastores evangélicos, ele descreve um “você” desestabilizado pela estagnação.

“And you may ask yourself, ‘How do I work this?'”
“And you may ask yourself, ‘Where is that large automobile?'”
“And you may tell yourself, ‘This is not my beautiful house'”
“And you may tell yourself, ‘This is not my beautiful wife'”

O refrão de “Once In A Lifetime” traz imagens que convidam à contemplação, ainda que tenha um ritmo acelerado. Deixar que os dias se passem, água que flui embaixo do chão. “Você” possui muitas coisas, mas essas coisas não são sua vida. “Você” tem uma casa e acha que essa casa é o mundo. “Você” está enganado. A vida é a água que flui embaixo do chão, o tempo que segue indiferente ao que chamamos de “dias”. No álbum seguinte, “Speaking In Tongues”, lançado em 1983, Byrne decide colocar essa casa abaixo. Em “Burning Down The House” (que ele também tocará aqui), o narrador proclama:

“I’m an ordinary guy / Burning down the house”

Os anos 1980 também foram marcados por outra exportação norte-americana, o neoliberalismo, suas políticas econômicas e meios de reprodução, tais quais o consumismo. A “utopia americana” que dá título ao álbum lançado em 2018 não é uma utopia que toma forma nos Estados Unidos da América, mas uma utopia global, fabricada a partir de valores norte-americanos. Delírios de grandeza, beleza, riqueza e poder. A vida como uma busca interminável pelo progresso. A utopia, portanto, se reproduz apenas na dimensão psicológica dos indivíduos que a acatam. Ou seja, todos. É impossível fugir. Toma forma no mundo inteiro, mas não no mundo em si. O mundo continua sendo o que sempre foi, o único lugar em que podem zanzar livremente os mesmos insetos e pássaros cujas vozes agora ouvimos, enquanto o célebre músico norte-americano não sobe ao palco.

A utopia é americana. Como disse, formada por valores americanos. Mas a quem servirá essa utopia e que tipo de utopia é essa? É uma utopia onde “eu” serei feliz – ou será possível que haja felicidade pra todos? Há utopias individuais e utopias coletivas, o desejo de aquirir uma casa própria e o de progresso científico e econômico. Há utopias que sustentam uma vida e utopias que sustentam nações. Daqui a alguns minutos, Byrne também tocará “I Should Watch TV”, do álbum “Love This Giant” (2014). Na performance, o palco inteiro ficará no escuro, à exceção de um quadrado de luz à direita. David Byrne ignorará a plateia, atento à tela acesa diante dele. Os onze músicos que o acompanham ficarão do outro lado do palco, à esquerda. Eles o observarão enquanto tocam. Nesse momento, Byrne será um performer emulando a melancolia de um telespectador solitário e catônico. Quando o cantor se virar pra trás, a banda o confrontará como um exército, tentando empurrá-lo pro interior da TV. A voz de Byrne ecoará pelas paredes do lugar, cantando:

“I used to think that I should watch TV / I used to think that it was good for me / Wanted to know what folks were thinking / To understand the land I live in / And I would lose myself / And it would set me free”.

A televisão sempre foi um objeto de interesse nas composições de David Byrne, bem como os carros e as casas e os telefones. Basta ouvir qualquer música do Talking Heads – e não dá pra esquecer que o nome da banda vem do enquadramento padrão, acima dos ombros, utilizado em talk shows e telejornais. São objetos de consumo e símbolos do consumismo necessário à reprodução do ideal de progresso neoliberal. A televisão, ainda que uma ferramenta de difusão dessas ideias, serve de portal metafísico a vidas estranhas. Se ver televisão é se alienar do mundo, negar-se a ver televisão é se alienar ainda mais. O libertar-se de si do qual ele fala é, na verdade, alienar-se do conceito de “eu” e se ampliar pra realidade coletiva dos outros.

O que existe entre o “eu” e os outros é também o que alimenta a música pop dançante. Há, é claro, o escapismo proporcionado por esse tipo de música, que é de fácil assimilação. Mas, por baixo da superfície, é possível enxergar um ato político, o de fazer com que um ouvinte afirme sua individualidade através de movimentos corporais, ao mesmo tempo que se integra ao coletivo de corpos dançantes ao seu redor. O “eu” predominante nas composições de Byrne é um “eu” material, que só existe quando certificada sua presença no mundo físico. Os personagens de suas canções são pessoas perdidas num mundo vazio, recheado de metáforas. Eles mesmos são metáforas de coisas que não entendem e só conseguem afirmar que existem quando atentam à fisicalidade de suas formas. “Take a look at these hands”, cantará ele em “Born Under Pressure” (“Remain In Light”, 1980). “Look where my hand was”, em “Once In A Lifetime”. De “This Is That” (2018): “When the melody ends / And the rhythm kicks in / It knows where I’m at / And it knows where I’ve been”.

De modo similar, esse procedimento também aparece em “I Dance Like This” (2018), que traz personagens invisíveis, desempregados, cheios de dívidas, sem um lugar onde morar. O refrão alterna entre as primeiras pessoas do singular e do plural, afirmando primeiro que “eu danço assim” e depois, que “nós dançamos assim”. O universo musical de Byrne, que mistura new wave, baião, samba, disco, rap etc., encontra sua vida na tensão entre uma coisa e outra. O indivíduo e seu único corpo, o coletivo e suas muitas diferenças. Sua amalgamação de ritmos regionais (erroneamente chamada de “world music”) é uma antítese da globalização neoliberal da utopia americana. Em vez de impor uma ideologia one size fits all, o palco de Byrne é uma democracia all sizes fit in, onde são tocados berimbaus e sintetizadores, agogôs e guitarras elétricas.

Uma sombra passeia no fundo do palco. Acho que a apresentação está prestes a começar. David Byrne surge do escuro vestindo terno cinza e senta na mesa iluminada pelo holofote. A multidão explode em aplausos, os pássaros e insetos voam pra longe num fade in gradual. Começam a soar os primeiros acordes de “Here”, a gentil faixa de encerramento de “American Utopia”. Byrne pega o cérebro de plástico na mesa, começa a passear pelo palco: “Here is a region of abundant details”.

À medida que canta, o dedo indicador em riste se aproxima de um ou outro ponto do cérebro falso. Não tenho conhecimento de anatomia humana, ainda mais de um órgão tão complexo quanto o cérebro. Sua voz, no entanto, é grave e graciosa ao enunciar os versos elegantes. Faz com que eu acredite no que ele diz, que aquele ponto do cérebro é uma região de abundantes detalhes, ou que continua viva depois que tudo é removido.

Ontem à tarde, eu o encontrei em frente ao hotel em que está hospedado. Eu estava acompanhado de minha namorada e de um amigo nosso. David Byrne apareceu a alguns metros de nós, parado em frente à porta do hotel. Eu o abordei pra tirar uma foto, uma evidência que estivemos fisicamente em sua presença. Byrne foi muito simpático. Na fotografia tremida e de baixa qualidade, abre um sorriso maior que a soma dos três outros sorrisos em quadro. Admito que fiquei nervoso ao conversar com ele, como fico nervoso ao conversar com qualquer pessoa que admiro. São conversas breves. Apenas algumas palavras e, no entanto, eu sei muito dessa pessoa e ela não sabe nada de mim. Considerando minha formação profissional e artística, eu deveria entender como funciona a relação entre o artista e seu público. É absurdo que eu me sinta desse jeito. Na verdade, eu entendo como se dá essa relação. O que só torna a situação mais absurda, o nervosismo mais intenso.

“Where are you from?”, perguntou David Byrne. “I’m from here”, respondi. “Where are you from?”: a pergunta inusitada o pegou de surpresa, bem como a mim. Por que, afinal de contas, eu respondi desse jeito? Com tanta coisa pra dizer. Logo isso? “I’m from New York”, ele respondeu.

Depois, despediu-se de nós, entrou no carro e foi jantar num restaurante de comida tailandesa, bastante popular entre os famosos que visitam a cidade. Agora ele está aqui, em cima do palco, segurando um cérebro de plástico.

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